sábado, 31 de janeiro de 2015

O inseguro

A eterna canção: Que fiz durante o ano, que deixei de fazer, por que perdi tanto tempo cuidando de aproveitá-lo? Ah, se eu tivesse sido menos apressado! Se parasse meia hora por dia para não fazer absolutamente nada — quer dizer, para sentir que não estava fazendo coisas de programa, sem cor nem sabor. Aí, a fantasia galopava, e eu me reencontraria como gostava de ser; como seria, se eu me deixasse...
Não culpo os outros. Os outros fazem comigo o que eu consinto que eles façam, dispersando-me. Aquilo que eu lhes peço para fazerem: não me deixarem ser eu-um. Nem foi preciso rogar-lhes de boca. Adivinharam. Claro que eu queria é sair com eles por aí, fugindo de mim como se foge de um chato. Mas não foi essa a dissipação maior. No trabalho é que me perdi completamente de mim, tornando-me meu próprio computador. Sem deixar faixa livre para nenhum ato gratuito. Na programação implacável, só omiti um dado: a vida.
Que sentimento tive da vida, este ano? Que escavação tentei em suas jazidas? A que profundidade cheguei? Substituí a noção de profundidade pela de altura. Não quis saber de minerações. Cravei os olhos no espaço, para acompanhar a primeira fase de ascensão dos foguetes, ver passar os satélites. Olhei muito em redor e para cima, nada para dentro ou para baixo. Adquiri uma ciência de ver, ou perdi outras, que não eram ciências, eram artes de vi-ver?
Bom, é verdade que as circunstâncias não foram lá muito propícias. Houve de tudo, menos sossego. Quem pôde dedicar-se a certos trabalhos de geologia moral, como dizia o velho Assis? Mas as circunstâncias nunca foram favoráveis a nada, nenhum progresso jamais se fez à sombra de copada mangueira. Havia guerra, e daí? Injustiça, e daí? Explosão de ressentimentos, recalques, revoltas, e daí? Era precisamente o instante para você afirmar-se, meu velho: ou revelando a sua palavra ou pesquisando a sua verdade. Mas você se deixou ir empurrado, machucado, embolado, bola caindo fora do gramado, ou, na melhor, resvalando na trave.
Eu sei que você cultivou — mas vamos capar essa alienação da terceira pessoa — que cultivei ótimos sentimentos, isso não há dúvida. Por mim, era tudo compota de alegria, licor de anjos, flores de ternura na face da Terra. Exagerei tanto nesse bem-querer universal que, se fosse obedecido, isto aqui se tornaria insuportável, de tão doce e melenguento. Corrigi mentalmente a aridez do mundo sem me dar ao trabalho de mover o dedo mindinho para corrigi-la de fato. O que me dói mais são meus bons sentimentos; envelhecendo, assemelham-se a calos. Ou pedras. Tão aéreos, como pesam! Devia ser proibido cultivá-los em estufa.
Ora, estou empretecendo demais as faltas do homem qualquer que presumo ser (não tão qualquer, afinal: tenho meus privilégios de pequeno-burguês, e quem disse que abro mão deles?). Devo alegar atenuantes em minha defesa. Não nasci descompromissado com o mundo tal qual é, em seu aspecto rebarbativo. Deram-me genes tais e quais, prefixaram-me condições de raça e meio social, prepararam-me setorialmente para ocupar certa posição na prateleira da vida. Meus ímpetos de inconformismo são traições a esse ser anterior e modelado, em que me invisto. Donde concluo que preciso reformar-me, antes de reformar os outros.
Como? Procurei fazê-lo este ano? Que significa um ano para reforma de tal envergadura? Queria eu chegar a 1970 de estrutura nova, que nem edifício construído no lugar de casa velha? Às vezes me assalta uma espécie de simpatia criminosa pelas minhas velhas paredes, meus podres alicerces: é tão bom a gente ser a mula velha que pasta o capim do hábito, ir trotando em silêncio pela estrada sabida... A burrada moça que se aventure a outras pastagens, entre abismos. Pensando bem, não perdi meu ano, pastei sem risco. Mas este "pensando bem" dura um segundo. Quem pode terminar o ano satisfeito consigo mesmo? Quem não faltou, não se esqueceu de alguma coisa, não perdeu um gesto de ouro, não renunciou a um ato de grandeza? Agora estou generalizando uma omissão pessoal, procuro arrimar-me em possíveis faltas alheias. Olha aí esse malandro diante do espelho, procurando ver outras caras no lugar da sua! Mas é tempo de parar com a eterna canção — e celebrar: os que não morremos estamos — ó milagre — vivos. Depressa, o copo, a dose dupla! 
Carlos Drummond de Andrade, in O poder ultrajovem

