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Para não sobrecarregar o relato com
pormenores históricos dispensáveis passaremos sem exame a modesta
ementa, cujos ingredientes, aliás, pelo menos em alguns casos, não
saberíamos identificar. Os alimentos tinham ar de bem apaladados e
Caim comia que dava gosto vê-lo. Então o olheiro perguntou, Que
sinal é esse que tens na testa, não parece natural, Pode ser que
não pareça, mas já nasci com ele, Dá a impressão de que alguém
te marcou, O velho das duas ovelhas também disse o mesmo, mas estava
enganado, tal como tu estás, Se tu o dizes, Digo-o e repeti-lo-ei
quantas vezes forem necessárias, mas preferiria que me deixassem em
paz, se eu fosse coxo em vez de ter este sinal, suponho que não mo
fariam notar constantemente, Tens razão, não tornarei a
importunar-te, Não me importunas nada, tanto mais que tenho de
agradecer-te a grande ajuda que me estás a dar, o emprego, esta
comida que veio pôr-me a alma no seu lugar, e talvez ainda alguma
coisa mais, Que coisa, Não tenho onde dormir, Isso resolve-se
facilmente, arranjo-te uma esteira, há aí uma hospedaria, falarei
com o dono, Não há dúvida de que és um bom samaritano, disse
Caim, Samaritano, perguntou o olheiro intrigado, isso que vem a ser,
Não sei, saiu-me de repente, sem pensar, nem sei o que significa,
Tens mais coisas na cabeça do que a tua aparência promete, Esta
túnica imunda, Cedo-te uma das minhas, a essa passarás a usá-la
para trabalhar, Pelo pouco que conheço deste mundo não deve haver
muitos homens bons, foi uma sorte para mim encontrar aqui um deles,
Acabaste, perguntou o olheiro num tom algo seco, como se o
aborrecessem os louvores, Não posso mais, não me lembro de alguma
vez na vida ter comido tanto, Agora, a trabalhar. Regressaram ao
palácio, desta vez pela parte edificada anterior à ampliação em
curso, e aí viram num balcão uma mulher vestida com tudo o que
devia ser o luxo do tempo e essa mulher, que à distância já
parecera belíssima, olhava-os como absorta, como se não desse por
eles, Quem é, perguntou Caim, E lilith, a dona do palácio e da
cidade, oxalá não ponha os olhos em ti, oxalá, Porquê, Contam-se
coisas, Que coisas, Diz-se que é bruxa, capaz de endoidecer um homem
com os seus feitiços, Que feitiços, perguntou Caim, Não sei nem
quero saber, não sou curioso, a mim basta-me ter visto por aí dois
ou três homens que tiveram comércio carnal com ela, E quê, Uns
infelizes que davam lástima, espectros, sombras do que haviam sido,
Deves estar louco se imaginas um pisador de barro a dormir com a
rainha da cidade, Queres dizer a dona, Rainha ou dona, tanto faz,
Vê-se que não conheces as mulheres, são capazes de tudo, do melhor
e do pior se lhes dá para isso, são muito senhoras de desprezar uma
coroa em troca de irem lavar ao rio a túnica do amante ou
atropelarem tudo e todos para chegar a sentar-se num trono, Falas por
experiência, perguntou Caim, Observo, nada mais, para isso é que
sou olheiro, No entanto, alguma experiência terás, Sim, alguma, mas
sou um pássaro de asas curtas, desses que voam baixo, Pois eu nem
sequer alcei voo uma vez que fosse, Não conheces mulher, perguntou o
olheiro, Não, Estás muito a tempo, ainda és novo. Tinham na sua
frente a pisa do barro. Esperaram que os homens, mais ou menos
alinhados desde o centro para a periferia e que de vez em quando
trocavam de sítio, os de dentro para fora, os de fora para dentro,
acabassem de dar a volta e chegassem à sua altura. Então o olheiro
disse, tocando-o num ombro, Entra.Como tudo, as palavras têm os seus
quês, os seus comos e os seus porquês. Algumas, solenes,
interpelam-nos com ar pomposo, dando-se importância, como se
estivessem destinadas a grandes coisas, e, vai-se ver, não eram mais
que uma brisa leve que não conseguiria mover uma vela de moinho,
