sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Um coice de cavalo na cabeça


A casa dos peões era uma construção comprida e retangular, um tipo de barracão. Lá dentro, as paredes eram caiadas e o chão não tinha pintura. Em três paredes havia janelas quadradas pequenas e, na quarta, uma porta bem sólida com uma tranca de madeira. Encostados na parede havia oito catres, cinco deles arrumados com cobertores e os outros três exibindo o forro de aniagem do colchão. Sobre cada catre havia um caixote de frutas pregado com a abertura para a frente, de modo que formava duas prateleiras para os pertences do ocupante do catre. E as prateleiras estavam cheias de pequenos objetos, sabonete e talco, lâminas de barbear e aquelas revistas de bangue-bangue que os homens das fazendas adoram ler e depois caçoar delas, mas em que acreditam secretamente. E havia remédios nas prateleiras, e pequenos frascos, e pentes; e penduradas nos pregos da lateral dos caixotes, algumas gravatas. Perto de uma parede havia um fogão de ferro fundido preto, com uma chaminé que atravessava o teto. No meio do barracão ficava uma mesa quadrada grande, coberta de cartas de baralho, e em volta dela havia caixotes reforçados para os jogadores se sentarem.
Por volta das dez da manhã, o sol jogava ali uma coluna clara, cheia de poeira, através de uma das janelas laterais, e moscas entravam e saíam do feixe de luz como estrelas cadentes.
A tranca de madeira se ergueu. A porta se abriu e um homem alto, velho, de ombros curvados entrou. Usava calça jeans e carregava uma vassoura grande na mão esquerda. Atrás dele vinha George e, atrás deste, Lennie.
O patrão tava esperando oceis ontem à noite – o velho disse. – Ficô loco da vida quando viu qu’oceis num tavam aqui pra trabaiá hoje de manhã. – Apontou com o braço direito, e da manga saiu um pulso que mais parecia um pau arredondado, mas não tinha mão. – Oceis pode ficá co’aquelas duas cama ali – disse, indicando os dois catres mais próximos do fogão.
George deu um passo à frente e jogou os cobertores em cima do saco de aniagem cheio de palha que era o colchão. Olhou dentro do caixote-prateleira e pegou uma latinha amarela dali de dentro.
Diz uma coisa. Que diabo é isso aqui?
Sei lá – respondeu o velho.
Aqui diz assim: “Acaba com piolho, barata e outras pragas”. Que porcaria de cama que ocê tá dando pra gente? A gente num qué nenhum ninho de rato.
O velho ajudante mudou a vassoura de posição e ficou segurando o cabo entre o cotovelo e a lateral do corpo, ao mesmo tempo que esticou a mão para pegar a lata. Estudou o rótulo com cuidado.
Vô te dizê uma coisa… – terminou por falar. – O último sujeito que ficô nessa cama aí era ferrero… um sujeito muito agradável, e o sujeito mais limpo qu’ocê já viu na vida. Tinha mania de lavá a mão até depois de comer.
Então, como foi que ele pegô piolho? – Dentro de George ia se formando uma raiva vagarosa. Lennie colocou sua trouxa no catre ao lado e se sentou. Ficou observando George com a boca aberta.
Vô te dizê uma coisa – respondeu o velho ajudante. – Esse ferrero aí… o nome dele era Whitey… era o tipo de sujeito que espalhava uns negócio desses aí, memo quando num tinha bicho nenhum… só pra tê certeza, sabe como é? Vô te contá o que ele costumava fazê… Na hora de comê, ele descascava as batata cozida e tirava cada manchinha, de qualquer tipo, antes de comê. E se tivesse uma mancha vermelha em um ovo, ele tirava também. Acabô indo imbora por causa da comida. Ele era esse tipo de sujeito… limpo. Tinha mania de se arrumá todo domingo, memo quando num ia a lugá nenhum, ele até colocava gravata, e daí ficava na casa dos pião.
Num sei não – George disse, cético. – Por que memo foi qu’ocê disse qu’ele foi imbora?
O velho colocou a lata no bolso e afagou o bigode branco espetado com os nós dos dedos.– Sei lá… ele… só pegô e foi imbora, do jeito que uns home vai. Disse que foi por causo da comida. Mas eu acho que ele só queria sigui em frente. Num falô que era por causo de mais nada fora a cumida. Só veio uma noite e disse assim: “Me paga meu serviço”, do jeito que uns home faiz.
