quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

A moça

Líamos juntos um poema de Vinicius de Moraes. Esbarraste na palavra “báratro” e pronunciaste “barátro”, perguntando: “o que é?” Eu corrigi tua pronúncia, mas não soube explicar o sentido exato: “é alguma coisa como oceano ou labirinto... Vamos ver no dicionário”.
Era abismo, precipício, inferno. E rimos muito.
Depois eu te ensinei a teoria de dormir na rede, e te emprestei a palavra “ruivas” para ficar no teu poema no lugar de “fulvas”. (Tratava-se de formigas.)
Então eu te levei ao Arpoador e subimos até o alto. E te ofereci num gesto largo todo o oceano com suas ilhas e todo o céu com seus ventos; porém, estavas triste; digna e triste como olvidada princesa belga.
E me disseste: “Sou o anjo duvidoso.” E eu disse: “Que és anjo não tenho dúvida alguma, está na cara; mas duvidoso, talvez.”
Bebias muita água; e trincava nos dentes a pastilha da felicidade, invenção americana. Eu recusei: “Não; é verdade que estou meio triste, mas não tem importância, é uma tristezinha maneira; vou tocando assim mesmo.”
E fomos tocando pela tarde e pela noite, de um lado e outro, como se estivéssemos procurando uma pessoa amiga, uma pessoa que procurávamos há tanto tempo que já havíamos esquecido quem era mesmo. E não tinha importância. De repente ficaste mais minha amiga e me contaste coisas amargas. Eu mirei tua boca, teus olhos e tua testa com um profundo respeito.
Rubem Braga, in Ai te ti, Copacabana

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