terça-feira, 11 de outubro de 2016

O verdadeiro José

José morreu, com justeza poética, num avião da Ponte Aérea, a meio caminho entre São Paulo e Rio. Coração. Morreu de terno cinza e gravata escura, segurando a mesma pasta preta com que desembarcava no Santos Dumont todas as segundas-feiras, durante anos. Só que desta vez a pasta preta desembarcou sobre o seu peito, na maca, como uma lápide provisória.
- O velho Paulista... - disseram seus colegas de trabalho, no velório, lamentando a perda do companheiro tão sério, tão eficiente, tão trabalhador. Seu apelido no Rio era Paulista.
A mulher e o filho de 18 anos mantiveram uma linha de sóbria resignação durante todo o velório. Aquele era o estilo de José. Nada de arroubos ou demonstrações de sentimento. Sobriedade. Foi ideia do filho que o enterrassem de colete. - A verdade - cochichou um dos sócios de José na empresa - é que ele nunca se adaptou aos hábitos cariocas...
- Sempre foi um paulista desterrado - concordou alguém.
- Desterrado?-estranhou um terceiro. - Mas vivia lá e cá... Foi nesse ponto que entraram no velório, aos prantos, uma senhora e uma moça, ambas vestindo jeans iguais e carregando as grandes bolsas de couro com que tinham viajado de São Paulo.
- Carioca! - gritou a mais velha, precipitando-se na direção do caixão. - É você, Carioca?
- Papai! - gritou a mais moça, debruçando-se sobre o solene defunto. Consternação geral.
Dr. Lupércio, o advogado da família, conseguiu que as duas mulheres de José se reunissem em algum lugar afastado da câmara ardente. O mais difícil foi arrancar a segunda mulher - na ordem de chegada ao velório - de cima do caixão. Em pouco tempo confirmou-se o óbvio. José tinha outra família em São Paulo. A filha tinha 15 anos. A mulher do Rio foi seca:
- A legítima sou eu.
- Meu bem... - começou a dizer a outra.
- Não me chame de seu bem. Nós nem nos conhecemos.
- Calma, calma - pediu o Dr. Lupércio.
- Agora eu sei por que o Carioca nunca quis me trazer ao Rio... - disse a outra.
- O nome dele é José. Ou era, até acontecer isto - disse a primeira, não se sabendo se falava da morte ou da descoberta da segunda família.
- Lá em São Paulo toda a turma chama ele de Carioca.
- “Turma?” - estranhou a primeira. No Rio eles não tinham turma. Raramente saíam de casa. Um ou outro jantar em grupo pequeno. Concertos, às vezes. Geralmente estavam na cama antes das dez.
Na câmara ardente, o filho de José evitava o olhar da sua meia-irmã. Os dois eram parecidos. Tinham os traços do pai. A moça, com os olhos ainda cheios de lágrimas, comentara que aquela era a primeira vez que via o pai de gravata. O filho ia dizer que não se lembrava de jamais ter visto o pai sem gravata, mas achou melhor não dizer nada.
Era uma situação constrangedora.
- Pobre do papai - disse a moça, soluçando. - Sempre tão brincalhão... O filho entendia cada vez menos.
O apelido dele, em São Paulo, era Carioca. Descia em Congonhas todas as quintas-feiras de camiseta esporte. No máximo com um pulôver sobre os ombros. Uma vez chegara até de bermudas e chinelos de dedo. Gostava de encher o apartamento de amigos, ou sair com a turma para um restaurante ou uma boate. E se alguém ameaçasse ir embora, dizendo que “Amanhã é dia de trabalho”, ele berrava que paulista não sabia viver, que paulista só pensava em dinheiro, que só carioca sabia gozar a vida. Com sua alegre informalidade, fazia sucesso entre os paulistas. Inclusive nos negócios, apesar do mal-estar que causava sua camisa aberta até o umbigo, em certas salas de reuniões.
Todas as segundas-feiras voava para o Rio. Dizia que precisava pegar uma praia, respirar um pouco.
- Você não estranhava quando ele voltava do Rio branco daquele jeito? perguntou a legítima.
- Ele dizia que não adiantava pegar cor na praia, ficava branco assim que pisava em Congonhas - disse a outra.
As duas sorriram. Mais tarde, em casa, o Dr. Lupércio refletiu sobre o caso.
- Um herói de dois mundos - sentenciou.
A mulher, como sempre, não estava ouvindo. O Dr. Lupércio continuou:
- No Rio, era o paulista típico. Uma caricatura. Sim, é isto!
O Dr. Lupércio sempre se agitava quando pegava uma tese no ar com seus dedos compridos. Era isso. No Rio, ele era uma caricatura paulista. A imagem carioca do paulista. Em São Paulo, era o contrário.
- E mais. Quando fazia o papel do paulista proverbial, no Rio, era gozação. Quando fazia o carioca em São Paulo, era estratégia de venda. O advogado, no seu entusiasmo, apertou com força o braço da mulher, que disse
Ai, Lupércio!”.
- Você não vê? Ele estava sendo cariocamente malandro quando fazia o paulista, e paulistamente utilitário quando fazia o carioca. Um gigolô do estereótipo! Uma síntese brasileira! Mas qual dos dois era o verdadeiro José?
Duas viúvas dormiam sozinhas. A do Rio sem o seu José, aquela rocha de critérios e responsabilidades em meio à inconsequência carioca. A de São Paulo sem o seu Carioca, aquele sopro de ar marinho no cinza paulista. As duas suspiraram.
Luís Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam

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