João
Nicolau se fez homem: mascou fumo e cuspiu negro. Calçou as botas de
cano alto, herança do pai, beijou os cabelos brancos da mãe e, sem
dinheiro para o trem, seguiu rumo da cidade. Na metade do caminho
pediu um copo d'água à moça na varanda com trepadeira de glicínia.
O pai Bortolão ofereceu-lhe casa e comida para consertar um velho
paiol.
À
noite, de botas, conversava na varanda Negrinha, o perfume não sabia
se dela ou da glicínia. Coberto o paiol, morreu de nó-nas-tripas
uma tia de Negrinha. No guardamento, ele emborcou dois copos de
cachaça, por insistência do pai. Negrinha foi procurá-lo no paiol,
deitada com ele na cama de palha. Madrugada, ela dormia, João sumiu
sem esperar pelo enterro.
Ao
ouvir tropel de cavalos, saía da estrada. Embora sedento, não bateu
a nenhuma porta. As botas lhe feriam os pés, cada vez mais longe a
cidade. Descalçava-as para se cocar.
Negrinha
as esfregara com pó-de-mico a fim de lhe impedir a fuga.
Os
pés em fogo, arrastou-se até o casarão com a tabuleta na porta —
Ao Grito da Independência, onde pediu pouso. Dia seguinte
esquecia-se de partir: os seus olhos azuis estavam vermelhos de tanto
seguir a filha do hoteleiro. Cristina enrolava o cabelo loiro em duas
trancas, uma fita encarnada nas pontas. Seu corpo, tão branco, de
noite era peixe fosforescente na água escura.
Ela
mesma costurou o vestido de noiva, João envergou o terno azul do
sogro. Nas últimas forças, o velho doente pediu-lhe uma água
milagrosa. Primeira vez viajou de trem, a pasta de couro marrom no
braço.
Na
cidade foi preso por um investigador, compadre de Bortolão. Passou a
noite entre bêbados e ladrões, com sede bebeu a água milagrosa da
garrafa. Dia seguinte conduzido ao cartório mais Negrinha e o pai,
ela grávida de três meses. Se não reparasse o mal, sete anos de
prisão. João Nicolau jurou que a amava e casou-se diante do juiz.
Despediu-se
do sogro e do investigador, a promessa de bem cuidar da moça.
Bortolão deu-lhe um dinheirinho e os acompanhou à estação. O
herói, ausente meia hora, voltou com a pasta abarrotada —, além
do farnel, uma corda, uma garrucha, um punhal. Embarcou no trem com
Negrinha e, ao cair da noite, desceram na estação deserta.
Na
estrada convidou-a para fazerem a merenda sobre um toco de pinheiro.
Negrinha comia pão e linguiça, quando a atacou pelas costas,
ferindo-lhe o pescoço com o punhal. Deu um grito e rolou desmaiada.
João Nicolau, a garrucha no peito, viu-a cair e, ao acreditá-la
morta, guardou a arma. Com a corda pendurou-a de cabeça para baixo a
uma pitangueira, assim perderia todo o sangue.
Às
perguntas da velha mãe respondeu que, no caminho, ajudou a sangrar
um porco.
Mal
se afastara, Negrinha tornou a si e, livrando os pés, arrastou-se a
uma casa. João Nicolau foi preso: delirava com peixes
fosforescentes. Na cadeia chorou arrependido e batia a cabeça na
parede. O carcereiro deu-lhe fuga em troca das famosas botas.
Cristina
de luto do pai que, na agonia, tateava a garrafa salvadora. João
inventou um assalto ao trem por dois bandidos mascarados. A outra,
Negrinha, ficou boa e voltou para casa.
João
Nicolau escreveu-lhe carta apaixonada, anunciando o regresso e
remetendo a sobra do dinheiro para o enxoval da criança. Esta nasceu
morta e Negrinha, coitada, não resistiu ao parto.
Em
despedida cortou para ele um anel dos cabelos. João Nicolau
recebeu-o na cadeia, mais uma vez denunciado pelo Bortolão. Lá
ficou Cristina, grávida por sua vez e sem recurso.
