A
menina entrou na casa grande com nove anos para trabalhar em troca de
sopa e de um colchão estreito. Estava muito salva, diziam-lhe
ajuizadamente todas as pessoas. Se não a tomassem como criada teria
apenas a miséria por garantia. Naqueles tempos, a pobreza não se
curava senão com a piedade de quem podia, e ela acedeu ao seu
destino assim pequena, feita de ossos fininhos, uns olhos claros
esbugalhados de ansiedade, confusa com palavras educadas que nunca
ouvira e deslumbrada com o enfeitado da casa. Pensava: vão
engordar-me, vão acalmar-me, vão educar-me as palavras e pôr-me
bonita.
Era
preciso que tratasse das coisas leves, como as feitas de panos
diversos e as de carregar bocadinhos. Andava pela lavandaria, arejava
cortinas, engomava folhos de infinitas saias e as camisas brancas ou
as calças compridas do patrão. Também levava comida aos cães
presos ao fundo do campo, junto do muro mais distante. Os cães
latiam ali por qualquer ruído ou presença estranha. Eram seguranças
zangados, odiavam intromissões e obedeciam furiosamente aos
interesses dos senhores. Nos primeiros dias, os cães odiaram a
menina. Depois, aprenderam a amá-la no modo invariavelmente irritado
que tinham de existir. Com o tempo, ela haveria de se sentir uma
esquisita irmã dos cães, como eles aprisionada e grata, aprisionada
e fiel, o que era diferente de ser feliz ou, sequer, entender a
felicidade.
A
menina cuidava de não se magoar. Escutava as ordens, aligeirava-se,
dizia sempre que sim, e trabalhava sem muitas conversas. Achava que
as conversas eram modos de aumentar o trabalho, porque ninguém a
chamava para discutir a beleza das cores do céu ou quaisquer sonhos
de princesa. Escutava ordens e reprimendas, a toda a hora lhe
encontravam um desmazelo numa mecha de cabelo, no baço de um sapato,
no torto do avental. Entendia que, para fazer parte daquela vida
requintada, teria também de arranjar-se num enfeite bastante, para
não descombinar com as mobílias ou com as passadeiras aprumadas.
Importava que estivesse branca, lavada, para ser uma presença sem
susto e sem cheiros na delicadeza que era a vida rica dos seus nobres
senhores.
Lentamente,
aprendeu a esquecer-se da sua própria família, para não lhe sentir
a falta, para não carregar incompletudes. Queria estar inteira, como
quem resolve passados e abraça o presente sem hesitações. Era para
não guardar medos, não alimentar medos. Construía esquecimentos,
pensava ela. Gostava de construir esquecimentos. Tinha uma urgência
enorme em dedicar-se às tarefas sem esperar nada. Comia a sopa e
ajeitava-se no colchão estreito para descansar e dormir. Se tivesse
de esperar, seria apenas isso, a sopa e o descanso mais o sono. Era
como lembrar exclusivamente do presente e um pouco do futuro.
Lembrava aquilo que a mantinha viva.
Para
poupanças, a menina vestia uma farda e recebia peças de roupas
velhas que circulavam pelas criadas. Eram roupas das quais a senhora
desistia e as criadas usariam para missas de domingo ou raríssimas
festas. Um dia, já nos seus quinze anos de idade, habituada e assim
agradecida, sempre muito salva, a menina recebeu da patroa um grande
lenço de pescoço incrivelmente sedoso e brilhante que se rasgara
numa das pontas. Era um tecido luminoso que quase não obedecia às
mãos. Soltava-se dos gestos como uma coisa viva que quisesse
caminhar no vento. Era de uma frescura intensa que lhe criava a
impressão de mergulhar as mãos na água. A menina, emocionada com
ser dona de algo tão puro e belo, foi ver ao sol tamanha oferta e
contemplava o quanto transparecia e como o quintal se coava por
aquelas cores igual a ter descido sobre o mundo um arco-íris. Assim
mesmo conservou o lenço rasgado. Era como um animal ferido que não
deixava de ser belo. Ficava dobrado na sua gaveta e acendia-se de
cada vez que o buscava e o deitava sobre o corpo, semelhante a um
pedaço de água que a abraçasse.
Nessa
altura, uma das criadas mais velhas começava a ensinar-lhe a
costura, para medir os tecidos longos e fazer-lhes bainhas rigorosas.
Era fundamental que se estendessem toalhas novas, imaculadas na sua
brancura, para os almoços e jantares de cada dia. Quando estava a
família sem visitas, não se punham os bordados, mas nem por isso se
asseava uma mesa com qualquer trapo. A pequena criada aprendeu a
mexer nas agulhas e nas linhas, aprendeu a coser num traço contínuo,
certinho, como se tivesse uma máquina. Remendava e refazia.
