Éramos onze passageiros, um homem
doido, acompanhado pela mulher, dois rapazes que iam a passeio,
quatro comerciantes e dois criados. Meu pai recomendou-me a todos,
começando pelo capitão do navio, que aliás tinha muito que cuidar
de si, porque, além do mais, levava a mulher tísica em último
grau.
Não sei se o capitão suspeitou
alguma coisa do meu fúnebre projeto, ou se meu pai opôs de
sobreaviso; sei que não me tirava os olhos de cima; chamava-me para
toda a parte. Quando não podia estar comigo, levava-me para a
mulher. A mulher ia quase sempre numa camilha rasa, a tossir muito, e
a afiançar que me havia de mostrar os arredores de Lisboa. Não
estava magra, estava transparente; era impossível que não morresse
de uma hora para outra. O capitão fingia não crer na morte próxima,
talvez por enganar-se a si mesmo. Eu não sabia nem pensava nada. Que
me importava a mim o destino de uma mulher tísica, no meio do
oceano? O mundo para mim era Marcela.
Uma noite, logo no fim de uma semana,
achei ensejo propício para morrer. Subi cauteloso, mas encontrei o
capitão, que junto à amurada, tinha os olhos fitos no horizonte.
– Algum temporal? disse eu.
– Não, respondeu ele estremecendo;
não; admiro o esplendor da noite. Veja; está celestial!
O estilo desmentia da pessoa, assaz
rude e aparentemente alheia a locuções rebuscadas. Fitei-o; ele
pareceu saborear o meu espanto. No fim de alguns segundos, pegou-me
na mão e apontou para a lua, perguntando-me por que não fazia uma
ode à noite; respondi-lhe que não era poeta. O capitão rosnou
alguma coisa, deu dois passos, meteu a mão no bolso, sacou um pedaço
de papel, muito amarrotado; depois à luz de uma lanterna, leu uma
ode horaciana sobre a liberdade da vida marítima. Eram versos dele.
– Que tal?
Não me lembra o que lhe disse;
lembra-me que ele me apertou a mão com muita força e muitos
agradecimentos; logo depois recitou-me dois sonetos; ia recitar-me
outro, quando o vieram chamar da parte da mulher. – Lá vou, disse
ele; e recitou-me o terceiro soneto, com pausa, com amor.
Fiquei só; mas a musa do capitão
varrera-me do espírito os pensamentos maus; preferi dormir, que é
modo interino de morrer. No dia seguinte, acordamos debaixo de um
temporal, que meteu medo a toda a gente, menos ao doido; esse entrou
a dar pulos, a dizer que a filha o mandava buscar, numa berlinda; a
morte de uma filha fora a causa da loucura. Não, nunca me há de
esquecer a figura hedionda do pobre homem, no meio do tumulto das
gentes e dos uivos do furacão, a cantarolar e a bailar, com os olhos
a saltarem-lhe da cara, pálido, a coma hirsuta e descomposta. As
vezes parava, erguia ao ar as mãos ossudas, fazia uma cruzes com os
dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria muito,
desesperadamente.
A mulher não podia já cuidar dele;
entregue ao terror da morte, rezava por si mesma a todos os santos do
céu. Enfim, a tempestade amainou. Confesso que foi uma diversão
excelente à tempestade do meu coração. Eu, que meditava ir ter com
a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo.
Amainou o temporal, o capitão veio
perguntar-me se tivera medo, se estivera em risco, se não achara
sublime o espetáculo; tudo isso com um interesse de amigo.
Naturalmente a conversa versou sobre a vida do mar; o capitão
perguntou-me se não gostava de idílios piscatórios; eu
respondi-lhe ingenuamente que não sabia o que era.
– Vai ver, respondeu ele.
E recitou-me um poemazinho, depois
outro, – uma égloga, – e enfim cinco sonetos, com os quais
rematou nesse dia a confidência literária. No dia seguinte, antes
de me recitar nada, explicou-me o capitão que só por motivos graves
abraçara a profissão marítima, porque a avó queria que ele fosse
padre, e com efeito possuía algumas letras latinas; não chegou a
ser padre, mas não deixou de ser poeta, que era a sua vocação
natural; e em prova de que tal era a sua vocação, recitou-me logo,
de corpo presente, uma centena de versos.