Mérito

“A mais injusta condição das guerras está no fato de que todos se atribuem o mérito das proezas, enquanto as derrotas são sempre atribuídas a uma única pessoa.”
Tácito

Cultura: libertação

A cultura é uma das formas de libertação do homem. Por isso, perante a política, a cultura deve sempre ter a possibilidade de funcionar como antipoder. E se é evidente que o Estado deve à cultura o apoio que deve à identidade de um povo, esse apoio deve ser equacionado de forma a defender a autonomia e a liberdade da cultura para que nunca a ação do Estado se transforme em dirigismo.”
Sophia de Mello Breyner Andresen

Da necessidade de um senhor (Sexta Proposição)

“(...) O homem é um animal que, quando vive entre outros de sua espécie, tem necessidade de um senhor. Pois ele certamente abusa de sua liberdade relativamente a seus semelhantes; e, se ele, como criatura racional, deseja uma lei que limite a liberdade de todos, sua inclinação animal egoísta o conduz a excetuar-se onde possa. Ele tem necessidade de um senhor que quebre sua vontade particular e o obrigue a obedecer à vontade universalmente válida, de modo que todos possam ser livres. Mas de onde tirar esse senhor? De nenhum outro lugar senão da espécie humana. Mas este é também um animal que tem necessidade de um senhor. Seja qual for o começo, não se vê como o homem pode se dar, para estabelecer a justiça pública, um chefe que também seja justo - ele pode procurá-lo numa única pessoa ou num grupo de pessoas escolhidas para isso. Pois todos eles abusarão sempre de sua liberdade, se não tiverem acima de si alguém que exerça o poder segundo as leis. O supremo chefe deve ser justo por si mesmo e todavia ser um homem. Esta tarefa é, por isso, a mais difícil de todas; sua solução perfeita é impossível: de uma madeira tão retorcida, da qual o homem é feito, não se poder fazer nada reto. Apenas a aproximação a esta ideia nos é ordenada pela natureza. Que ela seja aquela que será realizada por último decorre disto: que ela exige conceitos exatos da natureza de uma constituição possível, grande experiência adquirida através dos acontecimentos do mundo e, acima de tudo, uma boa vontade predisposta a aceitar essa constituição - estes três pontos, todavia, muito dificilmente podem ser encontrados juntos e, quando isto acontece, ocorre somente muito tarde, após muitas tentativas frustradas.”
Immanuel Kant, in Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O discurso da “meritocracia” esconde o nosso passado mal resolvido