Aproveitava as tiras que restavam para guardanapos, inventava laços
para adornar os cantos. As toalhas corriqueiras da casa grande
passaram a ter diferenças, discretamente tornadas mais divertidas,
mais bonitas. Toda a gente reparou nisso. Os senhores estavam
orgulhosos por terem acolhido aquela criadita. Tinham sido ajuizados
na escolha e na instrução que lhe ministraram. Tinham uma casa
feliz. Uma casa com a inteligência adequada, era o mesmo que dizer
que serviam de boa escola para a vida.
Certo
domingo, na luz ainda débil da manhã, antes da missa das sete, a
criada assomou ao átrio numa blusa nunca vista. Era quase como
apenas uma cor deitada acima de uma roupa interior branca. Uma cor
que pairava como um perfume de se ver sobre o seu corpo sempre magro.
Amanhecia o domingo de verão e a moça, também corada, parecia
parte da luz nascendo. Caminhava timidamente nessa sensação
flutuante, líquida. As pessoas espantavam-se, porque as criadas não
acediam a um tal requinte. E tanto se espantaram que a patroa veio
saber o que se passava, como se houvesse culpa em alguém se mudar
para bonito. A moça transformara o velho lenço rasgado. Como quem
costura charcos de água, ela criou uma obra perfeita e, ainda que a
saia preta sob o avental de serviço a mantivesse a trabalho, quem a
encarava julgava ver uma moça com a possibilidade de ser feliz. A
patroa, despreparada para a surpresa, ordenou-lhe que fosse embora,
que entrasse imediatamente em casa e se arranjasse nas vestes que lhe
competiam. Ser bonita estava absolutamente fora das suas
competências. Não eram modos para uma criada, e não se fazia festa
na missa de domingo. Estava obrigada a ter decoro, a ser discreta.
Estava obrigada a ser ninguém. Como se a beleza ou a felicidade
fossem indecorosas.
A
moça, apressada, obedeceu. Pensou que, remendado, o lenço
continuava a ser como um bicho ferido. Sentia, contudo, que o rasgado
passara para dentro do seu peito.
Considerou
que fora ridícula a sua vontade. Deixara-se entusiasmar pela
imaginação e pelos predicados mágicos do lenço. Nunca deveria ter
esquecido que lhe competia cumprir tarefas para uma sobrevivência
acordada desde os nove anos de idade. Ultrapassara o que se guardara
para seu destino. Fora ridícula, de verdade. Fora ingénua como as
crianças. Assim se despiu daquela coisa de água e a devolveu à
escuridão da gaveta igual a um peixe vazio, sem ar. Coube, depois,
novamente na sua camisa de hábito. Ponderou regressar à rua para
atender ainda à missa, mas desistiu. Mais valia que fosse adiantar
trabalho, para se redimir, para construir o esquecimento e recuperar
a calma e a urgente sensação de dignidade.
Na
tarde daquele domingo, a patroa mandou a moça para longe, a um
recado demorado, e meteu-se no quarto dela à procura do lenço que
agora era coisa de se vestir. Nos parcos pertences da criada,
encontrou-o em breves segundos. Deitou-lhe um candeeiro por cima para
ver melhor, como se pusesse aquilo na mira de um microscópio na
banca de um laboratório. Estava incrédula com a ciência da criada.
Nem os pontos de costura se notavam. A linha compunha tudo sem se
ver. Uns pontos mínimos que mais se assemelhavam a sombras fugidias,
improváveis, juntavam as partes. A patroa mexeu e remexeu, algo a
incomodava na perfeição daquele trabalho. Costumava deitar fora as
roupas sem serventia, estragadas, imprestáveis para uma senhora de
prestígio, não podia esperar que um lenço rasgado pudesse ser
refeito noutra obra mais impressionante ainda. Era como transformar
uma matéria morta noutra presença quase falante. Algo absurdo que
conferia um talento insuportável a uma criada tão jovem. Queria
dizer, uma inteligência insuportável a uma criada. A senhora achava
que as criadas deviam ter uma inteligência reservada, manifesta no
cuidado da casa e no bem-estar essencial dos patrões. Eram para ser
espertas e íntimas. Como pessoas íntimas, quase secretas de quem a
comunidade lá fora não escutasse nada. Fechou a gaveta com a
sensação de trancar uma caixa de pólen. A senhora não sabia o que
fazer e, por isso, não fez nada. Apertou o rosto. Desgostava de
tudo. Estava refilona e cheia de encomendas. Cobiçou ser ainda mais
bela e andar ainda mais bem vestida. Considerou que aproveitaria
cuidadosamente para si mesma a benesse de lhe ter aparecido tão
requintada costureira.
