refaladas
todas as coisas, era comigo que a ermesinda se casaria, duvidado de
ascendência mas bom de aspecto, muito largo e viril, como aos
melhores homens se pede que sejam. será um ajuizado chefe de
família, reiterado na valentia e astuto nos recursos, está
protegido por um misericordioso senhor, garante a nossa filha como se
precisa, terá a sua mão e a nossa familiaridade, marquemos a hora
para que se festejem nossos intentos e corações decididos. e eu
humedeci os olhos, criado de emoção, apartei-me feliz, iludido com
o amor como devia ser.
em
maio era quando se casavam os noivos de sorte, escolhido o dia de são
pancrácio, a velar-nos as juras, com as chuvas meio levantadas, os
calores ainda previstos, a claridade dos dias muito imposta como
supremacia do que se via sobre o que se sentia, e era como se via no
ar essa cor tão forte que deixava felicidade pelos lugares. a igreja
de cristo redentor estava aberta ao povo que quisesse participar, e
era repleta de velhas que se tinha, a cheirar a mijo e suores, quando
entrei e me puseram à espera da ermesinda no altar. também
cheirávamos os mortos sepultados chão debaixo das pedras, mal
tapados de narizes bicudos e mal dispostos. a nossa igreja estava
repleta. não havia muitos mais buracos a abrir onde enfiar mortos
sempre a morrer. as velhas, mijadas e paradas nos bancos, até
pareciam acorrer ali para nada mais. mais, era o que se devia,
acertar-lhes com um pé na nuca para as abater de vez. se lhes
perguntássemos alguma coisa, não tinham disposição de entender.
olhavam mesmamente para a frente como se vissem para depois da vida.
o teodolindo, meu amigo, sentado de orgulho e banho ao pé de mim,
sorria e soltava-se de gases na cara de uma velha vertida para o
chão. que porcaria de estropício se haveria de sentar à frente,
queixava-se ela. era porque onde ele queria ficar se havia metido a
mulher sem reacção nenhuma, só como uma pedra morta a marcar
lugar.
a
cerimónia não teve grande ciência, abençoados pela confissão
como estávamos, pedidos pelos pais para nos casarmos, nada se
apoquentava com nosso acto e só praticá-lo era preciso. por isso
foram ditas as palavras sem grande tempo e já a arca da ermesinda
tinha sido levada para nossa casa tão preparada, e era como o seu
enxoval ficaria guardado para nosso uso, muito dele para mais tarde,
quando me autonomizasse verdadeiramente da casa dos meus pais e não
estivesse a disfarçar o espaço que cabia aos animais. e era como
dizia o aldegundes, revoltado com a expulsão da sarga, haviam de ser
vocês, os dois, a peidar e a cagar o suficiente para aquecer a casa
à noite se isso compete por natureza ao gado que se tem.
lá
estava a sarga debaixo das madeiras mal seguras. realmente mal
seguras, como, à pressa, ainda tive de ser eu a alojá-la. poderia
fugir, chorava o aldegundes, vai fugir como parece fazer tanta força
sempre que chove, vai esconder-se em lugar que desconhecemos e
deixaremos de a ver. era cruel da minha parte alhear-me do seu
sofrimento, e mais cruel dizer-lhe em surdina que se calasse dos
pretextos pela vaca, não fosse viver um amor estouvado de porcaria e
alguém notasse. não fosse o meu pai, passivo e desimportado, notar
algum sinal da sua ainda burra masculinidade. não sejas burro,
aldegundes, deixa-a a dormir assim, às vacas tanto se lhes dá os
confortos, e a sarga quando se assusta faz um grande temporal, nada
do que temos esta noite. o meu pai não foi a vê-la, não se
inteirou do coberto que lhe fizera eu, e ela estava metida debaixo
das madeiras em espaço exíguo, e o meu pai nem perguntara que fora
da vaca, já bom tempo decorrido no meu casamento. estava para a cama
mais cedo que minha mãe, e ordens claras, todos a dormir que não
queria nem fogo nem barulho acesos a impedirem-no de descansar. a
sarga estava calada, o aldegundes calou-se, eu e a ermesinda gememos,
sem custo, gememos.
