Era
o ano de 1971. Eu fora convidado a fazer uma conferência no Union
Theological Seminary de Nova York. Na minha fala usei várias vezes a
palavra “homem” com o sentido universal de “todos os seres
humanos”, incluindo não só os homens, que a palavra nomeava
claramente, como também as mulheres, que a palavra deixava na
sombra. Era assim que se falava no Brasil.
Depois
da conferência, fui jantar no apartamento do presidente. Sua esposa,
delicada mas firmemente, deu-me a devida reprimenda.
“Não
é politicamente correto usar a palavra ‘homem’ para significar
também as mulheres. Como também não é correto usar o pronome
‘ele’ para se referir a Deus. Deus tem genitais de homem? Esse
jeito de falar não foi inventado pelas mulheres... Foi inventado
pelos homens numa sociedade em que eles tinham a força e a última
palavra... É sempre assim: quem tem força tem a última palavra...”
O
que aprendi daquela mulher naquele jantar é que as palavras não são
inocentes. Elas são armas que os poderosos usam para ferir e dominar
os fracos.
Os
brancos norte-americanos inventaram a palavra “niger” para
humilhar os negros. E trataram de educar suas crianças. Criaram uma
brincadeira que tinha um versinho que ia assim: “Eeny, meeny,
miny, moe, catch a niger by the toe... — agarre um crioulo pelo
dedão do pé...” (Aqui no Brasil, quando se quer diminuir um
negro, usa-se a palavra “crioulo”: aquele criolão... ).
Foi
para denunciar esse uso ofensivo da palavra que os negros cunharam o
slogan “black is beautiful” — “o negro é bonito”. A essa
linguagem de protesto, purificada de sua função de discriminação,
deu-se o nome de “linguagem politicamente correta” (pclanguage).
A
regra fundamental da linguagem politicamente correta é a seguinte:
nunca use uma palavra que humilhe, discrimine ou zombe de alguém.
Encontre uma forma alternativa de dizer a mesma coisa.
Não
se deve dizer “ele é aleijado”, “ele é cego”, “ele é
deficiente”, etc. O ponto crucial é o verbo “ser”. O verbo ser
torna a deficiência de uma pessoa parte da sua própria essência.
Ela é a sua deficiência. A pclanguage, ao contrário, separa
a pessoa da sua deficiência. Em vez de “João é cego”, “João
é portador de uma deficiência visual...”. Essa regra se aplica a
mim também.
Por
exemplo: “Rubem Alves é velho”. Inaceitável. Porque chamar
alguém de velho é ofendê-lo, muito embora eu não saiba quem foi
que decretou que velhice é ofensa. (O título do livro do Hemingway
deveria ser mudado para O idoso e o mar?...)
As
salas de espera dos aeroportos são lugares onde se pratica a
linguagem politicamente correta o tempo todo. Aí, então, na hora em
que se convocam os “portadores de necessidades especiais” para
embarcar, as necessidades especiais sendo cadeiras de roda, bengalas,
crianças de colo, convocam-se também os velhos, eu inclusive. Mas,
sem saber que palavra ou expressão usar para se referir aos velhos
sem ofendê-los, houve alguém que concluiu que o caminho mais certo
seria chamar os velhos pelo seu contrário. Assim, ao invés de
convocar velhos ou idosos pelos alto-falantes, a voz convoca os
“jovens”, isto é, os cidadãos da “melhor idade”. É claro
que a “melhor idade” só pode ser a juventude...
A
linguagem politicamente correta pode se transformar em ridículo...
Chamar velhice de “melhor idade” só pode ser gozação.
Quero
então fazer uma sugestão que agradará aos velhos. A voz chama para
embarcar os “cidadãos da idade é terna...”. Não é bonito
ligar a velhice com a ternura?
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