outras, das comuns, das habituais, das de todos os dias, viriam a
ter, afinal, consequências que ninguém se atreveria a prever, não
tinham nascido para isso, e contudo abalaram o mundo. O olheiro
disse, Entra, e foi como se dissesse, Vai pisar barro, vai ganhar o
teu pão, mas essa palavra foi exactamente a mesma que lilith,
semanas mais tarde, virá a pronunciar, letra por letra, quando
mandou chamar o homem de quem lhe haviam dito que se chamava Abel,
Entra. Em mulher com fama de despachada em procurar satisfação para
os seus desejos, pode parecer estranho que tivesse levado semanas a
abrir a porta do seu quarto, mas até isso tem explicação, como
mais adiante se verá. Durante esse tempo, Caim não poderia imaginar
que ideias estava alimentando aquela mulher quando, ao princípio
acompanhada por um séquito de guardas, escravas e outros servidores,
começou a aparecer na pisa do barro. Seria como aqueles
proprietários rurais bem-dispostos que se vão interessar na seara
pelo esforço dos que para eles trabalham, animando-os com a sua
visita, em que nunca faltará uma palavra de estímulo e, às vezes,
no melhor dos casos, um gracejo de camarada que, com vontade ou sem
ela, fará rir toda a gente. Lilith não falava, a não ser com o
olheiro do local, a quem pedia informações sobre o andamento do
trabalho e, uma vez ou outra, aparentemente para fazer conversa,
sobre a origem dos trabalhadores vindos de fora, por exemplo, este
que vai aqui, Não sei donde veio, senhora, quando lho perguntei, é
natural que queiramos saber com quem temos de lidar, apontou na
direcção do poente e pronunciou duas palavras, nada mais que duas,
Que palavras, De além, senhora, Não falou das razões por que
deixou a sua terra, Não, senhora, E como se chama ele, Abel,
senhora, disse-me que se chama Abel, E bom trabalhador, Sim, senhora,
é dos que falam pouco, cumpre bem a obrigação, E o sinal que tem
na testa, que é aquilo, Também lhe perguntei e ele disse que o
recebera de nascença, Portanto, deste Abelque veio do poente não
sabemos nada, Não é o único, senhora, tirante os que são de cá e
mais ou menos conhecemos, o resto são histórias por contar,
vagamundos, foragidos, no geral gente de poucas palavras, lá entre
eles talvez se confiem uns aos outros, mas nem disso se pode ter a
certeza, E o do sinal, como se comporta, Em minha opinião, procede
como se desejasse que ninguém reparasse nele, Reparei eu, murmurou
lilith falando consigo mesma. Passados uns dias apareceu na pisa do
barro um enviado do palácio que perguntou a Caim se tinha algum
ofício. Caim respondeu-lhe que em tempos fora agricultor e que havia
sido obrigado a deixar as suas terras por causa das más colheitas.
O enviado levou a informação e
voltou ao fim de três dias com uma ordem para que o pisador Abelse
apresentasse imediatamente no palácio. Tal como se encontrava, com a
sua velha túnica manchada e tornada já quase num farrapo, Caim,
depois de limpar o melhor que pôde as pernas sujas de barro, seguiu
o enviado. Entraram no palácio por uma pequena porta lateral que
dava para um vestíbulo onde duas mulheres esperavam.
Retirou-se o enviado para ir dar parte
de que o pisador de barro Abeljá se encontrava ali e ao cuidado das
escravas. Conduzido por elas a um quarto separado, Caim foi despido e
logo lavado dos pés à cabeça com água tépida. O contacto
insistente e minucioso das mãos das mulheres provocou-lhe uma
erecção que não pôde reprimir, supondo que tal proeza seria
possível. Elas riram e, em resposta,redobraram de atenções para
com o órgão erecto, a que, entre novas risadas, chamavam flauta
muda, o qual de repente havia saltado nas suas mãos com a
elasticidade de uma cobra. O resultado, vistas as circunstâncias,
era mais do que previsível, o homem ejaculou de repente, em jorros
sucessivos que, ajoelhadas como estavam, as escravas receberam na
cara e na boca.
