Penumbra.
Escritório. Homem, com as mãos à cabeça, fuma e pensa na vida.
Alto-falante:
— Já
fez sua declaração de imposto de renda?
— Que
renda? Que declaração? Recebi, gastei, estou sem nenhum.
—
Prepara tua declaração de imposto de
renda!
— Mas…
— Até
30 de abril, improrrogavelmente!
Batem
à porta. Homem vai abrir. Entra uma forma gorda, que dá 210 voltas,
senta-se e contempla o homem. Este:
— Quem
és tu?
— Sou
o Decreto n o 40 702, que aprova o regulamento do imposto de renda.
— E
vais me explicar tudo?
—
Tudinho. Sou simples e prático. Tenho só
210 artigos, em que consolidei toda a literatura sobre o assunto.
—
Literatura?
— Sim.
Queres ver? (Bate palmas. Entram pela janela, como besouros, quinze
formas diferentes, umas compridas, outras curtinhas, esta pomposa,
aquela pífia.) Vou apresentar… Ladies first. (Apontando)
Lei n o 154. Lei n o 2354. Lei n o 2862. Lei n o 2973.
As
leis cumprimentam cerimoniosamente e tomam assento no sofá-cama, com
ares majestáticos.
Homem:
— Mas praquê tanta lei?
40
702: — Agora os senhores decretos-leis: 5844, 6071, 7885, 9330,
9407, 9781. Não está faltando alguém?
Os
decretos-leis, cheirando a Estado Novo, abanam o rabo, negativamente,
e ficam de pé, ao fundo.
40
702: — Bem. Temos ainda os decretos. Aproximem-se. São o 3079, o
36 597, o 36 773, o 38 250. Ah, aquele gordão é o 24 239, com seu
regulamento. Tudo isso eu condensei, numa espécie de “seleções”.
Mas se tiveres alguma dúvida — vejo que sim, por teu ar pacóvio
—, hás de consultar alguns ou todos eles…
Ruído.
Os decretos-leis tentam barrar um senhor distinto, meio calvo, que
introduziu o nariz na sala.
40
702: — Quem é?
— É
o Código Civil, dizendo que também quer entrar.
—
Deixa. Tem um artigo que me interessa.
O
Código entra, ressabiado.
Homem
(aterrorizado): — E agora, José?
40
702: — Bem. Agora é só me leres com recolhimento, como a um texto
metafísico, e encheres este formulário-sanfona, que te dou de
graça. Não vais me esconder nada, hem? Pagarás só quatro vezes: o
imposto cedular, o complementar, o adicional e o percentual de
proteção à família. É facílimo. Até 60 mil cruzeiros não
pagas nada, por um lado; por outro, pagas 1, 2, 3, 5, ou 10%,
conforme a cédula. Tens direito a descontar 50 mil para custeio de
tua esposa. Se ela gastar mais do que isso, azar teu. Idem quanto a
filhos. Pagas 50 mil do colégio, por ano, para cada um? O colégio
sai de graça, pois deduzes justamente essa importância; o resto da
despesa fica por isso mesmo. Se tiveres mais de 25 anos e não te
casares, é espeto: 15%. Casa, e barateia. O complementar é de uma
clareza de água: de 61 mil a 90 mil, pagas 30 cruzeiros por conto;
de 91 a 120, pagas 50; de 121 a 150, morres em 80; de 151 a 200, em
110; de…
— Tudo
não é o mesmo dinheiro, ganho do mesmo modo?
— Não.
À medida que ganhas mais, pagas mais. Salvo acima de 3 milhões,
quando passarás a pagar meio conto por conto, até o infinito. Quer
dizer: se fores pessoa jurídica, poderás reavaliar o ativo, e não
pagas nada. Mas sendo pessoa física, simplesmente…
—
Ordenado é renda?
— Por
que não? Tudo é renda. Se não for renda para ti, é para o Estado.
Não tens um biquinho no Instituto? Recebes e restituis; mas
restituis a ti mesmo, porque o Estado é a cooperativa dos cidadãos.
Ou não é?
Homem
tem uma vertigem. Leis, decretos-leis e decretos, armados de
aparelhos de microfilmagem (art. 206, do 40 702), precipitam-se sobre
ele, auscultam-no — está morto — e dançam lentamente, em torno
do cadáver, ao som da sanfona-formulário, uma pavana de Ravel, em
adaptação de J. Coringa.
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
P.S.:* Crônica de 1957!
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