Now
that this book is printed, and about
to
be given to the world, a sense of its
short
comings, both in style and contents,
weighs
very heavily.
H.
Rider Haggard: King Solomons’s Mines
Para
muito leitor parecerá estranha esta atividade inesperada num velho
professor provinciano, convertido à sedução da História Natural e
aos encantos divulgativos de leituras recentes. Canto de Muro,
entretanto, é um livro de poucos meses, vivido em muito mais de
quarenta anos.
Muito
antes de 1918, segundanista de Medicina, no Rio de Janeiro, andava eu
colecionando insetos, criando escorpiões (chamados no Nordeste
“lacraus”), aranhas caranguejeiras e formigas saúvas, na grande
chácara que meu pai possuía no bairro do Tirol, na cidade do Natal.
Ali moraram Sofia, na mangueira escura e copada, o sapo Fu, pássaros
agora fixados, o senhor Ka, no estábulo, e, nas gaiolas, a coruja
Maroca e o Xexéu imitador. Ali ocorreu a nuvem de borboletas, creio
que nos finais de 1919, tido como presságio de grande seca. O
bacurau-mede-léguas vivia próximo, e no quintal ondulavam a
jararaca e a cobrinha-de-coral. No quarto da lenha penduravam-se os
morcegos. No tabuleiro derredor, o povo da rainha Ata. No canto de
muro, perto do tanque, morada de Dica, estavam as telhas com as
baratas, e no alpendre velho, onde apodrecia o carro, dormiam os
filhos de Musi. Gô corria por este mundo, e o seu caso fatal,
deixando o rabo numa ratoeira e a cabeça noutra, sucedeu numa
mercearia do meu primo, Bonifácio Dario, onde está o Edifício
Natal, na Praça Augusto Severo. Os dois urubus, um morto e outro
atropelado pelo automóvel, foram vítimas do veículo em que
viajavam meu pai e o Coronel Manuel Maurício Freire, na reta da
Tabajara, caminho para a cidade da Santa Cruz.
Minha
curiosidade fez muitas vítimas para a lupa e o microscópio, com
corantes e fixadores inauditos. Os cadernos se foram enchendo de
notas mas nunca delas me aproveitei. Quase todos os episódios
ocorreram na saudosa Vila Cascudo, paraíso perdido em 1932. A
pesquisa sobre morcegos, frutívoros ou hematófogos, é da praça
Sete de Setembro, assim como o estudo no estômago do senhor Ka. O
caso da raposa e o avião passou-se entre a Fazenda Taborda e a Vila
de Parnamirim, em 1943. O namoro dos pombos foi observado duma janela
do apartamento do meu filho, no Recife, julho de 1957. À batalha da
jararaca com a acauã assistiu meu pai nos arredores do Acari. O
grilo, as lavadeiras, o bem-te-vi, o caminho novo das saúvas são
fatos de minha atual residência, na Avenida Junqueira Aires. Os
xexéus e as tapiucabas foram vistos no Engenho Mangabeira, do
Coronel Filipe Ferreira, em Arez. O duelo e o bailado de Titius foram
presenciados no Tirol, assim como a briga das caranguejeiras.
Verificações
posteriores foram feitas com aparelhagem emprestada pelo Dr. Onofre
Lopes, então diretor da Faculdade de Medicina, e colaboração do
Dr. Grácio Barbalho, professor de Bioquímica.
Nunca
deixei de interessar-me pelo assunto, lendo o possível e tomando
notas desinteressadas. Os caderninhos do Tirol estavam esquecidos e
eu mesmo perdi o que tratava das lesmas, minhocas, e de um grande
gafanhoto de jurema. Ainda possuo as observações pessoais sobre a
pesca do voador e a caça das ribaçãs, parcialmente aproveitadas no
trabalho que presentemente me ocupa, da etnografia geral, pesquisas e
notas do curso na Faculdade de Filosofia do Natal.
Em
fins de dezembro de 1956, meu filho adoeceu gravemente no Recife.
Dáhlia e Anna Maria, mulher e filha, foram para junto dele. Fiquei
sozinho e desesperado de angústia. Inexplicavelmente, pensei nos
meus bichos de outrora e no convívio inesquecido da longínqua
chácara do Tirol. Escrevi o primeiro capítulo. José Pires de
Oliveira, então gerente do Banco do Estado de São Paulo, tomou-se
de amores, contagiando-me o entusiasmo e prestando-se a repetir
experiências. Na ansiedade em que vivia, o esforço foi uma
derivação sublimadora e o livro nasceu com violência. Revi o
material, atualizando documentação e verificações. Num clima de
inquietação e susto Canto de Muro se ergueu, página a
página.
Fernando
Luís veio convalescer no Natal. O livro estava pronto e nele não
passa uma figura humana, um problema, a sombra do Homo sapiens.
Não pensava publicá-lo, e se o fizesse seria sob pseudônimo. Os
meus amigos José Olympio e Daniel Pereira aceitaram, generosamente,
todas as condições, livro com nome suposto, sigilo, animando-me.
Mas minha mulher, filhos, o Bambi (José Pires de Oliveira) e, por
fim, Daniel Pereira, teimavam gentilmente em que eu assinasse o
livro. Acabaram vencendo.
Nenhum
outro possui, como este, a tonalidade emocional. Por isso,
relativamente aos já publicados, no es que fuera mejor ni peor –
es otra cosa!
377,
Av. Junqueira Aires, Natal
Luís da Câmara Cascudo, em Canto de Muro
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