uma
virgem, de sangrar e tudo, mas que não é feita mulher pelas dores,
que poderia significar, perguntava-me eu. nem por um só momento
imaginei que se faria mulher sem dores, num silêncio só gemido como
naturalmente um casal geme já tempo decorrido. como meus pais, sem
novidade ou esforço, apenas o gasto esperado e remediado da rotina.
não que fosse destituído de prazer ou forçado à euforia pela
novidade, mas que a novidade lhe fosse tão simples e benfazeja da
partida à chegada. sob mim a receber os meus jeitos em paz de
proveito, muito delicada sem dizer palavra que me quisesse pedir
maior cuidado ou carinho. nada. e o lençol sujou-se de sangue e
assim o apresentámos aos meus pais para que surdamente se espalhasse
o orgulho de toda a família. o teodolindo, jurando por nós nos
votos religiosos, abriu os dentes em flor, bateu-me nas costas muito
amigo e disse-me, chegaste bem à idade adulta, tens mulher e honra
com que te servir. não percas nada. eu tive toda a ideia disso.
enchi o peito de mim, feliz de ser quem era. só mirrei um bocado à
lembrança de que ele, o teodolindo, o meu melhor amigo, estava ainda
longe de se prender. tens recordações em demasia das partes da
natureza, tens de esfriar por baixo e ver as raparigas por cima.
esquivava-se nas árvores, desaparecia, metido para os seus segredos
sem mais conversa.
disse
à minha ermesinda que se estendesse nua na cama. que eu a queria ver
à luz da vela, muito próxima de cada pedaço da sua pele. ela
pareceu acalmar quando lhe pus a mão suave no contorno da anca.
lembrei-me, toca-lhe com leveza, tal fosse coisa de partir da casa de
dom afonso. porcelana da colecção de dona catarina, faz de conta
que, se errares, não voltas a ter tamanha felicidade e deves ter por
tal momento todo o cuidado possível. toca-lhe por amor. e assim fiz,
segundo as palavras do senhor santiago. depois, ela perguntou se
teria de ganhar barriga por cada vez que eu a conhecesse. e eu sorri
com sua burrice, e até a amei mais ainda, por corresponder perfeita
à estupidez que se espera numa mulher. puxei-lhe a cabeça para trás
e busquei-a pelo meio de mim, e ela ali ficou paciente a encontrar-se
pelo interior dos buracos sem grande surpresa.
mandada
a lavar os lençóis em discrição, ermesinda portou-se como tal, a
esbranquiçar o seu sangue com dedicação. e muito diferente se
pendurou aquele linho à vista do sol e de todos, esperado por dom
afonso à boca das suas janelas, acordado cedo como à espera ansioso
de que lá subíssemos para a apresentação combinada. e a correr
nos fomos, os dois, no primeiro desmedo que tive de arranjar, liberto
de meu pai para as coisas assim, entrado na casa grande para me
honrar de virar homem de mulher e tudo. e a desmedo entrei, aberta a
porta pela brunilde, que nos contara os minutos de chegar. uma
palavra mínima, cortada à socapa para que se escondesse do que a
casa pudesse ouvir, que ali dentro da casa tudo era passível de ser
inteligente, era da figura e preciosidade das coisas, pareciam
guardar vida incrível que se accionasse por poderoso feitiço à voz
do proprietário.
era
como nos sentíamos na casa de dom afonso, enterrados por preciosas
peças que ornavam a casa, como eu imaginaria um castelo de el-rei.
dom dinis, ele próprio, viveria ali de agrado sem queixa de
qualidade ou luxo, era em que acreditava. parados, silenciosos de
tudo como objectos a tremer, esperámos atentos que viesse chamado
pela brunilde. esperámos, sem mais olhar que a porta por onde viria,
e foi com um salto por dentro que o recebemos. sorrindo, bigode
puxado pela mão para fremir os lábios e, que se visse, era claro
que a ermesinda lhe agradava de beleza e frescura. e eu abençoei-me
por ele de joelhos e agradeci infinitamente a oferta dos dois
torneis, como gabei os aposentos em que tornámos o lugar da sarga.