Um súbito relâmpago de lucidez
iluminou o cérebro de Caim, para isto o tinham ido buscar à pisa do
barro, mas não para dar gosto a simples escravas que outras
satisfações próprias da sua condição deveriam ter. O aviso
prudente do olheiro dos alvenéis caíra em cesto roto, Caim
assentara o pé na armadilha para onde a dona do palácio o viera
empurrando suavemente, sem precipitações, quase sem dar por tal,
como se estivesse distraída por uma nuvem que passava, a pensar
noutra coisa. A demora do golpe final fora propositada para dar tempo
a que a semente lançada à terra como por acaso pudesse germinar por
si mesma e florescer. Quanto ao fruto, estava claro que já não
teria de esperar muito para ser colhido. As escravas pareciam não
ter pressa, concentradas agora em extrair as últimas gotas do pénis
de Caim que levavam à boca na ponta de um dedo, uma após a outra,
com delícia. Tudo acaba, porém, tudo tem o seu termo, uma túnica
lavada cobriu a nudez do homem, é hora, palavra sobre todas
anacrónica nesta bíblica história, de ser conduzido à presença
da dona do palácio, que lhe dará destino. O enviado esperava no
vestíbulo, um simples olhar bastou-lhe para adivinhar o que se havia
passado durante o banho, mas não se escandalizou, é que os
enviados, por razões de ofício, vêem muito mundo, não há nada
que os surpreenda. Além disso, como já nesta época era sabido, a
carne é supinamente fraca, e não tanto por sua culpa, pois o
espírito, cujo dever, em princípio, seria levantar uma barreira
contra todas as tentações, é sempre o primeiro a ceder, a içar a
bandeira branca da rendição. O enviado sabia aonde estava levando o
pisador de barro Abel, aonde e para quê, mas não o invejava, ao
contrário do episódio lúbrico das escravas, que, esse sim, lhe
perturbava a circulação do sangue. A entrada no palácio foi, desta
vez, pela porta principal porque aqui nada se faz às escondidas, se
a dona lilith arranjou um novo amante, melhor é que se saiba já,
que não se arme aqui todo um jogo de segredinhos e maledicências,
toda uma rede de risotas e murmurações, como infalivelmente
sucederia em outras culturas e civilizações. O enviado ordenou a
uma escrava que estava esperando do lado de fora da porta da
antecâmara, Vai dizer à tua senhora que estamos aqui. A escrava foi
e voltou com o recado, Vem comigo, disse para Caim, e logo, para o
enviado, Tu vai-te, já não és preciso. Assim são as coisas, que
ninguém se envaideça por lhe terem confiado uma missão delicada, o
mais certo é que depois do trabalho lhe digam, Tu vai-te, já não
és preciso, disto sabem os enviados muito. Lilith estava sentada num
escabelo de madeira trabalhada, tinha um traje quedevia valer um
potosí, um vestido que exibia com mínimo recato um decote que
deixava ver a primeira curva dos seios e adivinhar o resto. A escrava
tinha-se retirado, estavam sós. Lilith lançou ao homem um olhar
apreciador, pareceu gostar do que viu e finalmente disse, Estarás
sempre nesta antecâmara, de dia e de noite, tens ali o teu catre e
um banco para te sentares, serás, até que eu mude de ideias, o meu
porteiro, impedirás a entrada de qualquer pessoa, seja quem for, no
meu quarto, salvo as escravas que o vêm limpar e arrumar, Seja quem
for, senhora, perguntou caim sem aparente intenção, Vejo que és
ágil de cabeça, se estás a pensar no meu marido, sim, também esse
não está autorizado a entrar, mas eleja o sabe, não tens que lho
dizer, E se mesmo assim quiser alguma vez forçar a entrada, És um
homem robusto, saberás como impedi-lo, Não posso enfrentar pela
força quem, sendo senhor da cidade, é senhor da minha vida, Podes
se eu to ordenar, Mais tarde ou mais cedo as consequências cairão
sobre a minha cabeça, A isso, meu jovem, ninguém escapa neste
mundo, mas, se és covarde, se tens dúvidas ou medo, o remédio é
fácil, voltas para o barro, Nunca pensei que pisar barro fosse o meu
destino, Também não sei se serás, para sempre, o porteiro do
quarto de lilith, Basta que o vá ser neste momento, senhora, Bem
dito, só por essas palavras já merecerias um beijo. Caim não
respondeu, estava dando atenção à voz do olheiro dos alvenéis,
Tem cuidado, diz-se que é uma bruxa, capaz de endoidecer um homem
com os seus feitiços. Em que pensas, perguntou lilith, Em nada,
senhora, diante de ti não sou capaz de pensar, olho para ti e pasmo,
nada mais, Talvez mereças um segundo beijo, Estou aqui, senhora, Mas
eu ainda não, porteiro. Levantou-se, ajustou as pregas do vestido
fazendo escorregar lentamente as mãos pelo corpo, como se estivesse
a acariciar-se a si mesma, primeiro os seios, logo o ventre, depois o
princípio das coxas onde se demorou, e tudo isto o fez enquanto
olhava o homem fixamente, sem expressão, como uma estátua. As
escravas, livres de freios morais, haviam rido de puro contentamento,
quase com inocência, enquanto se divertiam a manipular o corpo do
homem, haviam participado num jogo erótico de que conheciam todos os
preceitos e infracções, ao passo que aqui, nesta antecâmara onde
nenhum som exterior penetra, lilith e caim parecem dois esgrimistas
que apuram as espadas para um duelo de morte. Lilith já não está,
entrou no quarto e fechou a porta, caim olhou em redor e não
encontrou outro refúgio que o banco que lhe estava reservado. Ali se
foi sentar, de repente assustado com a perspectiva dos dias futuros.
