segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Um olhar perturbado

A poesia é uma perturbação do olhar. O poeta vê o que não está lá. Para ele, as coisas são transparentes, abrem-se para outros mundos. A Adélia Prado diz que Deus de vez em quando a castiga, tirando-lhe a poesia. Ela olha para uma pedra e vê uma pedra. William Blake, poeta inglês, escreveu um poema em que diz: “Ver um mundo num grão de areia e um céu numa flor silvestre...”. Octávio Paz descreve essa experiência: “Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes os nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado feito de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos”. A Raposa começou a ver nos campos dourados de trigo batidos pelo vento o cabelo louro do Pequeno Príncipe que partira. Meu filho pequeno, nas minhas ausências e com saudades, ia para o meu escritório vazio para sentir o cheiro do fumo de cachimbo. O cheiro do cachimbo era o que ele tinha de mim. O cheiro do cachimbo era, para ele, um sacramento. Sacramento é uma presença na qual mora uma ausência. A única coisa que recebi de meu pai como herança foi um peso de papel de vidro esverdeado. Quando olho para o peso de papel não vejo peso de papel, insignificância. Vejo o rosto do meu pai.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

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