“[...]Ai
daquele, mais lascivo, que tudo quer ver e sentir de um modo intenso:
terá as mãos cheias de gesso, ou pó de osso, de um branco frio, ou
quem sabe sepulcral, mas sempre a negação de tanta intensidade e
tantas cores: acaba por nada ver, de tanto que quer ver; acaba por
nada sentir, de tanto que quer sentir; acaba só por expiar, de tanto
que quer viver; cuidem-se os apaixonados, afastando dos olhos a
poeira ruiva que lhes turva a vista, arrancando dos ouvidos os
escaravelhos que provocam turbilhões confusos, expurgando do humor
das glândulas o visgo peçonhento e maldito; erguer uma cerca ou
guardar simplesmente o corpo, são esses os artifícios que devemos
usar para impedir que as trevas de um lado invadam e contaminem a luz
do outro, afinal, que força tem o redemoinho que varre o chão e
rodopia doidamente e ronda a casa feito fantasma, se não expomos
nossos olhos à sua poeira? é através do recolhimento que escapamos
ao perigo das paixões, mas ninguém no seu entendimento há de achar
que devamos sempre cruzar os braços, pois em terras ociosas é que
viceja a erva daninha: ninguém em nossa casa há de cruzar os braços
quando existe a terra para lavrar, ninguém em nossa casa há de
cruzar os braços quando existe a parede para erguer, ninguém ainda
em nossa casa há de cruzar os braços quando existe o irmão para
socorrer; caprichoso como uma criança, não se deve contudo
retrair-se no trato do tempo, bastando que sejamos humildes e dóceis
diante de sua vontade, abstendo-nos de agir quando ele exigir de nós
a contemplação, e só agirmos quando ele exigir de nós a ação,
que o tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o tempo é grande, o
tempo é generoso, o tempo é farto, é sempre abundante em suas
entregas […]”
Raduan
Nassar,
in
Lavoura
arcaica
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