George levantou o forro do colchão e olhou por baixo. Debruçou-se e inspecionou o enchimento com muita atenção. Lennie se levantou imediatamente e fez a mesma coisa com a cama dele. Afinal, George pareceu satisfeito. Desenrolou sua trouxa e colocou seus pertences na prateleira, a lâmina de barbear e um sabonete, o pente e um frasco de pílulas, o unguento e a munhequeira de couro. Então arrumou bem a cama com os cobertores. O velho disse:
Acho qu’o patrão vai passá por aqui daqui a uns minuto. Ele ficô nervoso de verdade de vê qu’oceis num tava aqui hoje de manhã. Chegô bem quando a gente tava tomando o café da manhã e disse assim, “Onde diabo tão os trabaiadô novo?”. E aproveitô pra discontá no estribero também.
George arrumou um pedaço de tecido enrugado da cama com um tapinha e se sentou.
Discontô no estribero? – perguntou.
Claro. Sabe como é, o estribero é preto.
Preto, é?
É. E também é um bom camarada. Ficô com as costa alejada no lugá que um cavalo deu um coice nele. O patrão descarrega tudo nele quando tá bravo. Mas o estribero num tá nem aí. Lê muito. Tem uns livro bem bom no quarto dele.
Que tipo de sujeito é esse patrão? – George perguntou.
Bom, ele é um sujeito bem justo. Às vezes fica bem loco da vida, mas é um home bom. Vou te dizê uma coisa… sabe o que ele feiz no Natal? Trouxe um garrafão de uísque bem aqui e disse: “Pode bebê, pessoal. O Natal só vem uma vez cada ano.”
Que diabo, num acredito que ele feiz isso! Um garrafão intero?
Isso memo. Jesus, como a gente se divertiu. Deixaram até o preto entrá naquela noite. Um carrocero chamado Smitty implicou co’o preto. Tava bem alto, também. Os otro num deixaro ele usá os pé, então o preto é que deu um jeito nele. Se tivesse usado os pé, o Smitty disse que ia tê matado o preto. Os otro disse que o preto tinha as costa alejada, e por isso o Smitty não ia podê usá os pé. – Fez uma pausa, saboreando a memória. – Depois todo mundo foi pra Soledad e armô a maió confusão. Eu num fui. Num tenho mais ânimo pra nada disso.
Lennie estava terminando de arrumar a cama. A tranca de madeira se ergueu de novo e a porta se abriu. Um homenzinho corpulento estava parado no batente da porta aberta. Usava calça jeans, camisa de flanela, colete preto desabotoado e um paletó preto. Os polegares estavam enfiados no cinto, cada um de um lado da fivela quadrada de aço. Na cabeça, trazia um chapéu de caubói marrom surrado, e usava botas de salto com espora, para provar que não era trabalhador braçal.
O velho ajudante olhou para ele rapidamente, e então se arrastou até a porta, afagando o bigode com os nós dos dedos enquanto falava.
Esses sujeito chegaro agorinha memo – disse, e passou se arrastando pelo patrão e saiu pela porta.
O patrão entrou no barracão com os passinhos curtos e rápidos de um homem de pernas roliças.
Escrevi pro Murray e pro Ready que eu queria dois homens pra hoje de manhã. Oceis têm aí os cupom de trabaio?
George enfiou a mão no bolso, tirou os cupons e entregou para o patrão.
Não foi culpa do Murray nem do Ready. Diz bem aqui que oceis devia tê chegado pra começá a trabaiá hoje de manhã.
George olhou para os pés.
Mas o motorista do ônibus num foi honesto co’a gente – respondeu. – A gente teve que andá quinze quilômetro. Ele disse que já tava perto, mais num tava. E a gente num conseguiu carona hoje de manhã.
O patrão apertou os olhos.
Bom, eu tive que mandá a turma da colheita com dois carregadô a menos. Agora num adianta mais nada sair antes do almoço. – Tirou a caderneta de ponto do bolso e abriu no lugar onde um lápis estava enfiado, no meio das páginas.
