sexta-feira, 1 de novembro de 2024

A primeira casa


Do armazém, seguimos em direção ao cais, de volta pelo caminho que eu já tinha percorrido, e mais uma vez pude reparar nas mulheres que tanto me fascinaram, prometendo a mim mesma que um dia usaria aquelas roupas e seria muito mais feliz do que jamais tinha sido, pois foi esta a imagem que elas me passaram, a de felicidade, apesar de tudo. Chegando ao ancoradouro, um barco com mais três pretos estava à nossa espera, e um para-sol foi aberto sobre o nosso dono assim que ele embarcou. Depois que todos estávamos sentados, quatro pretos tomaram seus lugares nas laterais do barco e remaram de modo vigoroso e cadenciado, como se mentalmente cantassem uma música que impunha o ritmo da travessia. Fiquei alegre ao pensar que estava voltando para a Ilha dos Frades, mas logo tomamos outra direção, tendo à nossa frente a maior das ilhas da Baía de Todos os Santos, que depois eu soube se chamar Itaparica.
A ilha crescia e ficava mais bonita à medida que nos aproximávamos, e eu já via suas imensas praias de areia muito branca e palmeiras que pareciam as de África, e, mais para dentro, morros cobertos por florestas que eu também imaginava como as do meu reino. O barco contornou algumas pedras ao longo da costa e atracou em uma das pontas da ilha. Desembarcamos e seguimos primeiro pela praia, para depois entrarmos por uma trilha em meio às árvores. Nós, os pretos, íamos a pé, mas assim que pisamos a areia, o nosso dono já tinha esperando por ele um meio de transporte que achei muito engraçado, e depois vi que era comum entre as pessoas ricas da terra. Uma espécie de cadeira com encosto alto e sem os pés, pois, no lugar deles, logo abaixo do assento, estavam fixadas duas grossas ripas de madeira, que se estendiam paralelas para a frente e para trás de quem estava sentado. Ajoelhados, dois pretos apoiavam as ripas sobre os ombros, uma de cada lado, que eram cuidadosamente erguidas depois que o ocupante se sentava. Os pretos pareciam acostumados àquele trabalho, e era importante que tivessem mais ou menos a mesma altura, para que a cadeira não pendesse para um dos lados. Mesmo assim, não devia ser nada confortável para o ocupante, que corria o risco de perder o equilíbrio a qualquer solavanco ou em um terreno inclinado. Mas o nosso dono, o senhor José Carlos de Almeida Carvalho Gama, de quem herdamos o apelido, preferia o desconforto à caminhada, sempre.
A casa ficava a poucos metros da praia e era das maiores que eu já tinha visto, e a mais bonita. Entramos pela lateral do terreno, grande, cercado de árvores comuns, de árvores com frutas e de muitas plantas floridas. Na frente havia palmeiras e um jardim muito bem cuidado, até o limite com a areia da praia. Nos fundos, em meio a árvores que mais adiante se fechavam em densa mata, havia dois enormes barracões rústicos e pintados de branco. A casa era azul-clara, com as molduras das janelas e das portas pintadas de azul-escuro, a mesma cor das vigas de madeira que sustentavam o telhado da varanda que abraçava toda a construção. Na sombra desta varanda havia algumas cadeiras e redes, plantas em vasos e algumas pretas cantando e costurando, ao lado de três pretos já idosos, que trançavam palha para fazer balaios ou esteiras. O sinhô José Carlos, era assim que ele gostava de ser chamado, mandou que um dos empregados levasse a cozinheira para a senzala pequena e o pescador, para a senzala grande. Para mim, ele disse qualquer coisa que não entendi por ser em português, mas achei que era para segui-lo, o que fiz até a porta da cozinha. Ele entrou e fez um gesto para que eu ficasse esperando do lado de fora da porta, onde apareceram duas mulheres, olharam para mim e tornaram a entrar. Surgiu então uma terceira, mais velha e gorda, vestindo saia e blusa sujas de carvão, que me ofereceu um bom pedaço de bolo e um copo de leite. Ela começou a conversar comigo em português e eu respondia em iorubá, não me lembro exatamente o quê, mas acho que devo ter entendido. Não era difícil entender o português, eu apenas ainda não conseguia falar. Enquanto comia, com gosto e fome, ela me olhava com pena e carinho, e quando devolvi o copo vazio, falou em iorubá que eu tinha que aprender logo o português, pois o sinhô José Carlos não permitia que se falassem línguas de pretos em suas terras, e que qualquer coisa de que eu precisasse era para falar com ela, que se chamava Esméria. E que também era para eu ficar com ela na cozinha até o anoitecer, quando me levaria para a senzala pequena, onde dormiam os escravos que trabalhavam na casa.
