terça-feira, 29 de abril de 2025

O crime foi em Granada

Imagem na internet, sem autoria

Justamente quando escrevo estas linhas, a Espanha oficial celebra muitos – tantos! – anos desde a insurreição. Neste momento, em Madri, o Caudilho vestido de ouro e azul, rodeado pela guarda moura, junto ao embaixador norte-americano, ao da Inglaterra e a vários outros, passa as tropas em revista. Tropas compostas, em sua maioria, de rapazes que não conheceram aquela guerra.
Eu é que a conheci. Um milhão de espanhóis mortos! Um milhão de exilados! Parecia que jamais se apagaria da consciência humana esse espinho sangrento. No entanto, os rapazes que agora desfilam diante da guarda moura provavelmente ignoram a verdade dessa história tremenda.
Tudo começou para mim na noite de 19 de julho de 1936. Um chileno simpático e aventureiro, chamado Bobby Deglané, era empresário de catch-as-catch-can no grande circo Price de Madri. Manifestei-lhe minhas reservas sobre a seriedade desse esporte e ele me convenceu de que eu fosse ao circo, junto com García Lorca, para verificar a autenticidade do espetáculo. Convenci Federico e ficamos de nos encontrar ali numa hora combinada. Passaríamos o tempo vendo as truculências do Troglodita Mascando, do Estrangulador Abissínio e do Orangotango Sinistro.
Federico faltou ao encontro marcado. Já estava a caminho da morte. Nunca mais nos vimos. Seu encontro era com outros estranguladores. E desse modo a guerra da Espanha, que mudou minha poesia, começou para mim com o desaparecimento de um poeta.
Que poeta! Nunca vi reunidos como nele a graça e o gênio, o coração alado e a cascata cristalina. Federico García Lorca era o duende dissipador, a alegria centrífuga que recolhia no seio e irradiava como um planeta a felicidade de viver. Ingênuo e brincalhão, cômico e provinciano, músico singular, mímico esplêndido, impressionável e supersticioso, radiante e gentil, era uma espécie de resumo das idades da Espanha, do florescimento popular, um produto árabeandaluz que iluminava e perfumava como um jasmineiro todo o cenário daquela Espanha, ai de mim!, desaparecida.
Seduzia-me o grande poder metafórico de García Lorca e me interessava tudo o que escrevia. Por sua vez ele me pedia às vezes que eu lesse para ele meus últimos poemas e, no meio da leitura, me interrompia aos gritos: “Não continua, não continua, que me influencias!”
No palco e no silêncio, na multidão e na intimidade, era um multiplicador da beleza. Nunca vi ninguém com tanta magia nas mãos, nunca tive um irmão mais alegre. Ria, cantava, fazia música, saltava, inventava, era uma chispa constante. Pobrezinho! Tinha todos os dons do mundo e, assim como foi um trabalhador de ouro, uma abelha-mestra da poesia maior, era um perdulário de seu talento.
Escuta – dizia, tomando-me pelo braço –, estás vendo essa janela? Não achas que é chorpatélica?
E que significa chorpatélica?
Também não sei mas temos que saber o que é ou não chorpatélico. Senão estamos perdidos. Olha esse cachorro como é chorpatélico!
Ou me contava que num colégio de meninos de tenra idade, em Granada, convidaram-no para uma comemoração do Quixote e que, quando chegou na sala de aula, todos os meninos cantaram sob a direção da diretora:

Sempre sempre será celebrado
de um a outro confim
este livro que foi comentado
por Dom F. Rodriguez Marín.

Certa vez dei uma conferência sobre García Lorca, anos depois de sua morte, e um dos espectadores me perguntou:
Porque o senhor disse na Ode a Federico que por ele “pintam de azul os hospitais”?
Olhe, companheiro – respondi –, fazer perguntas desse tipo a um poeta é como perguntar a idade das mulheres. A poesia não é uma matéria estática mas uma corrente fluida que muitas vezes escapa das mãos do próprio criador. Sua matéria-prima está composta de elementos que são e ao mesmo tempo não são, de coisas existentes e inexistentes. De qualquer modo tratarei de responder-lhe com sinceridade. Para mim a cor azul é a mais bela das cores. Tem a implicação do espaço humano, como a abóbada celeste, em direção à liberdade e à alegria. A presença de Federico, sua magia pessoal, impunham uma atmosfera de júbilo ao seu redor. Meu verso provavelmente quer dizer que inclusive os hospitais, inclusive a tristeza dos hospitais, podiam se transformar sob o sortilégio de sua influência e se verem convertidos subitamente em belos edifícios azuis.
Federico teve uma antevisão de sua morte. Certa vez que voltava de uma tournée teatral me chamou para contar um fato muito estranho. Com os artistas de “La Barraca” tinha chegado a um povoado longínquo de Castilla, acampando nas redondezas. Fatigado pelas preocupações da viagem, Federico não conseguia dormir. Ao amanhecer levantou-se e saiu a vagar sozinho pelos arredores. Fazia frio, esse frio de punhal que Castilla reserva para o viajante, para o forasteiro. A névoa se desprendia em massas brancas e convertia tudo em sua dimensão fantasmagórica.
Um grande gradil de ferro oxidado, estátuas e colunas em ruínas, caídas entre as folhas secas. Deteve-se na porta de uma antiga propriedade. Era a entrada para o extenso parque de uma quinta feudal. O abandono, a hora e o frio tornavam a solidão mais penetrante. Federico sentiu-se subitamente oprimido pelo que viria daquele amanhecer, por algo confuso que ali tinha que acontecer. Sentou-se num capitel tombado.
Um carneiro pequenino começou a pastar entre as ruínas e sua aparição era como um pequeno anjo de névoa que humanizava subitamente a solidão, caindo como uma pétala de ternura sobre a solidão do lugar. O poeta sentiu-se acompanhado.
De súbito um bando de porcos entrou também no recinto. Eram quatro ou cinco animais escuros, porcos negros semisselvagens com fome feroz e patas de pedra.
Federico presenciou então uma cena espantosa. Os porcos lançaram-se sobre o cordeiro e, ante o horror do poeta, despedaçaram-no e o devoraram.
Esta cena de sangue e solidão fez com que Federico ordenasse a seu teatro ambulante continuar imediatamente o caminho.
Ainda transido de horror, três meses antes da guerra civil, Federico me contava esta história terrível.
Vi depois, cada vez com maior clareza, que aquele acontecimento foi a representação antecipada de sua morte, a premonição de sua incrível tragédia.

Federico García Lorca não foi fuzilado; foi assassinado. Naturalmente ninguém podia pensar que o matariam algum dia. De todos os poetas da Espanha era o mais amado, o mais querido e o mais semelhante a um menino pela sua alegria maravilhosa. Quem poderia crer que tivesse sobre a terra, e sobre sua terra, monstros capazes de um crime tão inexplicável?
Aquele crime foi para mim o acontecimento mais doloroso de uma longa luta. A Espanha sempre foi um campo de gladiadores, uma terra com muito sangue. A praça de touros, com seu sacrifício e sua elegância cruel, repete – ornamentado festivamente – o antigo combate mortal entre a sombra e a luz.
A Inquisição encarcera Frei Luís de León, Quevedo padece em seu calabouço, Colón caminha com grilhões nos pés. E o espetáculo máximo foi o ossário no Escorial, como agora é o Monumento a los Caídos com uma cruz sobre um milhão de mortos e sobre prisões escuras e incontáveis.

Pablo Neruda, em Confesso que vivi

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