quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Corpo e alma

Todo homem é uno quanto ao corpo, mas não quanto à alma. Também na literatura, mesmo na mais refinada, encontramos este conceito habitual em personagens aparentemente unas, aparentemente uniformes. No teatro de hoje, o que mais aprecia a gente do ofício, os conhecedores, é o drama, e com razão, pois oferece (ou oferecia) as maiores possibilidades para a representação do eu como uma pluralidade, se a isto não se opõe a brutal impressão de unidade que nos dá cada pessoa isolada do drama, ao levar encerrada, sem resistência, essa pluralidade num corpo simples, uniforme e isolado. Também apreciam muito a ingênua estética do chamado drama de caráter, no qual cada figura se apresenta como uma unidade muito característica e isolada. Só de que nos equivocaremos se aplicarmos aos nossos grandes dramaturgos a magnífica ideia de beleza dos antigos, pois esta não é congênita a nós, mas simplesmente intuída, e é nela, na fonte comum dos corpos visíveis, que se encontra exatamente a ficção do ego, da personalidade. Nas obras da Índia antiga esta concepção é completamente desconhecida, os heróis da epopéia indica não são pessoas, mas aglomerados de pessoas, conjuntos de reencarnações. E m nosso mundo moderno há obras em que, por trás do véu do jogo das pessoas e caracteres, tentou-se apresentar uma pluralidade de almas, não de todo inconsciente para o autor. Quem queira comprovar isto deve decidir-se a considerar de uma vez as figuras de uma obra semelhante, não como seres individuais, mas como partes, como facetas, como aspectos diversos de uma suprema unidade (que para mim é a alma do poeta). Quem examinar deste modo o Fausto tanto o Fausto, Mefistófeles, Wagner e todos os demais significarão para ele uma unidade, uma superpessoa, e só nesta suprema unidade e não nas figuras isoladas estará refletido algo da verdadeira essência da alma. Quando Fausto diz a frase que ficou célebre entre os professores e admirada com terror por filisteus: “Duas almas, ai, moram no meu peito!” esqueceu-se de Mefistófeles e de toda uma multidão de outras almas que também se abrigam em seu peito. Nosso Lobo da Estepe crê levar também em seu peito duas almas (lobo e homem) e por isto sente o peito demasiadamente oprimido e estreito. O peito, o corpo, é sempre uno, mas as almas que nele residem não são nem duas, nem cinco, mas incontáveis, o homem é um bulbo formado por cem folhas um tecido urdido com muitos fios. Os antigos asiáticos sabiam disto muito bem, e encontraram no ioga búdico uma técnica precisa para descobrir a ilusão da personalidade. Divertido e multíplice é o jogo da Humanidade: a ilusão que levou milhares de anos para ser descoberta pelos hindus é a mesma ilusão que aos ocidentais custou tanto trabalho custodiar e fortalecer. Se observarmos o Lobo da Estepe a partir deste ponto de vista, veremos claramente por que sofre tanto sob sua ridícula dualidade. Crê, como Fausto, que duas almas são demais para um só peito e podem arrebentar com ele. Mas ao contrário, são demasiado poucas, e Harry violenta terrivelmente sua pobre alma se busca compreendê-la numa imagem tão primitiva. Harry, embora seja um homem grandemente instruído procede talvez como um selvagem, que não sabe contar além de dois. Chama a uma parte de si mesmo de homem, à outra, de lobo, e com isso acredita haver chegado à meta e esgotado o assunto. No “homem” encerra tudo o que há de espiritual, de sublime ou culto que selvagem e caótico. Mas as coisas não se passam na vida de maneira tão simples como em nosso pensamento, nem tão rude como em nosso pobre idioma de idiotas, e Harry se engana duplamente ao empregar este método tacanho do lobo. Harry considera, o que é de temer-se, todas as divisões de sua alma como parte do homem, muitas das quais já deixaram de ser homem, e qualifica partes de seu ser como lobo, partes que há muito já estão além do lobo. Como todos os homens, Harry crê saber muito bem o que é o homem, e não sabe absolutamente nada, embora o suspeite algumas vezes em sonho e em outros estados anímicos não sujeitos a controle. Quem dera não esquecesse esses pressentimentos, mas se apropriasse deles tanto quanto possível! O homem não é uma forma fixa e duradoura (tal era o ideal dos antigos, apesar do pensamento em contrário de alguns luminares da época); é antes um ensaio e uma transição, não é outra coisa senão a estreita e perigosa ponte entre a Natureza e o Espírito. Para o espírito, para Deus, ele é impulsionado por sua vocação mais íntima. Para a natureza, para a mãe, é atraído pelo mais íntimo desejo. Sua vida oscila vacilando angustiosamente entre ambos os poderes.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

Nenhum comentário:

Postar um comentário