Conheçam a irmãzinha de vocês!
— MAE ALICE DAVIS
Quando eu tinha 11 anos, outra menina
foi adicionada à nossa família: Danielle. Não tínhamos telefone,
então quando minha mãe foi para o hospital em trabalho de parto na
noite anterior ao nascimento, eles disseram que ligariam para os
bombeiros assim que o bebê nascesse. Na manhã seguinte, meu pai nos
fez acordar cedo e limpar a casa todinha. Era a forma dele de
contribuir e lidar com o nervosismo. Nós varremos, limpamos. Por
fim, um jovem veio correndo colina acima, sem fôlego e com um pedaço
de papel que dizia: “Parabéns! Um bebê de 3,170 kg nasceu esta
manhã.”
Ficamos muito animados. Gritamos e
pulamos pra lá e pra cá. Foi um momento de alegria pura e
desenfreada que ficou marcado na minha memória. Meu pai falou para
nos vestirmos e começarmos a longa caminhada até o hospital.
Levamos horas porque não tínhamos dinheiro para o ônibus. Mas,
minha nossa, estávamos tomados pela emoção. Andamos em uma única
fileira, às vezes na lateral da estrada; em outras, na calçada.
Enfim, chegamos ao hospital depois de uma caminhada de duas horas,
entramos no quarto e vimos minha mãe. Ela estava deitada com um
cobertor em volta do bebê. Lembro as exatas palavras dela: “Conheçam
a irmãzinha de vocês!” Ela tirou o cobertor e revelou a bebê
mais linda. Negra e com um cabelão crespo. Choramos, derretidos de
amor.
Antes disso, eu era a bebê da
família, mas agora tinha o papel de irmã mais velha. Um tipo de
transformação começou a ocorrer. Na época, eu não tinha palavras
para descrever a mudança de amar alguém mais do que a mim mesma, de
enxergar além de mim. Não é possível colocar em palavras a nossa
proximidade. Fazíamos absolutamente tudo juntas. Nunca queria
deixá-la. Nunca. Foi como se a vida tivesse sido injetada em nossa
vida. Eu trocava fraldas, a colocava para dormir, cuidava dela, dava
remédio quando ela adoecia. E a abraçava forte quando nossos pais
brigavam. Ela era o nosso filhote e a aceitamos na alcateia.
Eu tinha 11 anos e já menstruava
havia um ano, mas não era nem de longe madura. Tinha um temperamento
terrível. Mas em casa não demonstrava. Tinha muito medo do meu pai.
Já na escola, eu ficava descontrolada. Sempre respondona. Meus
professores viviam procurando maneiras de me manter quieta. Recebia
advertências rosa e brancas. As rosa eram as piores. Receber três
delas significava suspensão. Eu tinha três brancas e duas rosa.
Falsificava a assinatura do meu pai ou pedia para a minha irmã fazer
isso. Ainda bem que não tínhamos telefone, ou teria sido o meu fim.
Estava inquieta. Era uma garota
esquisita, raivosa, magoada e traumatizada. Não conseguia explicar o
que sentia, e ninguém perguntava. Achava que ninguém se importava.
Estava saturada de vergonha. Havia tantas coisas que não tínhamos,
ou que não podíamos fazer, tanta raiva e violência que ameaçavam
o amor… Estava tentando ser melhor. Tentei me concentrar em não
fazer xixi na cama. Houve dias em que acordei seca, mas outros em
que, mesmo indo ao banheiro antes de dormir, acordei encharcada até
o pescoço.
Minha irmãzinha era uma cura nesse
momento. Não para o xixi na cama, mas era a alegria diária, porque
me amava. Ela via minha essência.
Um dia, quando estávamos chegando em
casa da escola, Deloris e eu vimos gotas enormes de sangue na
calçada. Deloris sussurrou baixinho: “Ai, meu Deus.” Chegamos
aos degraus da frente e vimos mais sangue e a janela na frente da
porta quebrada. Entramos. Anita e Dianne estavam em choque. Dianne
segurava Danielle, cuja camisa estava embebida em sangue. Quase
gritei, mas Dianne disse:
— Ela está dormindo. MaPapa está
procurando a mamãe. Disse que vai matar ela. Ele abriu a cabeça
dela, e eu peguei Danielle para ir embora, e o papai agarrou ela
pelas costas. Nós paramos eles…
O sangue em Danielle era da minha mãe.