A cozinha era maior do que toda a minha casa em Savalu e quase do tamanho da casa da Titilayo, em Uidá. Em um canto havia um enorme fogão a lenha onde a Esméria trabalhava, vermelho, da cor do cimento que cobria o chão. Em uma das paredes havia um armário com várias panelas e uma pia enorme, onde uma outra preta, mais nova que a Esméria e chamada Firmina, lavava uma pilha de coisas de cozinha e de mesa, que eu passava a conhecer a partir daquele momento. Havia também uma mesa sobre a qual, do teto, pendiam molhos de alho, pedaços de toucinho e outras comidas que eu também não conhecia. Ao lado da porta de saída, perto da qual eu tinha me sentado para observar tudo com muita curiosidade, ficava uma outra porta por onde a Esméria entrava e saía diversas vezes, com os ingredientes que usava para fazer a comida. Ao sair, sempre trancava a porta com uma chave que carregava amarrada à cintura. Uma terceira porta, bem em frente de onde eu estava sentada, levava ao interior da casa, velado por uma cortina.
Quando o jantar ficou pronto, um preto muito bem-vestido apareceu para pegar as travessas, muitas, onde a Esméria ia ajeitando a comida de várias qualidades, cada uma disposta em sua própria vasilha. Fiquei tentando imaginar, pela quantidade e variedade, quantas pessoas moravam naquela casa. O preto se chamava Sebastião e era quase branco no seu jeito de andar e de falar, tendo até os pés calçados, como também era o caso da Antônia, que apareceu para ajudá-lo, vestida com roupas diferentes das que a Esméria e a Firmina usavam. Depois do jantar, foram os dois também que carregaram tudo de volta para a cozinha, travessas, pratos, copos, talheres e a comida quase intocada. A Esméria me deu um pouco do que tinha sobrado e disse para eu comer rápido e não contar a ninguém, enquanto ela e a Firmina faziam o mesmo. Depois que as duas terminaram de lavar, secar e guardar a louça, com a Antônia e o Sebastião sentados à mesa e conversando em voz baixa, a Esméria me levou para a senzala pequena, onde também dormiam todos que eu tinha conhecido.
A Esméria riu quando perguntei sobre aquela história de virar carneiro e disse que também já tinha pensado assim. Em iorubá, ela me explicou o que era um escravo, alguém por quem o dono tinha pagado a quantia que achava justa e que lhe dava o direito de ter o escravo trabalhando pelo resto da vida, ou até que ele pudesse pagar pela liberdade que tinha antes de ser comprado. Eu não sei se entendi direito naquele dia, mas a explicação conformada me pareceu justa, e acho que até fiquei feliz por saber que os brancos não nos compravam porque apreciavam a nossa carne. Gostei também quando ela disse que eu seria escrava de companhia da sinhazinha Maria Clara, a filha do sinhô José Carlos. Ele era casado com a sinhá Ana Felipa, mas a mãe da sinhazinha Maria Clara era a sinhá Angélica, que tinha morrido no parto. O sinhô José Carlos então se casou de novo e não teve mais filhos, o que fazia da sinhazinha uma criança bastante solitária naquele mundo de adultos. Antes de mim, ela tinha tido uma outra companhia, uma moça mais velha, que foi vendida pela sinhá Ana Felipa quando começou a se dar ao desfrute dentro da casa. A Esméria recomendou que eu me comportasse bem, nunca dizendo nada que não fosse perguntado, nunca fazendo o que não fosse pedido e nunca desobedecendo ou questionando, mesmo quando achasse que uma ordem estava errada ou era injusta. Era assim que as coisas aconteciam entre pretos e brancos, e era assim que deveriam continuar, pois eu nunca poderia mudá-las e tinha até muita sorte de estar entre os escravos da casa, mais bem tratados do que os que viviam na senzala grande e trabalhavam na lavoura, no engenho ou na pesca da baleia. A Esméria disse ainda que a sinhazinha era uma menina muito boa, pois tinha herdado a bondade da mãe, de quem todos sentiam falta.
A senzala pequena era um cômodo não muito grande, simples, com as paredes pintadas de branco do lado de fora e no tijolo cor de barro do lado de dentro. O chão era de barro alisado, mas muito limpo, sobre o qual estavam estendidas algumas esteiras. A Esméria colocou uma para mim ao lado da dela e mostrou onde dormiam a Firmina, o Sebastião e a Antônia, que eu já conhecia, e onde ia dormir a Maria das Graças, que tinha sido comprada junto comigo para ajudá-la na cozinha. As outras esteiras pertenciam ao Tico e ao Hilário, dois moleques que eram uma espécie de faz-tudo na casa-grande e que estavam sempre fugindo do trabalho, escondidos pelo mato. Havia ainda a esteira da Josefa, que estava na casa preparando o banho e os quartos para os nossos donos dormirem, a do Eufrásio, o capataz, que estava vigiando os pretos da senzala grande e esperando a hora de trancá-los dentro das baias, e a da Rita, a arrumadeira, que normalmente dormia na casa-grande, na cozinha, para o caso de o sinhô, a sinhá ou a sinhazinha precisarem de alguma coisa durante a noite. Eu estava cansada por causa do dia agitado e de tantas novidades, mas feliz por estar ali e pelo trabalho que ia fazer, e principalmente por causa da Esméria, de quem gostei bastante. Queria ter ficado mais tempo pensando na minha avó ou mesmo na Titilayo, que devia estar preocupada por falta de notícias nossas, mas peguei no sono tão logo larguei o corpo na esteira.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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