segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O adiado avô

Nossa irmã Glória pariu e foi motivo de contentamentos familiares. Todos festejaram, excepto o nosso velho, Zedmundo Constantino Constante, que recusou ir aohospital ver a criança. No isolamento de seu quarto hospitalar, Glória chorou babas e aranhas. Todo o dia seus olhos patrulharam a porta do quarto. A presença de nosso pai seria a bênção, tão esperada quanto o seu próprio recém-nascido.
Ele hã-de vir, há-de vir.
Não veio. Foi preciso trazerem o miúdo a nossa casa para que o avô lhe passasse os olhos. Mas foi como um olhar para nada. Ali no berço não estava ninguém. Glória reincidiu no choro. Para ela, era como sofrer as dores de um aborto póstumo. Suplicou a sua mãe Dona Amadalena. Ela que falasse com o pai para que este não mais a castigasse.
Falasse era fraqueza de expressão: a mãe era muda, a sua voz esquecera de nascer.
O menino disse as primeiras palavras e, logo, o nosso pai Zedmundo desvalorizou: – Bahh! Contrariava a alegria geral. À mana Glória já não restava sombra de glória. Suspirou, na santa impaciência. Suspiro tão audível, que o velho se obrigou a destrocar: – Aprender a falar é fácil. Com o devido respeito de vossa mãe. Que não é muda. Só que a voz lhe está adormecida.
Nossa mãe – agora, a tão assumida avó Amada-lena – sacudiu a cabeça. O homem sempre acinzentava a nuvem. Mas Zedmundo, no capítulo das falas, tinha a sua razão: nós, pobres, devíamos alargar a garganta não para falar, mas para melhor engolir sapos.
E é o que repito: falar é fácil. Custa é aprender a calar.
E repetia a infinita e inacabada lembrança, esse episódio que já conhecíamos de salteado. Mas escutamos, em nosso respeitoso dever. Que uma certa vez, o patrão português, perante os restantes operários, lhe intimou: – Você, fulano, o que é que pensa? Ainda lhe veio à cabeça responder: preto não pensa, patrão. Mas preferiu ficar calado.
Não fala? Tem que falar, meu cabrão.
Curioso: um regime inteiro para não deixar nunca o povo falar e a ele o ameaçavam para que não ficasse calado. E aquilo lhe dava um tal sabor de poder que ele se amarrou no silêncio. E foram insultos. Foram pancadas. E foi prisão. Ele entre os muitos cativos por falarem de mais: o único que pagava por não abrir a boca. – Eu tão calado que parecia a vossa mãe, Dona Amadalena, com o devido respeito.
Meu velho acabou a história e só minha mãe arfou a mostrar saturação. Dona Amadalena sempre falara suspiros. Porém, em tons tão precisos que aquilo se convertera em língua. Amadalena suspirava direito por silêncios tortos.
Os dias passaram mais lestos que as lembranças. Mais breves que as lágrimas de nossa irmã Glória. O neto cumpriu o primeiro aniversário. Nesse mesmo dia, deu os primeiros passos. Houve palmas, risos, copos erguidos. Todos poliram júbilo menos Zedmundo, encostado em seu próprio corpo.
Não quero aqui essa gatinhagem, ainda me parte qualquer coisa. Levem-no, levem-no.
Meu pai não terminou a intimação. Amadalena suspendeu-lhe a palavra com esbracejos, somados ao seu cantar de cegonha. O marido, surpreso: – Que é isto, mulher? Já a formiga tem guitarra? A mulher puxou-o para o quarto. Ali, no côncavo de suas intimidades, o velho Zedmundo se explicou. Afinal, ele sempre dissera: não queria netos. Os filhos não despejassem ali os frutos do seu sangue.
Não quero cã disso. Eu não sou avô, eu sou eu, Zedmundo Constante.
Agora, ele queria gozar o merecido direito: ser velho. A gente morre ainda com tanta vida! – Você não entende, mulher, mas os netos foram inventados para, mais uma vez, nos roubarem a regalia de sermos nós.
E ainda mais se explicou: primeiro, não fomos nós porque éramos filhos. Depois, adiámos o ser porque fomos pais. Agora, querem-nos substituir pelo sermos avós.