Ficamos aterrorizadas. Por fim, meu
pai voltou. Puto. Na noite anterior, tinha tentado impedi-lo de bater
em MaMama. Ele ainda estava com raiva de mim.
— Levantem a bunda daí e me ajudem
a procurar a sua mãe. Assim que a gente encontrar, vou matar ela.
Deloris e eu fomos ajudar a procurar.
Ele ficou gritando para que eu andasse mais rápido. Por fim, viramos
à direita, e ele nos disse para ir para a esquerda. Deloris estava
olhando para um lado. Eu estava olhando para o outro. Ouvi Deloris
gritar:
— Viola, ai, meu Deus, olha.
Olhei para a esquerda e lá estava
minha mãe, na farmácia Rexall, com o rosto totalmente
ensanguentado. Os olhos dela estavam tão inchados que mal se abriam.
Usava uma camisa de gola alta e calças sujas. Estava perto do
freezer com os sorvetes, gesticulando para que a gente entrasse.
Deloris correu para chamar o meu pai. Pessoas começaram a se juntar
ao redor, e ouvi a sirene da ambulância.
Minha mãe chorava.
— Vahla, seu pai vai me matar. Eu
não aguentava mais.
A balconista da loja, que era casada
com nosso professor de ciências, estava guiando os paramédicos e
ficou me perguntando:
— O que aconteceu com ela? O que
aconteceu com a sua mãe?
Eu não conseguia falar. Olhei para a
minha mãe, para que ela me dissesse o que falar. O que eu deveria
dizer? Expor nosso segredo? Os paramédicos tentaram levar minha mãe
para a sala dos fundos. Ela parecia um animal ou uma criança
assustada. Não queria ir para lá sozinha e, com os braços
esticados, gritou:
— Vahla! Venha comigo! Não me deixe
sozinha.
Fiquei ali, sem conseguir me mexer.
Tudo o que vi foram os paramédicos dizendo baixinho: O que
aconteceu com ela?
Saí da farmácia. Pessoas que eu
conhecia da escola estavam no meio da multidão reunida lá fora.
— Viola! Aquela é a sua mãe? O que
aconteceu?
Eu não consegui dizer a elas que
minha mãe era mais do que estavam vendo. O sentimento de pena e o
julgamento estavam estampados no rosto delas. Eu queria gritar: Esta
é a minha mãe!!! Minha MÃE!!! Ela está com medo… mas ela é uma
sobrevivente!!! Ela é alguém! Eu AMO a minha mãe! Mas nada
saía da minha boca. Congelei sob o peso traumático dos olhares e
juízos de valor. De novo, eu não tinha o aparato interno para lidar
com aquilo. Só me ocorreria muito mais tarde que aquele momento não
tinha a ver com vergonha, valores ou proteção. Tinha a ver com
legado… Recebi o sangue dela, os olhos, as habilidades de
sobrevivência, a dor dela. Meu mundo era uma trilha de
comportamentos herdados e aprendidos.
Por causa da “zona de guerra” que
era a nossa casa, sempre senti que precisava ficar e proteger
Danielle. As brigas eram brutais, e pouco se atentavam ao bebê na
linha de fogo, quando socos eram desferidos ou facas atiradas. Na
maior parte do tempo, nós, as irmãs mais velhas, nos limitávamos a
amá-la. Era a melhor proteção que podíamos oferecer.
Depois de ser a mais nova por tanto
tempo, o nascimento de Danielle despertou em mim o senso de
responsabilidade. Foi como se Flo-Jo tivesse me passado o bastão sem
que eu sequer tivesse praticado. Agora eu tinha que completar o
último trecho da corrida, o relógio correndo, uma jornada em que
todos os outros corredores tinham um percentual zero de gordura e o
meu estava em 40%. Meus sapatos estavam desamarrados. Não conseguia
enxergar porque meus olhos estavam ressecados. Mesmo assim eu tinha
que correr. Meu treino tinha sido o de uma menina de escola primária,
enviada para casa encharcada de xixi. E encharcada de xixi eu agora
precisava correr com minha irmãzinha no colo.