Disseram-lhe
para carregar bocadinhos de terra. Mudavam-se os vasos e plantavam-se
melhores ideias, explicaram assim. Ajardinavam. A criada então
fazia. Escadas acima e abaixo, com dois baldes de terra limpa que
escolhia ao lado das hortas, obedecia já sem tristezas, apenas a
força de sempre. Durante as conversas esparsas, comentavam as
mulheres acerca do que acontecera. Achavam uma arrogância que a moça
quisesse sair à rua vestida de rica. Era como querer os sonhos dos
outros, era como enganar os outros. Quem a visse provavelmente
haveria de julgá-la herdeira e cheia de instrução quando, na
verdade, mal sabia ler e vivia da paciência de piedosas almas. A
criada, suja de terra e sempre a trabalhar, ia e vinha entre as
palavras que se diziam e escondiam. Fazia de conta que não lhe
respeitavam, para não se sentir obrigada a elucidar ninguém sobre o
que lhe passara pela cabeça. De todo o modo, não era nada
complicado de entender. Talvez quisesse ser um pouco bonita, nem que
apenas aos domingos, para a missa, como quem interpreta um teatro,
como quem representa o que não é e pede a felicidade emprestada.
Como se, por uns breves instantes, a vida dos trabalhadores fosse
coisa diversa e tivesse passeio ou amor.
Quando
a criada estava quase nos dezoito anos de idade, o corpo inteiro de
mulher e um brilho nos olhos que era glória da saúde, achavam as
colegas que mais valia que fosse dada de casamento a um qualquer. A
patroa, que havia muito a punha de costureira para as suas vaidades,
a cuidar de uma infinidade de folhos como quebra-cabeças derramados
pelo corpo abaixo, não queria abdicar de criada alguma. As criadas
eram investimentos demorados e não se podiam jogar porta fora por
caprichos, sem boa ponderação. A costureira, invariavelmente
frágil, valia para minudências que marcavam a nobreza dos senhores.
Era bom que não tivesse amores nem soubesse nada acerca disso. No
entanto, à revelia da prudência, lá apareceu pela casa grande um
rapaz a entregas esporádicas que olhava para a criada com alguma
lentidão. À passagem da criada, o rapaz devagava. Suspendia-se até
no fôlego, via encantado, alegrava-se e sofria ao mesmo tempo. A
moça, por seu lado, mantinha o discreto brio, escapulindo-se de
imediato, correndo às refeições dos cães. Por vezes, ali ficando
um bom bocado. Não era que discutisse a sua vida com os cães,
porque não discutia a vida, mas fugia porque lhe dava um medo
estranho a partir dos sentimentos. Estava esclarecida acerca do
perigo interior, como dizia para si mesma, o que advinha de vontades
que não podia ou não sabia controlar. Os cães refilavam, que era
maneira de expressarem cada coisa, desde o amor à aflição. Talvez
pressentissem na moça uma dúvida qualquer. A moça, sem querer,
carregava aos bocadinhos o amor para dentro de cada gesto, como quem
se movia para um único objectivo. De tudo quanto alguma vez
carregara, o amor era o mais difícil de segurar.
O
amor nascia-lhe só de existir alguém. Era o mais genuíno e limpo
dos sentimentos.
A
senhora, proprietária e desagradada, ordenou que o rapaz não
voltasse àquela casa. Haveriam as entregas de ser feitas por um
velho que já não observasse mulheres nem estivesse ainda dotado de
deslumbres. A criada, que queria achar nisso uma decisão justa,
distraía-se. Começava a magoar-se com as agulhas. Não reparava no
que fazia, furava os dedos, chorava de dor. Corria para os cães,
frustrada e sem se entender. Comia menos, dormia menos, estava igual
a emburrecida, estragada, adoentada, malcriada. A criada andava
desnorteada e ninguém lhe mostrava orientação que bastasse.
Passavam o boato de que a moça sucumbira de bem-querença. O pouco
que vira o rapaz das entregas muito lhe servira de carinho. A moça
devagava também, a pensar para longe como um animal enjaulado que
apenas concebe o caminho livre.
No
domingo seguinte, antes da missa, naquela luz nascente, a criada
vestiu a sua blusa de princesa e soltou os cães que se puseram em
reboliço e latindo. Quem estava no átrio, à espera que todos se
reunissem para seguirem até à igreja, viu a moça passar como uma
coisa ardendo e os cães sempre rosnando em torno dela. Desapareceu
para o emaranhado das árvores, justamente para o lado em que ficaria
a casa dos seus pais. Julgaram, as cabeças estupefactas, que no
matagal se daria um incêndio. Mas nunca mais viram ou ouviram falar
da moça. A liberdade também era isso, não voltar. O amor existia
em todas as direcções. Ela pressentia isso. Que o amor estava para
lá de qualquer direcção.
Valter Hugo Mãe, em Contos de cães e maus lobos
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