sim, essa vaca, dizia ele, quantos anos terá. talvez uns trinta, dom
afonso. trinta anos que o teu pai a tem, parece impossível que não
a tivesse desfeito em postas quando era de comer. meu pai tem apreço
pela bicha, dom afonso. um apreço que lhe deu fama, rapaz. dom
afonso saberá. uma mulher é melhor do que uma vaca, disso estou
certo, do que o povo diz pouco me interessa, e a tua é uma bela
mulher, viçosa nos modos, clara nos olhos, aberta nos membros. é
muito bela, sim, como se regozija o meu amor por ela e mais ainda por
se ter sem empecilhos ou maleitas. sim, bem vejo, rapaz, que tudo
nela está aberto e pronto para a vida. se dom afonso o diz. digo
mais, estou seguro que seu corpo se estenderá ao trabalho em grande
rendimento e todos aproveitaremos do que souber fazer. por isso, sou
capaz de jurar que fará da sua vinda para a nossa casa uma grande
surpresa, como surpreso ficarei só de vê-la a cada dia e confirmar
que existe tal beleza. assim, quero que passe todas as manhãs aqui a
ver-me, deverá fazê-lo bem cedo antes dos horários de dona
catarina, para que eu possa gerir o seu dia nos animais com atenção
e especial cuidado. ouviste, rapaz, farei tudo para que seja feliz
nos trabalhos e destino que lhe competem. se dom afonso o pede. agora
vão, dona catarina levanta-se e há que tornar a casa desimpedida
para os seus confortos.
naquele
tempo o meu martírio começou. empoleirado nas bermas da casa,
agarrado às janelas a desesperar de incerteza, fosse a ermesinda
meter-se debaixo de dom afonso e que faria eu corno, apaixonado,
morto de loucura por ela. nem meu pai me convencia, transtornado a
deitar-me juízo cabeça abaixo, incapaz de me impedir de exercer a
direcção devida no matrimónio que acabara de realizar. assim
falávamos, que se estivesse posto dentro dela lhe arrancaria a
cabeça numa só desgraça para toda a família. ou, se me esfriasse
o pensamento e pudesse hesitar, talvez o matasse de venenos colhidos
secretamente, cozinhados à sua boca com o auxílio da brunilde.
senão, muitas cobras poderiam ser minhas presas por um tempo, até
que as soltasse infalíveis no quarto do filho do demónio. mas nada
da boca da ermesinda me confirmava, nem os olhos que lhe deitava às
partes da natureza, abertas em bom sol, me diziam o que ali poderia
ter entrado. e mesmo ao toque dos dedos nada parecia diferenciar os
seus dias das nossas noites. e era como me enlouquecia, nada saber e
saber apenas o que me queria confirmar dos bons intentos de dom
afonso. ela dizia que entrava para a sala de grande nobreza para uma
conversa muito rápida, em que o senhor lhe perguntava pelos queijos,
tão apropriada das tarefas logo de início, e depois lhe desejava
bom trabalho em simples continuação de instruções já dadas. mais
nada. era como perder tempo, parecia, não acontecia mais nada.
dizia-me a minha bela e calada mulher, olhos não abertos dos pés,
delicadeza à minha mesa e na minha cama, como coisa branca que me
impressionava.
era
diariamente, como diariamente ali a mandou, e tudo o que eu fazia
para os alcançar em conversa não era suficiente. nem pedido à
brunilde o serviço se fazia, mandada embora com veemência, as
portas fechavam-se para que nada visse ou ouvisse. e dom afonso não
saía de lá a arfar, causado de rosadas faces, abafado de qualquer
modo, trôpego, aflito de calores, odores, feridas tocadas, cabeça
pesada, nada. saía por seu pé igual como entrara e, sem análise
maior, nada parecia acusá-lo de comer a rapariga. puta que o pariu.