A palavra “meritocracia” funciona em um debate como um coringa num jogo de buraco: quando falta carta para bater, ela aparece para salvar uma sequência incompleta. Não fica lá a coisa mais bonita do mundo, mas resolve sua vida porque todo mundo aceita que aquela carta pode preencher um vazio.
“Discordo de cotas étnicas, sociais ou por cor de pele no vestibular porque defendo a meritocracia.”
“A preferência para pessoas com deficiência em seleções de contratação é, a meu ver, um erro porque não segue a meritocracia.”
“Se vivêssemos em uma sociedade em que a meritocracia valesse algo, não haveria porcentagem mínima obrigatória de mulheres candidatas em cada partido nas eleições.”
Ela acaba passando um senso de lógica, racionalidade e Justiça que ergue o interlocutor a um patamar mais elevado dos mortais. Em suma, algo do tipo “venha, querido, não se misture com essa gentalha”.
Eu não sou contra que competência e experiência individuais sejam parâmetros de avaliação. Uma coisa é o mérito em si. Outra, um sistema de poder criado em torno dele como justificativa para manutenção do status quo.
O problema é que o uso dessa palavra como verdade suprema acaba servindo a quem ignora que as pessoas não tiveram acesso aos mesmos direitos para começarem suas caminhadas individuais e que, portanto, partem de lugares diferentes. Uns mais à frente, outros bem atrás.
Achar que um estudante que comia bolachas de lama, brincava com ossinhos de zebu, andava 167 quilômetros por dia para chegar à escola e ainda trabalhava no matadouro do município para ajudar na renda da família parte com igualdade de condições com outro que frequenta uma escola com laboratórios que simulam gravidade zero e possui professores com pós-doutorado em Oxford e são remunerados à altura, que viaja para um lugar diferente todos os anos a fim de conhecer o mundo e não precisará trabalhar até o final da pós-graduação é um tanto quanto irracional.
Os dois podem chegar lá. Mas se o segundo caso cruza a linha de chegada mais vezes, o primeiro é um a cada milhão. Por isso, essas histórias são contadas e recontadas à exaustão: primeiro, nós gostamos de falar de milagres e, segundo, são histórias úteis para convencer os outros que se um consegue, todos podem.
O que não é verdade. Pois, dessa forma, jogamos a responsabilidade de erros históricos não compensados e de uma desigualdade crônica de condições nas próprias pessoas que terão que vencê-las.
Há muita gente contrária a conceder benefícios para tentar equalizar as condições de quem a sorte sorriu menos. Acreditam que a única forma de garantir Justiça é tratar desiguais como iguais e aguardar que as forças do universo façam o resto.
E esse discurso é tão bem contado que, não raro, são apoiados por pessoas que, apesar de largarem em desvantagem, venceram. “Tive uma infância muito pobre e venci mesmo assim. Se pude, todos podem.” Parabéns para você! Mas ao invés de pensar que todos têm que comer o pão que o diabo amassou como você, não seria melhor pensar que um mundo melhor seria aquele em que isso não fosse preciso? De vez em quando penso que, quando nos esforçamos, podemos ser bem mesquinhos.
Como não boto muita fé que o lema “Pátria Educadora” vá resultar em melhoria do sistema educacional público, o que ajudaria a igualar um pouco as condições, e como não é possível acabar com o direito a qualquer herança (o que, hipoteticamente levaria cada geração a começar do zero, mas destruiria a sociedade como a conhecemos), o jeito é continuar apoiando medidas compensatórias e que tratam diferentes de forma diferente.
E demonstrando muito amor e paciência com quem acha que, quem não vence, é vagabundo.
Leonardo Sakamoto, in blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br

Pequeno poema didático


O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconsequente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas!
Mário Quintana

A eterna dúvida

“Um certo dia, enfastiado de todas as suas obras e delicadas maquinações e artifícios para povoar a terra de musgos, água, rochas e bichos – de variados tipos, tamanhos e sortilégios, estúpidos e ferozes, cheios de pêlos ou escamas -Ele, o Sem-Nome, o Inominável, o Rosto Sem Face, criou um estranho animal, misturado de medo, cheiros e truculências, e se esqueceu de dar a ele uma razão qualquer para estar ali, entre os rios e o fogo, a luz e a escuridão. Ao que parece, deixou-o imerso na perplexidade e no desalento, entregue à eterna dúvida sobre o seu destino e o significado de sua passagem e finitude.”
Hilda Hilst, in Revista Palavra n° 6/1999