George lançou um olhar sugestivo para Lennie, e Lennie assentiu com a cabeça, para mostrar que tinha entendido. O patrão lambeu o lápis.
Qual é o seu nome?
George Milton.
E o seu?
George respondeu:
Ele chama Lennie Small.
Os nomes foram anotados na caderneta.
Vamo vê, hoje é dia 20, meio-dia do dia 20. – Fechou o caderno. – Por onde é qu’oceis já trabaiaram?
Lá por Weed – George respondeu.
Ocê também? – perguntou para Lennie.
É, ele também – respondeu George.
O patrão apontou um dedo irrequieto para Lennie:
Ele é do tipo que num fala muito, né memo?
É isso aí, ele num fala memo. Mas trabaia que é uma beleza. Forte que nem um touro.
Lennie sorriu para si mesmo:
Forte que nem um touro – repetiu.
George olhou torto para ele, e Lennie deixou a cabeça pender de vergonha por ter esquecido.
O patrão disse de repente:
Olha aqui, Small, o que é qu’ocê sabe fazê?
Em pânico, Lennie olhou para George em busca de ajuda.
Ele é capaiz de fazê qualqué coisa que o sinhô mandá – George respondeu. – É um bom carrocero. Sabe carregá saco de cereal e sabe dirigi arado. Ele faiz qualqué coisa. É só pedi.
O patrão se virou para George:
Então, por que é qu’ocê num deixa ele respondê? O que é qu’ocê tá me aprontando?
George explicou, com a voz bem alta:
Ah! Num tô dizendo qu’ele é isperto. Porque num é não. Mais digo que é trabaiadô de primera. Ele consegue carregá um fardo de duzentos quilo.
O patrão colocou a caderneta no bolso em um gesto rebuscado. Enfiou os polegares no cinto e apertou um dos olhos até quase fechar.
Diz uma coisa… o que é qu’ocê tá vendendo?
Hã?
Eu perguntei qual é o investimento qu’ocê feiz nesse sujeito aí. Ocê tira o pagamento dele?
Num tiro não, claro que num tiro. Por que é que o senhor acha que eu tô vendendo ele?
Bom, nunca vi um sujeito tê tanto trabaio por causa de um otro fulano. Só queria sabê qual é o seu interesse.
George respondeu:
Ele é meu… primo. Eu prometi pruma senhora que ia tomá conta dele. Ele levô um coice de cavalo na cabeça quando era criança. Ele é um homem bom. Só num é isperto. Mas consegue fazê qualqué coisa que o sinhô pede.
O patrão fez menção de ir embora:
Bom, Deus bem sabe que ele num precisa de cérebro nenhum pra carregá saco de cevada. Mais ocê que num vem me tentá aprontá alguma, Milton. Tô de olho n’ocê. Por que foi qu’oceis foro imbora de Weed?
O trabaio terminô – George respondeu prontamente.
Qual era o tipo de trabaio?
A gente… a gente tava cavando uma fossa.
Tudo bem. Mas num vai tentá aprontá nada, porque ocê num vai consegui se safá de nada. Oceis podem sair com a turma da colheita depois do almoço. Eles tão recolhendo a cevada da debulhadora. Oceis pode ficá na turma do Slim.
Slim?
Isso, um sujeito alto e magro. Oceis vão vê ele no almoço. – Deu as costas abruptamente e foi até a porta, mas antes de sair se virou e observou os dois homens durante um longo momento.
Quando o som dos passos dele sumiu, George se virou para Lennie.
A gente tinha combinado qu’ocê num ia soltá nenhuma palavra. Que ia ficá com esse seu bocão bem fechado e ia dexá eu falá tudo. Caramba, a gente quase perdeu o serviço.
Lennie ficou olhando para as mãos, desconsolado.
Eu isqueci, George.
É, ocê isqueceu. Ocê sempre isquece, e eu preciso ficá livrando a tua cara. – Sentou-se pesadamente sobre o catre. – Agora ele vai ficá de olho na gente. Agora a gente precisa tomá cuidado pra num saí da linha. Ocê fica co’o seu bocão bem fechado, faiz o favor.
Caiu em um silêncio moroso.
George.
O que que foi agora?
Eu num levei coice de cavalo nenhum na cabeça, né?

John Steinbeck, em Ratos e Homens

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