terça-feira, 17 de novembro de 2015

Sopro vital


Às vezes, um aluno de oficina produz um texto em que todos os elementos da narrativa estão perfeitamente encaixados, todas as partes que compõem o todo se ajustam com eficiência, e, no entanto, o todo não funciona, a obra é uma marionete desconjuntada, flácida e sem vitalidade.
Nesse instante, o instrutor silencia, à espera de que alguém mais, talvez o próprio autor, se dê conta do espantalho que foi gerado. Mas este, ainda dolorido e ensimesmado pela gestação e pelo parto, não percebe. E os colegas, mais por espírito de corpo do que por ignorância, também não perceberão. Ou farão de conta que não percebem. E não adianta tentar mostrar que aquilo é um fantoche, um factoide, um espectro. O autor não se permitirá perceber o problema. Ao contrário, apelará para as mais comezinhas autoindulgências, rebaterá com argumentos teóricos aprendidos com o próprio mestre, se apegará neuroticamente a detalhes sem nenhuma significação.
Se for culto e com boa bagagem de leitura, apresentará exemplos extraídos de obras clássicas que ele julga, arrogantemente, semelhantes à sua.
O professor, se coincidir de ser também escritor e não apenas crítico ou técnico, sofrerá duplamente. Em algum momento de sua carreira terá produzido essas aberrações da natureza literária, esses fantasmas sem vida nem transcendência, e reconhecerá, sem confessar publicamente, que há uma área da criação infensa à técnica, à cultura, ao conhecimento acumulado pela tradição. E sofrerá também porque essa área é inexplicável, intransferível e inapreensível.
Se for honesto, o professor murmurará que as ideias de Platão foram contestadas, mas não destruídas. Que, por mais materialistas que possamos ser, sempre restará espaço para o mito. Que o sopro vital é um dom do Espírito.
Se for honesto, o escritor que também ensina ensinará, como ensinou Gaston Bachelard, que não é digno de ser chamado de escritor aquele que não dedicar à Fênix parte de sua produção, especialmente aquela que já nasceu morta.
E ensinará que é do fogo e das cinzas da obra desvitalizada que virá a energia necessária para outra obra possível, aquela com frescor de banho e riso de bebê, aquela que se agitará como uma serpente no gramado e que será capaz de mesmerizar até o leitor mais desatento.
Charles Kiefer, in Para ser escritor

Nenhum comentário:

Postar um comentário