Eu não tinha palavras para explicar
nossa pobreza, disfuncionalidade e trauma para Danielle, mas podia
abraçá-la. Podia amá-la; e só. Eu não tinha as armas para
protegê-la. Não percebia que precisava de proteção e
aconselhamento tanto quanto ela. Não sabia, nem podia admitir, que
estava devastada.
Danielle estava com 8 anos no verão
entre meu primeiro e segundo ano de faculdade. Um fim de semana, no
meio do dia, eu estava trabalhando na Brooks Drugs na Dexter Street,
na esquina do nosso apartamento, quando alguém entrou correndo e
disse:
— Ai, meu Deus! Viola, você precisa
vir. Aconteceu uma coisa com a sua irmãzinha.
Corri para fora e os policiais estavam
lá, com minha mãe gritando a plenos pulmões. MaMama estava com os
tênis do meu irmão, chorando, balançando um punho no ar para o
homem sentado no porta-malas da viatura, algemado. Com a outra mão,
segurava minha irmãzinha junto ao corpo.
Danielle estivera andando de patins e
ainda estava com eles. Ela chorava nos braços da minha mãe.
— Esse filho da puta nojento
machucou minha bebê — disse MaMama. — Desgraçado nojento.
Mais tarde, descobri que um homem
português mais velho frequentava a loja de conveniência na Dexter
Street e molestava as garotinhas que entravam ali. Supostamente, ele
ia à loja comprar cigarros. Mas ficava circulando pelos corredores e
oferecendo dinheiro às garotinhas se elas deixassem que ele as
tocasse.
Danielle e uma das amigas dela tinham
ido de patins até a loja, que ficava a mais ou menos um minuto da
nossa casa, para comprar doces. Estavam no corredor dessa seção
quando o velho se aproximou de Danielle, falando em português,
tentando lhe oferecer dinheiro. Ela não sabia o que ele estava
dizendo. Quando ele tocou as “partes” dela, Danielle se
desesperou, e ela e a amiga saíram de lá voando.
A amiga dela disse:
— Você tem que contar pra sua mãe.
Você tem que contar pra sua mãe.
E foi o que Danielle fez. MaMama
calçou os primeiros sapatos que encontrou, correu para a Dexter
Street e gritou:
— Seu filho da puta, você tocou a
minha filha! Tem um homem nessa loja que tocou a minha filha. Vou
chamar a polícia.
O dono da loja tentou acalmar minha
mãe:
— Senhora, ele faz isso com todas as
garotinhas. Não tem nada de mais.
— É demais, sim, seus filhos da mãe
— disse minha mãe. E correu para fora da loja, para o meio da rua,
sinalizou para a polícia e identificou o velho. — É aquele homem.
Foi isso o que ele fez com a minha filha. Vou prestar queixa.
Foi quando fui chamada. Os policiais o
prenderam enquanto MaMama o xingava e segurava Danielle que
estava chorando.
O homem não falava inglês. A única
coisa que o sistema fez foi multá-lo. Pelos meses seguintes, minha
irmã recebeu nove dólares do homem que a molestou. Nove dólares
por mês. Essa foi a multa. Nenhuma queixa foi prestada.
Danielle era a nossa bebê. Seu
primeiro instinto quando ama uma criança é protegê-la da dor do
mundo… e da vida. E a revelação mais dolorosa é quando você
percebe que não é capaz de fazer isso o tempo todo. Ser humano não
é ser Deus. Àquele homem foi permitido que destruísse almas.
Foi difícil nos recuperar depois
disso. Danielle tinha a gigantesca tarefa de se curar. Até hoje,
quase quarenta anos depois, ela ainda está descobrindo como fazer
isso. Tudo o que eu podia fazer era amá-la… e eu a amei e amo até
hoje. Ela é um reflexo de mim.
Viola Davis, in Em busca de mim

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