Os
maiorais do município, governo e oposição, vinham de um grupo de
famílias mais ou menos entrelaçadas, poderosas no Nordeste:
Cavalcantis, Albuquerques, Siqueiras, Tenórios, Aquinos. Padre João
Inácio era Albuquerque. O Comendador Badega, parente de todos os
graúdos, autor de vários filhos naturais, esfarinhado em César
Cantu, vestia cassineta esfiapada e ruça, usava chapéu de abas
roídas e botas pretas com remendos amarelos.
Assim,
de rebenque e esporas, entrou uma noite no paço municipal com um
lote de caboclas novas e, ao som da harmônica, dançou valsas e
quadrilhas até o nascer do sol. Apesar da comenda, os roceiros
davam-lhe o título de capitão. De ordinário a gente da rua,
excetuados os três meses de safra, descansava seis dias na semana.
Em negócios raros buscava-se lucro exorbitante.
Pelos
agudos frios da serra, andavam figuras solitárias, de mãos atrás
das costas, em capotes escuros, como urubus arrepiados na garoa.
E
findo o inverno, indivíduos loquazes reuniam-se em torno dos
balcões, discutiam política, tesouravam o próximo. À tarde
estabeleciam-se nas calçadas, à sombra. Os dados chocalhavam, as
pedras estalavam nos tabuleiros de gamão.
E
as discussões não tinham fim. Comentava-se a coragem do advogado
Bento Américo, um que chegou a professor de direito e conseguiu fama
por trajar mal e escrever sem verbos. Num discurso no júri, Bento
Américo arremedara o Coronel Antônio de Aquino, chefe político:
acendera um cigarro barato e pusera o pé em cima de uma cadeira.
Esse discurso provocava admiração desmedida.
Fatos
antigos se renovavam, confundiam-se com outros recentes, e as
notícias dos jornais determinavam perturbações nos espíritos.
Debatiam-se Canudos, a Revolta da Armada, a Abolição e a Guerra do
Paraguai como acontecimentos simultâneos. A república, no fim do
segundo quadriênio, ainda não parecia definitivamente proclamada.
Realmente não houvera mudança na vila. Os mesmos jogos de gamão e
solo transmitiam-se de geração a geração; as mesmas pilhérias
provocavam as mesmas risadas. Certas frases decoravam-se, achavam
meio de arranjar-se com outras de sentido contrário — e essas
incompatibilidades firmavam-se nas mentes como artigos de fé.
Sem
dúvida Floriano Peixoto e Deodoro da Fonseca eram grandes, tão
grandes que, deixando a política, recebiam consagração popular e
entravam nas emboladas:
Pedro
Paulino, Leodoro, Loriano.
Foi
a lei republicana
Que
inventou guarda local.
Os
frequentadores das calçadas conheciam dos generais famosos alguma
coisa mais que os nomes truncados. Não percebiam neles virtudes
públicas (isto ninguém estava em condições de notar), mas
descobriam qualidades preciosas a um sertanejo: vigor e dissimulação.
Aquela resposta de Floriano aos estrangeiros causava entusiasmo.
Bichão, sim senhor: prendia deportava, não receava caretas.
Deodoro
é que havia procedido mal. No começo da vida era um pobrezinho, e
D. Pedro o recolhera, educara, dera-lhe posição e dragonas. Em paga
de lautos favores, uma rasteira no protetor bambo. Ingrato. Devia ter
esperado que o velhinho desse o couro às varas.
Meu
pai, negociante, concordava com todos. Tinha às vezes, porém,
idéias próprias, que não chocavam as outras. No 15 de Novembro
enxergava um herói, o Barão de Ladário, desconhecido antes da
revolta, nascido para resistir à prisão, receber tiros, não
permitir que se derrubasse a monarquia suavemente.
Esse
pouco sangue bastava. E meu pai, livre de leituras, livre de
sentimentos belicosos, viu no ministro uma glória incomparável.
Esqueceu-o depois completamente, deixou de aludir a qualquer espécie
de bravura. Tinha imaginação fraca e era bastante incrédulo.
Aborrecia os ateus, mas só acreditava no contas-correntes e nas
faturas. Desconfiava dos livros, que papel agüenta muita lorota, e
negou obstinadamente os aeroplanos. Em 1934 considerava-os duvidosos.
Talvez até admitisse o Barão de Ladário como personagem de ficção.
Graciliano
Ramos, in Infância
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