A avó ameaçou, estava farta, cansada. Desta vez, dada a quentura do assunto, Amadalena preferiu escrevinhar num papel. Em letra gorda, ela decretou: ou o marido se abrandava ou tudo terminava entre eles. Ele que saísse, procurasse outro lugar. Ou era ela mesma que se retirava. O velho Zed-mundo Constante respondeu, sereno: – Amadalena, teu nome cabe na palma do meu coração. Mas eu não vou mudar. Se o meu tempo é pouco, então vou gastá-lo com proveito.
Não saiu ele, nem ela. Quem se mudou foi Glória. Ela e o marido emigrados na cidade. E com eles o menino que era o consolo de nossa mãe. Ela mais emudeceu, em seu já silencioso canto.
Não passaram semanas, nos chegou a notícia – o genro falecera na capital. Nossa irmã, nossa Glorinha perdera o juízo com a viuvez. Internaram-na, desvalida como mulher, desqualificada como mãe. E o menino, mais neto agora, chegava no primeiro machimbombo.
O menino entrou e meu pai saiu. Enquanto se retirava, já meio oculto no escuro ainda disse: – Tudo o que você não falou, esta certo, Amadalena, mas eu não aguento.
O nosso pai saiu para onde? Ainda nos oferecemos para o procurar. Mas a mãe negou que fôssemos. O velho Zedmundo nunca tivera nem rumo certo nem destino duradouro.
O homem era mais falso que um teto. Voltou dias depois, dizendo-se agredido por bicho feio, quem sabe hiena, quem sabe um bicho subnatural? Surgiu na porta, ficou especado. Ali naquela moldura feita só de luz se confirmava: porta fez-se é para homem sair e mulher estreitar o tempo da espera. Meu velho emagrecera abaixo do tutano, e em seus olhos rebrilhavam as mais gordas lágrimas. Amadalena se assustou: Zedmundo estreava-se em choro. Seu marido perdera realmente o fio de aprumo, sua alma se havia assim tanto desossado? Depois, toda ela se adoçou, maternalmente. E se aproximou do marido, acatando-o no peito. E sentiu que já não era apenas o espreitar da lágrima. O seu homem se desatava num pranto. Vendo-o assim, babado, e minguado, minha mãe entendia que o velho, seu velho homem, queria, afinal, ser sua única atenção.
Conduzindo-o pela mão, minha mãe o fez entrar e lhe mostrou o neto já dormindo.
Pela primeira vez, meu pai contemplou o menino como se ele acabasse de nascer. Ou como se ambos fossem recém-nascidos. Com desajeitadas mãos, o velho Zedmundo levantou o bebê e o beijou longamente. Assim demorou como se saboreasse o seu cheiro.
Minha mãe corrigiu aquele excesso e fez com que o miúdo voltasse ao quente do colchão. Depois o meu pai se enroscou no desbotado sofá e minha mãe colocou-se por detrás dele a jeito de o embalar em seus braços até que ele adormecesse.
Na manhã seguinte, ainda cedo, encontrei os dois ainda dormidos: meu velho no sofá e, a seu lado, o adiado neto. Minha mãe já tinha saído. Dela restara um bilhete rabiscado por sua mão. Não resisti e espreitei o papel. Era um recado para meu pai. Assim: “Meu Zedmundo: durma comprido. E trate desse menino, enquanto eu vou à cidade.” Entre rabiscos, emendas e gatafunhos, o bilhete era mais de ser adivinhado que lido.
Dizia que meu pai ainda estava em tempo de ser filho. Culpa era dela, que ela já se tinha esquecido: afinal, meu pai nunca antes fora filho de ninguém. Por isso, não sabia ser avô.
Mas agora, ele podia, sem medo, voltar a ser seu filho.
Seja meu filho, Zedmundo, me deixe ser sua mãe. E vai ver que esse nosso neto nos vai fazer sermos nós, menos sós, mais avós.” Dobrei o bilhete e o deixei no tampo da mesa. Esperei na varanda que minha mãe chegasse. Eu sabia que ela tinha ido buscar minha irmã Glória. Antes, eu jurara contar esta história a minha irmã. Mas agora, lembro as palavras de meu pai sobre o aprender a calar. E decido que nunca, mas nunca, contarei isto a ninguém. Minha mãe, que é muda, que conte.
Mia Couto, in O fio das missangas

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