De vez em quando a gente lê no jornal
um camarada declarando qualquer coisa como “a palavra crise não
existe no meu dicionário”. Acho isso admirável, admirabilíssimo,
porque se trata de um talento que a Providência me negou de forma
absoluta, não me deu nem um micrograma. Deu-me, contudo, a frequente
oportunidade de ler afirmações como essa e me dadivou também um
número certamente excessivo de amigos que tampouco acreditam na
crise. Um deles me convidou para sair, no sábado passado (eu
novamente de cigarro e solenemente ignorado por todas as minhas
ídolas), tomar uns drinques, jantar e bater um papo com o pessoal.
Sentado diante de um pavoroso livrão que insensatamente resolvi
escrever e que já me deixa zonzo com personagens e cronologias,
achei que era bom alívio. Um dos personagens — um tal cônego que
em má hora incluí nos convidados de um passeio — não cala a boca
há 40 laudas, está ficando cada vez mais difícil aturá-lo. Mas há
um senão: exatamente a mania de ficar escrevendo sobre o cônego e
mais outros sujeitos desinteressantes, em vez de ganhar a vida
honestamente abrindo por exemplo uma empresa de caderneta de
poupança, preclude o meu comprometimento com desembolsos mais
elevados, notadamente na rubrica entretenimento/pifão, já que meu
cash-flow não é dos mais famosos. Em outras palavras, estou
sempre duro. Fiz ver esta circunstância ao meu amigo.
— Ah, eu também! — respondeu ele
alegremente. — Primeiro, nós passamos no Antônio’s!
— Não compreendi. Eu duro, você
duro...
— Ao Antônio’s!
Concordei. Tenho muita confiança nos
amigos. Contudo, ao marchar pela rua abaixo, não podia deixar de
estremecer, lembrando do dia em que, para mais um papo com um editor
alemão (que, por sinal, ainda não editou nada), dei uma de noblesse
oblige e o convidei para encontrar-me no Antônio’s. Enquanto
eu, com prudência e frugalidade, alegava problemas estomacais e
traçava prolongadamente uma garrafinha (acabei tomando duas) de água
tônica, meu convidado pegou uns três runs com coca-cola. Na saída,
aquela presepada toda: não senhor, eu pago, deixe comigo! Como nas
piadas, o brasileiro venceu: paguei a conta. Cheguei em casa pálido,
tive de tomar um daqueles calmantes homeopáticos para palpitações.
E agora, como seria?
Terminei não descobrindo, não dá
para perceber. A noite chegou festiva ao bar, ele se desvencilhou das
contas como um mago e, cercado por um cortejo sorridente e
amabilíssimo de garçons e manobristas, acenou-me para acompanhá-lo
a seu carrão. Dentro do carro, vi-o dobrar um bolo de notas e pô-lo
no bolso, murmurando “é sempre bom ter um trocadinho”. Como?
Como podia ser aquilo, se poucos momentos antes ele revirava os
bolsos para me mostrar como estava ainda em pior situação do que
eu? Que milagre era aquele?
— É o troco — respondeu ele,
arrancando com brio. — Ao Florentino!
Não perguntei mais nada. No
Florentino, pediu “minha garrafa aí!”, congregou novo grupo de
amigos à mesa, apalavrou duas casas em Búzios, analisou o
socialismo moreno e convidou uma moça para “uma volta em Nova
Iorque uma hora dessas, nesta época do ano está uma beleza”. Com
a noite cada vez mais florida e animada, ele me perguntou se eu não
queria jantar.
— Jantar? Sim, é uma boa. Aqui?
Eu...
— Ao Hippopotamus!
— Mas...
Pegando mais um pouco de troco no
caixa, ele chegou rapidamente ao Hippopotamus. Um leão de chácara
(lá pode ser que seja country-house lion, mas é a mesma
coisa) sorriu reluzentemente, abriu a porta, ele entrou, deu um
beijinho na moça da recepção, perguntou com exuberância:
— Tudo bem, meu amor? Minha mesa?
A mesa dele estava lá, sim senhor, o
maître veio conversar, sugeriu um pratinho especial (quanto
aos drinques, já estávamos tomando uísque da garrafa dele, que
chegou antes de nós à mesa). Depois de consultar-me com grande
fidalguia, ele deu algumas instruções adicionais ao maître,
garantiu-me que eu iria gostar muito daquele prato, dedicou o resto
da noite a conversar e a acenar para praticamente todo mundo que
passava: tudo bem aí, querida? como vai, meu bem? beijos, beijos!
Saímos já bem tarde, ele com a alegria do poder e do reconhecimento
social, eu com o contentamento recatado que nos traz a boca-livre.
Como estava com sono, temi que ele desse novo brado de guerra,
quisesse fretar um jatinho para dar um pulo ao Maxim’s ou qualquer
coisa assim. Mas ele também tinha ficado com sono.
— Bom, agora vamos encerrar —
disse ele. — Amanhã tenho de trabalhar.
— Mas amanhã é domingo.
— E o que é que você pensa? Você
pensa que eu tenho folga? Eu trabalho no domingo também e assim
mesmo não dá! O dinheiro não chega para nada! Você sabe que eu
fico imaginando onde é que nós vamos parar? Você veja nós dois:
trabalhamos como um par de cavalos e só vivemos na pior! Está certo
isto?
Não estava certo, claro. Entramos no
carro, lembrei-me subitamente de um detalhe.
— Desta vez você esqueceu de pegar
o troco.
— Ah, tudo bem — disse ele. —
Aqui eu não pago.
Uma experiência como essa não pode
deixar de ser inspiradora. Eu mal podia esperar a volta de minha
mulher para introduzir a nova política da casa.
— Mulher! — falei, assim que ela
chegou, na segunda-feira. — A palavra crise não existe no meu
dicionário!
— Que tal bancarrota? — perguntou
ela.
João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite
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