Voltar à terrinha

“Esse desejo doido de voltar para a aldeola que ficou lá, muito longe, entre montanhas, é uma coisa muito natural. Ele, eu, todos enfim, temos essa nostalgia que nos faz ver a torre da igreja, as paredes brancas do cemitério, os atalhos verdes semeados de florzinhas. Mas a gente reage, faz-se forte e... fica. O que é preciso é o sujeito estar preparado para receber todos os choques da adversidade.”
Graciliano Ramos

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Pôr-do-sol


“Sentados na varanda, contemplamos um pôr-do-sol inverossímil. Um flerte da natureza com o clichê.”
Marçal Aquino, in Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

Para além da representação

“Há alguma coisa para além da representação? É a consciência uma janela fiel dando para a realidade, ou, antes, um sistema de lentes embaciadas e riscadas pela história, que filtram só imagens falsas e sombras incertas da verdade? E há deveras qualquer coisa por trás do conhecimento, ou apenas o nada, como por trás da vida? Seria talvez apenas espelho de si mesmo casca sem tronco e roupagem sobre o vácuo?”
Giovanni Papini, in Um homem liquidado

Oi

Só passei pra te lembrar
Que, como todo mar, estamos propensos a ir e voltar
Às vezes está frio, mas esquenta.
Tudo depende desses peixes que nos ocupam,
Dessas correntes que nos percorrem,
Dessas nuvens que nos impedem de ver a luz.
Por ora, mesmo, só passei pra te lembrar
Que, sim, pode estar frio, por ora,
Mas, como o seu período, e como o nosso,
O inverno passa, nuvem cai e passa, peixe foge
E corrente, em toque de maresia, uma hora arrebenta.
João Paulo Pereira

O sonho

“O problema é construir a vida como se fosse um sonho, não um sonho vivo, mas um sonho que tivéssemos inventado. Um sonho que não fosse a visão de um insensato, num completo desconhecimento das coisas – mas um milagre de harmonia, de equilíbrio e de compreensão. Aliás, que outra finalidade emprestar às pobres coisas desamparadas que somos, senão a de compreender, compreender sempre e mais profundamente, até poder aceitar tudo sem revolta? Compreender com a alma, o coração, os dedos, os lábios, com tudo o que é dotado de um sentido qualquer de percepção, com as pequenas e inúmeras almas antagônicas que nos constituem. Então viveremos como um sonho, acordados e lúcidos, que a realidade, é sempre bom repetir, é um mistério cujo alfabeto jamais soletramos com inteira coerência.”
Lúcio Cardoso, in Diários

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A educação transforma a sociedade

“Não é possível refazer este país, democratizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo. Todos educam-se entre si, mediatizados pelo mundo.”
Paulo Freire

