No
ano de 1962, Bartolomeu Sozinho tinha vinte anos. Para ele,
irremediável sonhador, aquele foi o ano do barco. Nessa altura,
ainda vivia à beira-mar. A dois oceanos de distância, o
transatlântico Infante D. Henrique iniciava a sua viagem
inaugural na chamada rota ultramarina.
Quase
um mês depois, em Porto Amélia, hoje rebatizada Pemba, o navio
ficou ao largo, por ausência de cais na cidade. Pequenas lanchas iam
e vinham numa azáfama jamais vista naquela baía. Os portugueses
desembarcavam encavalitados nas costas de homens negros para não
molharem os pés.
Bartolomeu
trabalhava na oficina do seu avô, mas, nesse dia, faltou ao serviço.
No princípio da manhã ofereceu-se para carregar passageiros e,
depois disso, passou o resto da manhã na praia a contemplar o navio.
Nunca tinha visto nada que o tivesse fascinado tanto. Aquela era uma
criatura híbrida entre água e terra, entre peixe e ave, entre casa
e ilha. Passaram horas e o céu escureceu.
No
momento em que Bartolomeu decidiu regressar a casa, aconteceu o
milagre. As luzes do navio se acenderam e, de súbito, uma cidade
emergiu, ainda molhada, do ventre do oceano. Bartolomeu ficou pasmado
e, nesse estado arrelampado, balbuciou vezes sem conta a mesma
ladainha como se estivesse rezando para um deus ainda por nascer:
— Oxalá
esse barco não saia nunca daqui.
Em
casa já se tinha jantado e o jovem confessou ao irmão que, ao fim
da tarde, em plena praia, lhe descera a visão: o navio era uma ave
pernalta e que tinha quebrado as pernas de encontro aos recifes, ao
tentar levantar voo da baía de Pemba. O irmão sentenciou:
— Eu
sei o que se passa nessa sua cabecinha. É escusado, mano: você
nunca pisará aquele barco. Pé de preto pisa canoa.
O
avô corrigiu. Que ele se enganava. Milhares de negros tinham saído
de suas vidas para entrar em navios de longo curso. Durante centenas
de anos embarcaram para nunca mais voltar. E repisou, marcando as
sílabas com o cachimbo:
— Não
se esqueçam de que fomos escravos.
— Quem
me dera ser escravo e ir num barco — murmurou Bartolomeu de
modo a que ninguém o escutasse.
Antes
de adormecer, ele ainda regressou à janela para ver o navio aceso de
encontro às trevas. E, de novo, suplicou:
— Uma
perna! Deus queira que parta uma perna.
No
dia seguinte foi acordado em sobressalto: a súplica resultara. Uma
avaria paralisara o paquete. Não tardou que uma lancha desembarcasse
na praia, em missão de emergência: necessitavam de apoio de quem
soubesse de mecânica. Acontecera o imprevisto: o mecânico principal
do navio estava incapaz, delirando em altas febres. A malária
atingira também os assistentes. O avô aprontou uma caixa de
material e disse para o neto:
— Venha
comigo.
Bartolomeu
entrou no navio como quem desembarca em solo lunar. Olhos embaciados
de maravilhamento, pés flutuando sobre a realidade, foi passeando
pelo convés enquanto o avô desceu à casa das máquinas.
O
jovem olhou a linha de costa e tentou identificar a sua residência,
mas o casario, dali, era uma colmeia indistinta e isso lhe trouxe um
inesperado desejo de lonjura. O calor arrancava do chão ondulações
de ar, como fumos de miragem. E lhe pareceu, de repente, que a Vila
ficara submersa em água e que a geografia do mundo se invertera
entre oceano e continente.
Todavia,
o mar é o habilidoso desenhador de ausências. O balanço do navio
fez adormecer o visitador, que se ajeitou num canto do convés. E o
jovem Bartolomeu sonhou que a sua aldeia natal se convertia num barco
e se lançava no altíssimo mar. E clamava, no alto da proa: “Vejam!
Terra de preto virou navio, estamos navegando nos infinitos
oceanos!”.
Vozes
alvoroçadas emergiram do porão e despertaram o miúdo sonhador: um
acidente tinha ocorrido na sala das máquinas e o avô tinha-se
magoado ao tentar fazer mais do que sabia. Ficou com um braço
inutilizado. O médico de bordo tomou conta do caso e decidiu-se que
a Companhia Colonial de Navegação assumiria a responsabilidade
pelos tratamentos. O avô foi conduzido para Lourenço Marques. E o
neto acompanhou-o. No caminho, o comandante engraçou com Bartolomeu
Sozinho. Prometeu que lhe daria teto, escola, metropolitano destino.
Foi assim que tudo começou.
Na
viagem seguinte, o jovem ajudante de mecânico embarcou e, até ao
fim do regime colonial, continuou embarcando. De cada vez que
embarcava mais ele se alonjava de si mesmo.
No
intervalo das marítimas canseiras, já no sossego da varanda de sua
casa, os vizinhos lhe perguntavam:
— E
o mar é grande, Bartolomeu?
— Não
é que seja tão grande assim. Os continentes é que estão muito
afastados — respondia.
No
final da primeira viagem, os familiares lhe confessaram: receberam
tão choruda indemnização aquando do acidente com o avô que agora
todos rezavam para que ele, Bartolomeu Sozinho, sofresse de um penoso
percalço. Foi nesse momento que ele decidiu mudar de terra. Escolheu
uma povoação que lhe lembrava a visão enevoada da costa quando
espreitava do convés. Escolheu Vila Cacimba.
Mia
Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo
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