quinta-feira, 21 de abril de 2016

O fogo do silêncio

Em meio aos sons estridentes do Carnaval, uma pergunta longínqua, formulada por Fiodor Dostoiévski no ano de 1864, ressurge em minha mente: “Não será melhor dar um pontapé em toda essa sensatez, para que possamos mais uma vez viver de acordo com nossa estúpida vontade?”.
Tento afastá-la, pois parece inconveniente na mesa de bar que divido com amigos. Passaram-se 144 anos desde a publicação das Memórias do subsolo, livro que acabei de reler, com tradução de Boris Schnaiderman para a editora 34. Mas a pergunta insiste. No mais improvável dos cenários – um bar de Copacabana, em um fim de tarde –, quieto em meu canto, ela se repete.
Na mesma noite, busco em minha mala as Memórias, o livro em que Dostoiévski, depois de romances menores, se torna, enfim, Dostoiévski. A frase estará mesmo ali ou eu, embriagado pelo Carnaval e alguns chopes, a inventei?
Faço uma busca aos atropelos até que, na página 38, esbarro com a pergunta, que é um pouco mais longa, mas cuja essência minha memória preservou. No bar, enquanto eu a ruminava, uma amiga, preocupada, me perguntou se eu estava bem, se não preferia voltar para casa. Limitei-me a sorrir. Voltar para casa é fácil, pensei. O difícil é voltar-se para dentro quando todos (e isto define o Carnaval, isto é sua beleza) se voltam para fora.
Frases, porém, grudam em nossa mente. Só nos livramos delas quando as enfrentamos. Ou, como propõe Dostoiévski, quando as escrevemos. Ele se pergunta: “Para que, em suma, quero escrever?”. E logo depois responde: “Não sei por quê, mas acredito que, se eu a anotar, há de me deixar em paz”.
Escritores, que estão sempre em busca de relações secretas entre as coisas, às vezes parecem estranhos. Em nosso mundo veloz, esses sujeitos calados que passam horas a fio sozinhos com seus escritos funcionam, no entanto, como reservas de sentido. Em um de seus livros mais perturbadores, Doctor Pasavento, de 2005 e ainda inédito no Brasil, o escritor catalão Enrique Vila-Matas leva um de seus personagens, o professor Morante, a dizer: “A literatura consiste em dar à trama da vida uma lógica que ela não tem”. Em outras palavras: consiste em inventar tramas. De modo ainda mais simples: consiste em inventar.
Não pense o leitor que sei todas essas frases de cor. Já disse que minha memória é frágil, até porque está sempre atulhada de frases e mais frases. Na verdade, sou viciado em cadernos – nessa manhã mesmo, sem saber por quê, comprei um caderno novo em uma papelaria da rua Barata Ribeiro. Estou sempre a anotar frases, ideias soltas, a resumir pensamentos e relatos. Como um escolar, carrego sempre cadernos na mochila.
A mania de anotar provoca suspeita. Aqui mesmo na calçada do prédio em que me hospedo, em Copacabana, vejo sempre uma mendiga, senhora de idade avançada e que fala sozinha, a anotar e anotar em pedaços e tiras de papel. Já tentei descobrir o que tanto resmunga e o que tanto escreve. Não consegui e, confesso, isso me incomoda.
Escrever (como pensar em silêncio) também provoca suspeitas – seja a escrita do romancista famoso ou a escrita da mendiga descabelada. E por quê? Porque, quando escreve, o sujeito se volta para si. Cai em si, como prefiro dizer – e essa queda para dentro, em um mundo em que tudo despenca para fora, se torna obscena. Em um mundo em que tudo se mostra, o obsceno não é mostrar, o obsceno é esconder.
Vem-me à mente, então, um ensaio em que Vila-Matas relata o espanto de Santo Agostinho quando ele, ainda jovem, entrou no quarto de Santo Ambrosio, seu mestre, e o surpreendeu lendo em silêncio. Vou ao livro de Vila-Matas: “Até ali, a leitura normal, comum, se fazia sempre em voz alta. Santo Ambrosio foi o primeiro leitor silencioso”. Mais uma vez: o que espantou Agostinho não foi que o mestre mostrasse o que lia. Ao contrário: foi que o escondesse.
Vila-Matas (que sem dúvida é um de meus mestres) é um leitor maníaco. Limita-se, no caso, a repetir uma história que leu em um livro de Alberto Manguel. Eu cheguei à mesma história enquanto lia um livro de Fiodor Dostoiévski. Lia? Ou, na mesa de um bar, entediado, ou apenas um pouco sonolento, silenciosamente (e a ênfase aqui está no silêncio), fui acossado por ela? O silêncio incomoda porque expõe (como o avesso de uma saia) a ponta de um desejo. Quando fala do silêncio, Dostoiévski fala, na verdade, do desejo. Fala da subjetividade – e o tema de Doctor Pasavento é justamente a decadência da subjetividade em um mundo cada vez mais prático e mais extrovertido. Mas lá estou eu de novo a me desviar!
E por que o desejo é tão incômodo? Mostra Dostoiévski que, quando desejamos, não respeitamos as normas do bom gosto, do bem educado e do belo. No subsolo do subjetivo, todos os valores se esfarelam. Nas Memórias, leio: “Ter o direto de desejar para si mesmo algo muito estúpido, sem estar comprometido com a obrigação de desejar apenas o que é inteligente”. O desejo não inclui a sensatez nem a utilidade. “Pode-se dizer tudo da história universal – tudo quanto possa ocorrer à imaginação mais exaltada. Só não se pode dizer o seguinte: que é sensata”, Dostoiévski escreve.
Em silêncio, pensamos tudo, até as piores coisas. Mesmo na era das psicoterapias e dos detectores de mentira, ainda é possível acreditar no seguinte: podemos pensar, e ninguém nunca saberá. Quando externamos os pensamentos, mesmo os mais livres e perigosos, eles passam pelo filtro do civilizado. Na vida social, tudo tem limites. Mas que limites? Hoje se fala muito em ética, mas que outra coisa é a ética senão o outro?
Já em silêncio, naquele lugar secreto a que ninguém mais tem acesso, tudo é possível. Nesse magma de ideias imprecisas e inconvenientes e de pensamentos instáveis e discrepantes, navegam os escritores. Por isso precisam escrever: para dar forma ao que, de outra forma, ferveria e ferveria, até destruí-los.
Sem o fogo do silêncio não há escrita. É preciso que haja silêncio, longo, misterioso, torturante, para que a palavra, quando enfim dita, quando finalmente escrita, tenha valor.
José Castello, in Sábados inquietos

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