Aguirre
No
centro do palco, machado na mão, aparece Lope de Aguirre rodeado de
dezenas de espelhos. O perfil do rei Felipe II se recorta, negro,
imenso, sobre o pano de fundo.
LOPE
DE AGUIRRE falando ao público. Caminhando nossa derrota, e
passando por mortes e desventuras, tardamos mais de dez meses e meio
em chegar à boca do rio das Amazonas, que é rio grande e temeroso e
mal afortunado. Depois, tomamos posse da ilha Margarita. Ali cobrei
em forca ou porrete vinte e cinco traições. E depois, abrimos passo
em terra firme. Tremem de medo os soldados do rei Felipe! Logo
sairemos da Venezuela... Logo entraremos triunfantes no reino do
Peru! (Dá a volta e enfrenta sua própria imagem, de dar pena, em
um dos espelhos.) Eu fiz de dom Fernando de Guzmán rei no rio
das Amazonas! (Ergue o machado e parte o espelho.) Eu o fiz
rei e eu o matei! E o capitão de sua guarda e o tenente-general e
quatro capitães! (Enquanto fala, vai despedaçando todos os
espelhos, um atrás do outro). E seu mordomo e seu capitão
capelão! E uma mulher que estava contra mim, e um comendador de
Rodas, e um almirante... e seis outros aliados!... E nomeei de novo
capitães e sargento-mor! E quiseram me matar e os enforquei!
(Pulveriza os últimos espelhos.) Matei todos! Todos!
(Senta-se, muito sufocado, no chão coberto de cristais. Nas mãos,
vertisal, o machado. O olhar perdido. Longo silêncio.) Em minha
mocidade passei o oceano indo às terras do Peru, por valer mais com
a lança na mão... Um quarto de século!... Mistérios, misérias...
Eu cavei cemitérios arrancando para outros pratarias e xícaras de
ouro... Montei forca no centro de cidades não nascidas... A cavalo,
persegui multidões... Os índios fugindo apavorados através das
chamas. Cavaleiros de pomposo título e emprestadas roupas de seda,
filhos de sei lá quem, filhos de ninguém, agonizando na selva,
raivosos, mordendo terra, o sangue envenenado pelos dardos... Na
cordilheira, guerreiros de armadura de aço atravessados de lado a
lado por vendavais mais violentos que qualquer tiro de arcabuz...
Muitos encontraram sepultura no ventre dos abutres.... Muitos ficaram
amarelos como o ouro que buscavam... A pele amarela, os olhos
amarelos.... E o ouro... (Deixa cair o machado. Abre com
dificuldade as mãos, que são como garras. Mostra as palmas.)
Desvanecido... Ouro que virou sombra ou orvalho... (Olha com estupor.
Fica mudo, longos momentos. De repente, se levanta. De costas para o
público, ergue o punho seco e torto contra a enorme sombra de Felipe
II, projetada, a barba em ponta, no pano de fundo.) Poucos reis vão
ao inferno, porque poucos sois! (Caminha até o pano de fundo
arrastando sua perna manca.) Ingrato! Eu perdi meu corpo
defendendo-te contra os rebeldes do Peru! Te entreguei uma perna e um
olho e estas mãos que pouco me servem! Agora, o rebelde sou eu!
Rebelde até a morte, por tua ingratidão! (Encara o público,
desembainha a espada.) Eu, Príncipe dos rebeldes! Lope de
Aguirre o Peregrino, Ira de Deus, Caudilho dos feridos! Não te
necessitamos, rei da Espanha! (Se acendem luzes coloridas sobre
vários pontos do palco.) Não deixaremos com vida ministro teu!
(Se atira, com a espada na mão, contra um facho de luz
avermelhada.) Auditores, governadores, presidentes, vice-reis!
Guerra de morte contra os alcaguetes cortesãos! (O facho de luz
continua em seu lugar, indiferente à espada que o corta.)
Usurpadores! Ladrões! (A espada fere o ar.) Vós destruístes
as Índias! (Avança contra o facho de luz dourada.) Letrados,
tabeliães, caga-tintas! Até quando haveremos de sofrer vossos
roubos nestas terras por nós ganhadas? (As cuteladas atravessam
um facho de luz branca.) Frades, bispos, arcebispos! Vós não
quereis enterrar nenhum índio pobre! Por penitência tens na cozinha
uma dúzia de moças! Traficantes! Traficantes de sacramentos!
Ladrões! (E assim continua o inútil torvelinho da espada contra
os fachos de luz imóvel, que se multiplicam no palco. Aguirre vai
perdendo as forças e parece cada vez mais solitário e pequenino.)
Eduardo Galeano, em Os Nascimentos
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