Sentia-se prisioneiro, ela mesma dissera, Estarás aqui dia e noite,
só não tinha acrescentado, Serás, quando eu assim o decidir, o meu
boi de cobrição, palavra esta que parecerá não só grosseira como
mal aplicada ao caso, uma vez que, em princípio, cobrição é coisa
de animais quadrúpedes, não de seres humanos, mas que muito bem
aplicada está porque estes já foram tão quadrúpedes como aqueles,
porquanto todos sabemos que o que hoje denominamos braços e pernas
foi durante muito tempo tudo pernas, até que alguém se terá
lembrado de dizer aos futuros homens, Levantem-se que já é hora.
Também caim se pergunta se não será hora de fugir daqui antes que
seja demasiado tarde, mas a pergunta é ociosa, de mais sabe ele que
não fugirá, dentro daquele quarto há uma mulher que parece
desfrutar lançando-lhe sucessivas negaças, mas que um dia destes
lhe dirá, Entra, e ele entrará, e, entrando, passará de uma prisão
a outra. Não nasci para isto, pensa caim. Também não havia nascido
para matar o seu próprio irmão, e apesar disso tinha-o deixado
cadáver no meio do campo com os olhos e a boca cobertos de moscas, a
ele, Abel, que também para isso não nascera. Caim dá voltas à
vida na sua cabeça e não lhe encontra explicação, veja-se esta
mulher que, não obstante estar enferma de desejo, como é fácil
perceber, se compraz em ir adiando o momento da entrega, palavra por
outro lado altamente inadequada, porque lilith, quando finalmente
abrir as pernas para se deixar penetrar, não estará a entregar-se,
mas sim a tratar de devorar o homem a quem disse, Entra.
Caim já entrou, já dormiu na cama
de lilith, e, por mais incrível que nos pareça, foi a sua própria
falta de experiência de sexo que o impediu de se afogar no vórtice
de luxúria que num só instante arrebatou a mulher e a fez voar e
gritar como possessa. Rangia os dentes, mordia a almofada, logo o
ombro do homem, cujo sangue sorveu. Aplicado, caim esforçava-se
sobre o corpo dela, perplexo por aqueles desgarros de movimentos e
vozes, mas, ao mesmo tempo, um outro caim que não era ele observava
o quadro com curiosidade, quase com frieza, a agitação irreprimível
dos membros, as contorções do corpo dela e do seu próprio corpo,
as posturas que a cópula, ela mesma, solicitava ou impunha, até ao
acme dos orgasmos. Não dormiram muito nessa primeira noite os dois
amantes. Nem na segunda, nem na terceira, nem em todas as que se
seguiram. Lilith era insaciável, as forças de caim pareciam
inesgotáveis, insignificante, quase nulo, o intervalo entre duas
erecções e respectivas ejaculações, bem poderia dizer-se que
estavam, um e outro, no paraíso do alá que há-de ser. Numa noite
dessas, noah, o senhor da cidade e marido de lilith, a quem um
escravo de confiança levara a notícia de que algo extraordinário
se passava ali, entrou na antecâmara. Não era a primeira vez que o
fazia. Marido consentidor como os que mais o têm sido, noah, em todo
o tempo, como é costume dizer-se, de vida em comum, havia sido
incapaz de fazer um filho à mulher e fora justamente a consciência
desse contínuo desaire, e talvez também a esperança de que lilith
acabasse por engravidar de um amante ocasional e lhe desse finalmente
um filho a quem pudesse chamar herdeiro, que o havia levado a
adoptar, quase sem se aperceber, essa atitude de condescendência
conjugal que, com o tempo, viria a tornar-se em cómoda maneira de
viver, só perturbada pelas raríssimas vezes em que lilith, movida
pelo que imaginamos ser a tão falada compaixão feminina, decidia ir
ao quarto do marido para um fugaz e insatisfatório contacto que a
nenhum dos dois comprometia, nem a ele para exigir mais do que lhe
era dado, nem a ela para lhe reconhecer esse direito. Nunca, porém,
lilith permitiu a noah que entrasse no seu quarto.
[...]
José Saramago, em Caim

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