Como ler uma pintura

Bandeirinhas e mastros (década de 60), de Alfredo Volpi

Não projetar na tela os discursos prontos ou toda a erudição da história da arte. Você estaria vendo com olhos alheios, que poderiam induzi-lo a ver coisas de que a obra não fala e deixar de ver a própria obra. É preciso ver com olhos inocentes. Contudo, inocência não significa ignorância, mas ausência de preconceitos. A prender a ver é desvestir a alma.
Cada arte tem sua linguagem. A música fala através do som/silêncio; a pintura, através de cores, linhas e formas; o cinema, através da imagem-pensamento no tempo. A essa materialidade o artista – usando metáforas, paródias, alegorias – empresta uma transcendência. O resultado é o que chamamos forma artística. Entretanto, não existem regras para se ver um quadro.
A linguagem da pintura não se presta a argumentações. A pintura não é um enunciado científico, nem ideológico, nem moral. O que não impede, como vimos, que se preste a tudo isso, mas no sentido de funções secundárias.
Não se deve buscar uma única mensagem na pintura, pois a grande obra pode conter várias ou nenhuma. Mais do que denotativos (de conteúdo meramente informativo), os signos da pintura tendem para a conotação (ideias associadas, sugestão ao leitor de uma visão de mundo). É preciso entender que uma pintura pode revelar o inconsciente, seja do artista, seja de uma cultura, e que ela brota no limite entre real e imaginário. Do mesmo modo, é preciso entender que uma pintura só alcança o universal se estiver fundada no particular. O universal sem o particular é vazio. As bandeirinhas de Alfredo Volpi apresentam tanto a alma provinciana do habitante de uma cidadezinha do interior como a de qualquer indivíduo sensível. Partindo da expressão popular das formas naturais, alcança a sofisticada abstração de formas dos artistas de vanguarda. Por último, entender que arte não é tradução, não é espelho do artista ou da realidade. É construção e criação de signos novos, doadora de sentidos. É uma forma do ser.
Tomando-se esses cuidados, é possível ir em busca de informações dos estudiosos da arte, críticos, estetas e historiadores, compreendendo o que disseram da obra, ampliando a nossa percepção da própria obra. Entretanto, essas informações, embora valiosas, são sempre complementares. Importa, antes, ver a obra com empatia e com o próprio espírito. Claro que um espírito mais rico aprecia mais e experimenta um prazer mais profundo.
Maria José Justino, in Para filosofar

Soneto 89, de William Shakespeare

Dize-me que me abandonas por um erro meu,
E te explicarei a razão de minha ofensa;
Dize-me que fui fraco, e eu aquiescerei,
Sem opor defesa alguma aos teus motivos.
Não podes, amor, desgraçar-me assim,
Determinando a forma ante teu desejo,
Como será minha desgraça saber a tua vontade.
Reconhecerei a falta, e parecerei estranho,
Ausentar-me-ei de teu lado e, em minha língua,
Não mais viverá teu doce e amado nome,
A menos que eu erre, por ser demais profano,
E, alegre, revele a nossa velha amizade.
Por ti, contra mim mesmo, jurarei lutar,
Pois a quem odeias, jamais poderei amar.

Incoerência humana

“O homem é essa realidade em que dois e dois não são quatro.”
Dostoievski

O homem está condenado a ser livre

“É o que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, e responsável por tudo o que faz.”
Jean-Paul Sartre

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

A consciência

“Há no fundo das almas um princípio inato de justiça e de virtude pelo qual julgamos as nossas ações e as do próximo como boas ou más, e é a esse princípio que denomino consciência. Consciência! Instinto divino, voz celeste e imortal... juiz infalível do bem e do mal!”
Jean-Jacques Rousseau, in Emílio ou da educação

O que é a felicidade

“Ser o que se pode é a felicidade. Pensou nisto a Isaura. Não adiantar sonhar com o que é feito apenas de fantasia e querer aspirar ao impossível. A felicidade é a aceitação do que se é e se pode ser. Sentou-se ao pé da mãe e percebeu como ela piorara. Estavam as duas tão longe do dia em que, tão trágica como comicamente, a Maria começara a falar semelhante aos franceses. A voz apodrecera-lhe na boca. Estava afundada goelas abaixo sem nunca mais voltar a ser ouvida. Morrera. A voz dela morrera.”
Valter Hugo Mãe, in O filho de mil homens

Tédio

“Obriguem os homens a se deitar durante dias e dias: os colchões conseguiriam o que nem as guerras nem os slogans puderam fazer. Pois as manobras do Tédio superam, em eficácia, as das armas e das ideologias.”
Emil Michel Cioran, in Silogismos da Amargura

Corações não usam palavras


“Ficamos assim por muito tempo, no quarto quentinho e reconfortante, com nosso coração escancarado. Aprendi, naquele momento, que corações não usam palavras para falar, ao contrário do que dizem os filmes e as músicas. Acho que precisam de muito mais espaço. Enfim, tudo que sei é que meu coração estava com uma febre alta e terrível naquele dia, e que, no silêncio, vovô trouxe consigo uma chuva refrescante.”
Crystal Chan, in Passarinho