Notei um fenômeno: os ademanes que
ele usava eram tais, que uma vez me fizeram rir; mas o capitão,
quando recitava, de tal sorte olhava para dentro de si mesmo, que não
viu nem ouviu nada.
Os dias passavam, e as águas, e os
versos, e com eles ia também passando a vida da mulher. Estava por
pouco. Um dia, logo depois do almoço, disse-me o capitão que a
enferma talvez não chegasse ao fim da semana.
– Já! exclamei.
– Passou muito mal a noite.
Fui vê-la; achei-a, na verdade, quase
moribunda, mas falando ainda de descansar em Lisboa alguns dias,
antes de ir comigo a Coimbra, porque era seu propósito levar-me à
Universidade. Deixei-a consternado; fui achar o marido a olhar para
as vagas, que vinham morrer no costado do navio, e tratei de o
consolar; ele agradeceu-me, relatou-me a história dos seus amores,
elogiou a fidelidade e a dedicação da mulher, relembrou os versos
que lhe fez, e recitou-mos. Neste ponto vieram buscá-lo da parte
dela; corremos ambos; era uma crise. Esse e o dia seguinte foram
cruéis; o terceiro foi o da morte; eu fugi ao espetáculo, tinha-lhe
repugnância. Meia hora depois encontrei o capitão, sentado num
molho de cabos, com a cabeça nas mãos; disse-lhe alguma coisa de
conforto.
– Morreu como uma santa, respondeu
ele; e, para que estas palavras não pudessem ser levadas à conta de
fraqueza, ergueu-se logo, sacudiu a cabeça, e fitou o horizonte, com
um gesto longo e profundo. – Vamos, continuou, entreguemo-la à
cova que nunca mais se abre.
Efetivamente, poucas horas depois, era
o cadáver lançado ao mar, com as cerimônias do costume. A tristeza
murchara todos os rostos; o do viúvo trazia a expressão de um
cabeço rijamente lascado pelo raio. Grande silêncio. A vaga abriu o
ventre, acolheu o despojo, fechou-se, – uma leve ruga, – e a
galera foi andando. Eu deixei-me estar alguns minutos, à popa, com
os olhos naquele ponto incerto do mar em que ficava um de nós... Fui
dali ter com o capitão, para distraí-lo.
– Obrigado, disse-me ele
compreendendo a intenção; creia que nunca me esquecerei dos seus
bons serviços. Deus é que lhos há de pagar. Pobre Leocádia! tu te
lembrarás de nós no céu.
Enxugou com a manga uma lágrima
importuna; eu busquei um derivativo na poesia, que era a paixão
dele. Falei-lhe dos versos, que me lera, e ofereci-me para
imprimi-los. Os olhos do capitão animaram-se um pouco. – Talvez
aceite, disse ele; mas não sei... são bem frouxos versos. Jurei-lhe
que não; pedi que os reunisse e me desse antes do desembarque.
– Pobre Leocádia! murmurou ele sem
responder ao pedido. Um cadáver... o mar... o céu... o navio...
No dia seguinte veio ler-me um
epicédio composto de fresco, em que estavam memoradas as
circunstâncias da morte e da sepultura da mulher; leu-mo com a voz
comovida deveras, e a mão trêmula; no fim perguntou-me se os versos
eram dignos do tesouro que perdera.
– São, disse eu.
– Não haverá estro, ponderou ele,
no fim de um instante, mas ninguém me negará sentimento, se não é
que o próprio sentimento prejudicou a perfeição...
– Não me parece; acho os versos
perfeitos.
– Sim, eu creio que... Versos de
marujo.
– De marujo poeta.
Ele levantou os ombros, olhou para o
papel, e tornou a recitar a composição, mas já então sem
tremuras, acentuando as intenções literárias, dando relevo às
imagens e melodia aos versos. No fim, confessou-me que era a sua obra
mais acabada; eu disse-lhe que sim; ele apertou-me muito a mão e
predisse-me um grande futuro.
Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas

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