porque andaria a recebê-la perdia sentido, e tempo decorrido desde a
primeira vez, cada vez se parecia mais com um improvável jogo de
gato e rato onde o rato, eu, não conhecia as regras. que mais podia
senão mugir dia inteiro a trabalhar, furioso sem respostas,
adormecido cada vez menos e acordado cada vez mais.
até
o teodolindo posto em cuidado nada me dizia. podia fazer coincidir
com a visita da minha ermesinda a sua entrega dos trajes do dia. mas
não ouvia nada para lá da porta fechada da grande sala. atentamente
entrava de orelhas aguçadas, entregava os delicados trajes de dona
catarina aprumados de véspera e saía por mesmo pé e silêncio. não
lhe parecia ser real que alguém se tivesse de sexo para lá daquela
porta, que mesmo em modos meigos um dia haveria em que se soltaria um
gemido revelador, um soluço de garganta engasgada, um tropeço no
chão ou arrastar de uma cadeira. mas nada. afirmava o teodolindo por
cima das notícias da brunilde, nada se ouvia porque nada devia estar
a acontecer. claro, além disso, vozes, a voz de um e outro,
espaçadamente, percebia-se baixinho, vindas de muito ao fundo da
grande sala, sem contorno suficiente para organizar palavras. eram só
sons de timbre e nenhuma definição.
como
disse à minha ermesinda, ainda volto a pôr-me na teresa diaba só
para sentir que conheço o bicho que tenho nas mãos. e ela corava de
medo, talvez meus pais atentos a escutarem o que lhe dizia, e a minha
mãe como pediria que não fosse bruto com ela. era porque lhe
entortara o pé meu pai, descabido com ela num tempo em que eu era
muito novo, e assim a ensinou de modos para sempre, tomada de
respeitos por ele para o resto da vida, não quisesse que ele lhe
entortasse também o outro. e eu acho que ela se escudava como vítima
de quando em vez para que nos apiedássemos da sua condição de
fêmea, mas eu nunca lhe admitiria que me chamasse a atenção para
os tratos tão cedo dados a ermesinda, era porque algo me escapava ao
entendimento, e desgraçada da mulher que saísse do entendimento do
marido. por isso tudo devia estar bem explícito no seu espírito
coarctado, mesmo mulher, determinadas coisas haveriam de ser
passíveis de se manterem no seu espírito, coisas inclusive nada
complicadas, como não pretender ter segredos para mim e não me
encornar nunca. e se lhe dei o primeiro correctivo de mão na cara
não foi porque não a amasse, e disse-lho, existe amor entre nós,
assim te aceitei por decisão de meu pai que quer o melhor para mim,
mas deus quis que eu fosse este homem e tu a minha mulher, como tal
está nas minhas mãos completar tudo o que no teu feitio está
incompleto, e deverás respeitar-me para que sejas respeitada. nada
do que te disser deve ser posto em causa, a menos que enlouqueças e
me autorizes a pôr-te fim. deitei-me, a minha mãe estremeceu no
lado de lá da parede. o meu pai desconfiou do meu pulso para decidir
da vida sozinho. o aldegundes arrepiou-se por todos, ali sozinho de
mim, a saber que os nossos pais se juntavam menos na cama à noite,
talvez imperfeitos também perante a minha juventude e da ermesinda,
e a saber que cada um de nós se afastava para uma nova realidade,
apartados pelas opções e papéis que nos eram destinados desde
sempre. já não se levantava para acalmar a sarga, e a pobre vaca,
talvez percebida de estar velha e pronta a morrer, deixava-se mais
quieta e deitada fora, talvez temendo que as tábuas lhe partissem os
ossos, se caídas com um coice que lhes desse. e o aldegundes já
nada dizia, mais trabalhador e menos brincado.
[...]
Valter Hugo Mãe, em o remorso de baltazar serapião
Nenhum comentário:
Postar um comentário