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Nossa imprevidência

“É tal a nossa imprevidência ou ignorância que tomamos por um mal grave o que, frequentes vezes, é origem e ocasião dos maiores bens.”
Marquês de Maricá

Brasil: país dos coronéis dos meios de comunicação


“Entre as várias batalhas que ainda teremos de enfrentar para vivermos em um país democrático, em uma democracia de fato, a batalha por uma legislação que regule a posse e o uso dos meios de comunicação certamente estará entre as mais difíceis, mais duras.
No Brasil, o direito à informação e à expressão da pluralidade de posições que caracterizam uma sociedade democrática não está sendo assegurado, nem o será facilmente.
Observa-se que, ao lado dos obstáculos políticos, existem obstáculos econômicos à liberdade de expressão. As informações, especialmente de interesse social e político, invariavelmente, estão vinculadas à opinião/posição dos proprietários dos veículos de comunicação de massa. A ênfase dada a determinadas manchetes, o lugar reservado para alguns assuntos e o seu próprio conteúdo revelam mecanismos de manipulação psicológica e ideológica não suscetíveis ao controle democrático.”
Jacira de Melo, in País dos coronéis dos meios de comunicação

Pedimos com insistência

Nós vos pedimos com insistência:
Não digam nunca: isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia,
Numa época em que reina a confusão,
Em que corre sangue,
Em que o arbítrio tem força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza,
Não digam nunca: isso é natural!
Para que nada passe a ser imutável!
Bertolt Brecht

domingo, 25 de janeiro de 2015

As relações entre os homens

“O indivíduo não entra em relação com outros homens por justaposição, mas, organicamente, ou seja, enquanto passa a fazer parte de organismos, dos mais simples aos mais complexos. Assim, o homem não entra em relações com a natureza, simplesmente pelo fato de ser ele mesmo natureza, mas ativamente, por meio do trabalho e da técnica. Mais ainda: estas relações não são mecânicas. São ativas e conscientes, correspondem a um grau maior ou menor de inteligência que delas tem o homem particular. Por isso, se pode dizer que cada um muda a si mesmo, se modifica, na medida em que muda e modifica todo o conjunto de relações de que ele é o centro de ligação. (...) Não basta conhecer o conjunto das relações enquanto existem num dado sistema, mas importa conhecê-las geneticamente, no seu movimento de formação, já que cada indivíduo não é apenas a síntese das relações existentes, mas também a história dessas relações, é o resumo de todo o passado. Dir-se-ia que aquilo que cada um pode mudar é bem pouco em relação às suas forças. Uma vez que cada indivíduo pode se associar com todos os que querem a mesma mudança e se esta mudança é racional, o indivíduo pode multiplicar-se por um número imponente de vezes e obter uma mudança bem mais radical do que à primeira vista pode parecer possível.”
Antonio Gramsci, in Obras escolhidas

A beleza

“Todas as belezas contêm, como todos os fenômenos possíveis, algo de eterno e algo de transitório, de absoluto e de particular. A beleza absoluta e eterna não existe, ou melhor, ela não é mais que uma abstração que desflora na superfície geral de diversas belezas. O elemento particular de cada beleza provém das paixões e, como temos nossas paixões particulares, temos nossa beleza.”
Charles Baudelaire

Tudo se esvai

“As pessoas viviam apenas para si próprias, para a sua própria satisfação e tudo o que diziam de Deus e do Bem não passava de mentiras. E se, por acaso, alguém perguntasse porque é que sobre a terra tudo está organizado de tal maneira que os homens não cessam de fazer o mal, não havia oportunidade para refletir sobre isso. Vem o tédio: um cigarro, um copo de aguardente, ou, melhor ainda, um pouco de amor, e tudo se esvai!”
Leon Tolstoi, in Ressurreição

