sexta-feira, 4 de abril de 2025

1561 – Nova Valência do Rei

Aguirre

No centro do palco, machado na mão, aparece Lope de Aguirre rodeado de dezenas de espelhos. O perfil do rei Felipe II se recorta, negro, imenso, sobre o pano de fundo.
LOPE DE AGUIRRE falando ao público. Caminhando nossa derrota, e passando por mortes e desventuras, tardamos mais de dez meses e meio em chegar à boca do rio das Amazonas, que é rio grande e temeroso e mal afortunado. Depois, tomamos posse da ilha Margarita. Ali cobrei em forca ou porrete vinte e cinco traições. E depois, abrimos passo em terra firme. Tremem de medo os soldados do rei Felipe! Logo sairemos da Venezuela... Logo entraremos triunfantes no reino do Peru! (Dá a volta e enfrenta sua própria imagem, de dar pena, em um dos espelhos.) Eu fiz de dom Fernando de Guzmán rei no rio das Amazonas! (Ergue o machado e parte o espelho.) Eu o fiz rei e eu o matei! E o capitão de sua guarda e o tenente-general e quatro capitães! (Enquanto fala, vai despedaçando todos os espelhos, um atrás do outro). E seu mordomo e seu capitão capelão! E uma mulher que estava contra mim, e um comendador de Rodas, e um almirante... e seis outros aliados!... E nomeei de novo capitães e sargento-mor! E quiseram me matar e os enforquei! (Pulveriza os últimos espelhos.) Matei todos! Todos! (Senta-se, muito sufocado, no chão coberto de cristais. Nas mãos, vertisal, o machado. O olhar perdido. Longo silêncio.) Em minha mocidade passei o oceano indo às terras do Peru, por valer mais com a lança na mão... Um quarto de século!... Mistérios, misérias... Eu cavei cemitérios arrancando para outros pratarias e xícaras de ouro... Montei forca no centro de cidades não nascidas... A cavalo, persegui multidões... Os índios fugindo apavorados através das chamas. Cavaleiros de pomposo título e emprestadas roupas de seda, filhos de sei lá quem, filhos de ninguém, agonizando na selva, raivosos, mordendo terra, o sangue envenenado pelos dardos... Na cordilheira, guerreiros de armadura de aço atravessados de lado a lado por vendavais mais violentos que qualquer tiro de arcabuz... Muitos encontraram sepultura no ventre dos abutres.... Muitos ficaram amarelos como o ouro que buscavam... A pele amarela, os olhos amarelos.... E o ouro... (Deixa cair o machado. Abre com dificuldade as mãos, que são como garras. Mostra as palmas.) Desvanecido... Ouro que virou sombra ou orvalho... (Olha com estupor. Fica mudo, longos momentos. De repente, se levanta. De costas para o público, ergue o punho seco e torto contra a enorme sombra de Felipe II, projetada, a barba em ponta, no pano de fundo.) Poucos reis vão ao inferno, porque poucos sois! (Caminha até o pano de fundo arrastando sua perna manca.) Ingrato! Eu perdi meu corpo defendendo-te contra os rebeldes do Peru! Te entreguei uma perna e um olho e estas mãos que pouco me servem! Agora, o rebelde sou eu! Rebelde até a morte, por tua ingratidão! (Encara o público, desembainha a espada.) Eu, Príncipe dos rebeldes! Lope de Aguirre o Peregrino, Ira de Deus, Caudilho dos feridos! Não te necessitamos, rei da Espanha! (Se acendem luzes coloridas sobre vários pontos do palco.) Não deixaremos com vida ministro teu! (Se atira, com a espada na mão, contra um facho de luz avermelhada.) Auditores, governadores, presidentes, vice-reis! Guerra de morte contra os alcaguetes cortesãos! (O facho de luz continua em seu lugar, indiferente à espada que o corta.) Usurpadores! Ladrões! (A espada fere o ar.) Vós destruístes as Índias! (Avança contra o facho de luz dourada.) Letrados, tabeliães, caga-tintas! Até quando haveremos de sofrer vossos roubos nestas terras por nós ganhadas? (As cuteladas atravessam um facho de luz branca.) Frades, bispos, arcebispos! Vós não quereis enterrar nenhum índio pobre! Por penitência tens na cozinha uma dúzia de moças! Traficantes! Traficantes de sacramentos! Ladrões! (E assim continua o inútil torvelinho da espada contra os fachos de luz imóvel, que se multiplicam no palco. Aguirre vai perdendo as forças e parece cada vez mais solitário e pequenino.)

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

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