quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Fontes

Três personagens me ajudaram a compor estas
memórias. Quero dar ciência delas. Uma, a criança;
dois, os passarinhos; três, os andarilhos. A criança me
deu a semente da palavra. Os passarinhos me deram
desprendimento das coisas da terra. E os andarilhos, a
preciência da natureza de Deus. Quero falar primeiro
dos andarilhos, do uso em primeiro lugar que eles
faziam da ignorância. Sempre eles sabiam tudo sobre
o nada. E ainda multiplicavam o nada por zero —
o que lhes dava uma linguagem de chão. Para nunca
saber onde chegavam. E para chegar sempre de
surpresa. Eles não afundavam estradas, mas inventavam
caminhos. Essa a pré-ciência que sempre vi nos
andarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza.
Bem que eu pude prever que os que fogem da natureza
um dia voltam para ela. Aprendi com os passarinhos
a liberdade. Eles dominam o mais leve sem precisar ter
motor nas costas. E são livres para pousar em qualquer
tempo nos lírios ou nas pedras — sem se machucarem.
E aprendi com eles ser disponível para sonhar. O outro
parceiro de sempre foi a criança que me escreve. Os
pássaros, os andarilhos e a criança em mim são meus
colaboradores destas Memórias inventadas e doadores
de suas fontes.
Manoel de Barros

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