Arte abstrata

Futebol em Hyde Park (1964), de Antonio Bandeira

O artista inventa a humanidade

“Só o artista inventa a humanidade. Porque sendo out-law (marginal), extraeconômico por natureza, sem povo por natureza, o artista não deixa por menos: o que ele exige é a humanidade.”
Mário de Andrade

sábado, 24 de janeiro de 2015

Feliz

“Ser feliz é uma responsabilidade muito grande. Pouca gente tem coragem. Tenho coragem mas com um pouco de medo. Pessoa feliz é quem aceitou a morte. Quando estou feliz demais, sinto uma angústia amordaçante: assusto-me. Sou tão medrosa. Tenho medo de estar viva porque quem tem vida um dia morre. E o mundo me violenta. Os instintos exigentes, a alma cruel, a crueza dos que não têm pudor, as leis a obedecer, o assassinato — tudo isso me dá vertigem como há pessoas que desmaiam ao ver sangue: o estudante de medicina com o rosto pálido e os lábios brancos diante do primeiro cadáver a dissecar. Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus.”
Clarice Lispector, in Um Sopro de Vida

Produtores e produtos

“A medicina produz enfermos; a matemática, melancólicos; e a teologia, pecadores.”
Martinho Lutero

Olho as minhas mãos

Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distende-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas do fundo do mar...
Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras!
Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável do tempo,
Que me sustenta, e mata, e que vai secretando o pensamento como tecem as teias as aranhas.
A que mundo
Pertenço?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem cessar.
Mas nada, disso tudo, diz: “existo”.
Porque apenas existem...
Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas,
Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento
Mistura, confunde e dispersa no ar...
Nem na estrela do céu nem na estrela do mar
Foi este o fim da Criação!
Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos?
Quem faz – em mim – esta interrogação?
Mário Quintana

Detalhes da minha infância

“É curioso, a idade aguça alguns dos defeitos inerentes à nossa natureza – muito do que sou hoje, marcado em características por assim dizer essenciais, foram simples detalhes da minha infância. Não sei o que serão mais tarde, quando já tão graves me parecem agora.”
Lúcio Cardoso, in Diários

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A felicidade é simples

“Só se pode ser feliz simplificando, simplificando sempre, arrancando, diminuindo, esmagando, reduzindo; e a inteligência cria em volta de nós um mar imenso de ondas, de espumas, de destroços, no meio do qual somos depois o náufrago que se revolta, que se debate em vão, que não quer desaparecer sem estreitar de encontro ao peito qualquer coisa que anda longe: raio de sol em reflexo de estrelas. E todos os astros moram lá no alto.”
Florbela Espanca, in Diário do Último Ano

Ainda que mal

Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.
Carlos Drummond de Andrade

Três certezas


“Vou compartilhar com você três certezas. A: essa sociedade está fora da sociedade, todos, absolutamente todos, são como os antigos cristãos no circo. B: os crimes têm assinaturas diferentes. C: essa cidade parece pujante, parece progredir de alguma maneira, mas o melhor que poderiam fazer é sair uma noite ao deserto e cruzar a fronteira, todos sem exceção, todos, todos.”
Roberto Bolaño, in 2666

O olhar da opinião

“Na vida, o olhar da opinião, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupam-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo.”
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

Quero ficar só

“Mas não quero resposta, quero ficar só. Gosto muito das pessoas mas essa necessidade voraz que às vezes me vem de me libertar de todos. Enriqueço na solidão: fico inteligente, graciosa e não esta feia ressentida que me olha do fundo do espelho. Ouço duzentos e noventa e nove vezes o mesmo disco, lembro poesias, dou piruetas, sonho, invento, abro todos os portões e quando vejo a alegria está instalada em mim.”
Lygia Fagundes Telles, in As meninas

Amor

“Não sei que nome você daria a isso. Bem, não importa muita coisa, chame do que quiser.
Eu chamo de amor.”
Marçal Aquino, in Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