João
condenado pelo juiz a dezoito anos. Cristina vendeu os trastes de Ao
Grito da Independência, cozinheira na pensão vizinha à
penitenciária. Com o esforço e os maus tratos abortou. Quando ele
soube, incendiou o colchão e atirou-se no fogo, recolhido à
enfermaria com queimaduras de segundo grau. Um dos guardas achou
graça em Cristina, acenou-lhe com a fuga do marido. Tornou-se amásia
do guarda, transferido para outro presídio. Ela grávida de cinco
meses. No tempo deu à luz uma menina, que recebeu o nome de Augusta,
em memória da avó.
João
Nicolau bebeu água de valeta e contraiu tifo. Para sustentar a
filha, Cristina foi mulher da vida.
Com
o tifo João Nicolau ficou triste e calvo. À noite, sem dormir,
lembrava-se ora de Negrinha ora de Cristina. Apalpava o anel de
cabelos no barbante encardido. Viva estivesse, com os anos ficariam
brancos — naquele cacho sempre moça, negros como no primeiro dia.
Tão fresquinha a água que lhe serviu, ali na cela o odor adocicado
de glicínia. A outra, Cristina, dera-lhe uma fotografia do casamento
e, nítido na roupa azul, por que o rosto dela se apagava?
Rasgando
o retrato, guardou a imagem da noiva: na mancha branca da cabeça
distinguia apenas a grinalda e o véu.
No
décimo ano perdeu todos os dentes. Sem poder mastigar, gemia dores
de estômago.
Sua
distração, além da visita de Cristina, era observar os corvos,
imaginando onde se abrigavam da chuva. Havia uma palmeira diante da
janela: surgiam os botões Brancos, e deles, os coquinhos verdes,
depois amarelos e, os que o vento não derrubava, negros murchavam na
penca. Fruto algum seria tão doce como os; tais coquinhos. Por mais
que chovesse, um lado da palmeira sempre enxuto. Vez por outra, ele
respirava na cela o perfume de glicínia.
Foi
libertado aos quarenta e quatro anos. Cristina esperava-o no portão.
Abandonara a pensão de mulheres, velha, feia e doente. A filha
dava-lhe o braço, não é que bonitinha?
De
volta à casa da falecida mãe de João Nicolau.. Grande preguiçoso,
qualquer incidente o divertia: um corvo que circulava no céu (para
onde voa? por que desaparece quando chove?), os cachos dourados de
Augusta.
Cristina
trabalhava para fora como lavadeira, a filha atendia os desejos de
João Nicolau. Machado no ombro, em vez de partir lenha, contava as
vezes que os caracóis batiam na nuca de Augusta — o seu rosto
cabia no espaço apagado do retrato.
Cristina
deu com a filha na cama de João Nicolau. De noitinha, esquentava a
água, trazia a gamela: e lavava-lhe os pés. Depois que os enxugava,
a vez dele banhar na mesma água os pés gordinhos de Augusta.
Beijava-os na frente de Cristina — a moça torcia-se de cócega.
Cristina
serviu-lhe vidro moído no feijão, sem: que desconfiasse; cólicas
tão fortes que rolava no chão, língua de fora. João dormia só na
cama de casal. Certa noite procurou o anel de cabelos de Negrinha,
não achou. Cristina o queimara e, além dele, o próprio retrato, só
vislumbrava o véu e a grinalda.
João
Nicolau queixava-se do perfume sufocante de glicínia. Cada vez uma
das donas misturava pó de vidro no prato de feijão que lhe levavam
na cama..
Urrava
de dor e elas cobriam os ouvidos, em fuga para o quintal.
Um
dia ele morreu. Foi enterrado pelas mulheres e nem uma chorou. Sem
dinheiro para o trem, seguiram a pé rumo à cidade. Deu um pulo a
barriga de Augusta, estava para ser mãe.
Dalton
Trevisan, in Novelas nada exemplares
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