Um dia acordei às quatro da
madrugada. Minutos depois tocou o telefone. Era um compositor de
música popular que faz as letras também. Conversamos até seis
horas da manhã. Ele sabia tudo a meu respeito. Baiano é assim? E
ouviu dizer coisas erradas também. Nem sequer corrigi. Ele estava
numa festa e disse que a namorada dele – com quem meses depois se
casou – sabendo a quem ele telefonava, só faltava puxar os cabelos
de tanto ciúme. Na reunião tinha uma Ana e ele disse que ela era
ferina comigo. Convidou-me para uma festa porque todos queriam me
conhecer. Não fui.
Em compensação estive uma vez numa
festa na casa de Pedro e Miriam Bloch. Foi poucos meses antes da
morte de Guimarães Rosa. Guimarães Rosa e Pedro foram comigo para
outra sala, na qual pouco depois entrou Ivo Pitanguy. Guimarães Rosa
disse que, quando não estava se sentindo bem em matéria de
depressão, relia trechos do que já havia escrito. Espantaram-se
quando eu disse que detesto reler minhas coisas. Ivo observou que o
engraçado é que parece que eu não quero ser escritora. De algum
modo é verdade, e não sei explicar por quê. Mas até ser chamada
de escritora me encabula. Nessa mesma festa Sérgio Bernardes disse
que há anos tinha uma conversa para ter comigo. Mas não tivemos.
Pedi uma Coca-Cola, em vez. Ele estava falando com o nosso grupo
coisas que eu não entendia e não sei repetir. Então eu disse:
adoro ouvir coisas que dão a medida de minha ignorância. E tomei
mais um gole de Coca-Cola. Não, não estou fazendo propaganda de
Coca-Cola, e nem fui paga para isso.
Guimarães Rosa então me disse uma
coisa que jamais esquecerei, tão feliz me senti na hora: disse que
me lia, “não para a literatura, mas para a vida”. Citou de cor
frases e frases minhas e eu não reconheci nenhuma.
Outra pessoa que me telefonava de
madrugada explicara que passava pela minha rua, via a luz acesa, e
então me telefonava. No terceiro ou quarto telefonema disse-me que
eu não merecia mentiras: na verdade o fundo da casa dele dava para a
frente da minha e ele me via todas as noites. Como se tratava de
oficial de marinha, perguntei-lhe se tinha binóculo. Ficou em
silêncio. Depois me confessou que me via de binóculo. Não gostei.
Nem ele se sentiu bem de ter dito a verdade, tanto que avisou que
“perdera o jeito” e não me telefonaria mais. Aceitei. Fui então
à cozinha esquentar um café. Depois sentei-me no meu canto de tomar
café, e tomei-o com toda a solenidade: parecia-me que havia um
almirante sentado à minha frente. Felizmente terminei esquecendo que
alguém pode estar me observando de binóculo e continuo a viver com
naturalidade. Como vocês veem isto não é coluna, é conversa
apenas. Como vão vocês? Estão na carência ou na fartura?
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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