Ismael


“Chamai-me Ismael.  Faz alguns anos – não importa quantos, precisamente -, tendo na bolsa escasso ou nenhum dinheiro e nada que particularmente me interessasse em terra, achei que devia velejar um pouco e ver a parte aquosa do mundo. É um hábito que tenho para acabar com o esplim e regular a circulação. Sempre que começo a ficar austero; sempre que é um novembro úmido e chuvoso em minha alma; sempre que dou comigo a parar involuntariamente diante de empresas funerárias e a cerrar a fila em cada enterro que encontro; e especialmente, sempre que minha hipocondria adquire tal domínio sobre mim que é preciso um sólido princípio moral para impedir-me de sair deliberadamente para a rua e metodicamente surras as pessoas – então acho que está na hora de ir para o mar o mais depressa possível.”
Herman Melville, in Moby Dick

sábado, 3 de janeiro de 2015

Risos e lágrimas na política

           “Se há muito riso quando um partido sobe, também há muita lágrima do outro que desce, e do riso e da lágrima se faz o primeiro dia da situação, como no gênesis.”
Machado de Assis, in Esaú e Jacó

A felicidade

       “A felicidade não é uma questão fácil; é muito difícil encontrá-la em nós mesmos, e impossível encontrá-la alhures.”
Chamfort

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Liberdade

             “Não importa se a liberdade é suprimida em nome da igualdade ou da pátria ou de qualquer outro ideal: é tudo tirania.”
  Thomas Hobbes

Leitores subversivos

“Os regimes populares exigem que esqueçamos, e, portanto, classificam os livros como luxos supérfluos; os regimes totalitários exigem que não pensemos, e, portanto, proíbem, ameaçam e censuram; ambos, de um modo geral, exigem que nos tornemos estúpidos e que aceitemos nossa degradação docilmente, e, portanto, estimulam o consumo de mingau. Nessas circunstâncias, os leitores não podem deixar de ser subversivos.”
Alberto Manguel

Casa no Campo, com Zé Rodrix, Tavito & Jazz Big Band



Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais.

Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar do tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais.

Eu quero carneiros e cabras pastando
Solenes no meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas.

Eu quero a esperança de óculos
E um filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão,
A pimenta e o sal.

Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau a pique e sapê
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros e nada mais.

Tavito / Zé Rodrix

Luta contra a monotonia

“Os grandes poetas e os grandes artistas têm por função social remover continuamente a aparência que reveste a natureza, aos olhos dos homens. Sem os poetas, sem os artistas, os homens aborrecer-se-iam depressa com a monotonia natural.”
Apollinaire

Informação: um mero meio

“Em geral, estudantes e estudiosos de todos os tipos e de qualquer idade têm em mira apenas a informação, não a instrução. Sua honra é baseada no fato de terem informações sobre tudo, sobre todas as pedras, ou plantas, ou batalhas, ou experiências, sobre o resumo e o conjunto de todos os livros. Não ocorre a eles que a informação é um mero meio para a instrução, tendo pouco ou nenhum valor por si mesma, no entanto é essa maneira de pensar que caracteriza uma cabeça filosófica. Diante da imponente erudição de tais sabichões, às vezes digo para mim mesmo: Ah, essa pessoa deve ter pensado muito pouco para poder ter lido tanto! Até mesmo quando se relata, a respeito de Plínio, o Velho, que ele lia sem parar ou mandava que lessem para ele, seja à mesa, em viagens ou no banheiro, sinto a necessidade de me perguntar se o homem tinha tanta falta de pensamentos próprios que era preciso um afluxo contínuo de pensamentos alheios, como é preciso dar a quem sofre de tuberculose um caldo para manter sua vida. E nem a sua credulidade sem critérios, nem o seu estilo de coletânea, extremamente repugnante, difícil de entender e sem desenvolvimento contribuem para me dar um alto conceito do pensamento próprio desse escritor.”
Arthur Schopenhauer, in Sobre a erudição e os eruditos