73.
No alto ermo dos montes naturais
temos, quando chegamos, a sensação do privilégio. Somos mais
altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo
da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob as solas dos pés.
Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós tudo é
mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o
erguimento e o píncaro que somos.
Tudo em nós é acidente e malícia, e
esta altura que temos, não a temos; não somos mais altos no alto do
que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos
altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.
Respira-se melhor quando se é rico;
é-se mais livre quando se é célebre; o próprio ter de um título
de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício
nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou
nascemos na casa do monte.
Grande, porém, é o que considera que
do vale ao céu, ou do monte ao céu, a distância que o diferença
não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor
nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de
Júpiter, de ventos, como a de Éolo, o abrigo seria o não termos
subido, e a defesa o rastejarmos.
Sábio deveras é o que tem a
possibilidade da altura nos músculos e a negação de subir no
conhecimento. Ele tem, por visão, todos os montes; e tem, por
posição, todos os vales. O sol que doura os píncaros dourá-los-á
para ele mais que para quem ali o sofre; e o palácio alto entre
florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o
esquece nas salas que o constituem de prisão.
Com estas reflexões me consolo, pois
que me não posso consolar com a vida. E o símbolo funde-se-me com a
realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas
que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade esplender, como
a glória alheia, das luzes várias de um sol que já nem está no
poente.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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