sexta-feira, 1 de novembro de 2024
A primeira casa
Do
armazém, seguimos em direção ao cais, de volta pelo caminho que eu
já tinha percorrido, e mais uma vez pude reparar nas mulheres que
tanto me fascinaram, prometendo a mim mesma que um dia usaria aquelas
roupas e seria muito mais feliz do que jamais tinha sido, pois foi
esta a imagem que elas me passaram, a de felicidade, apesar de tudo.
Chegando ao ancoradouro, um barco com mais três pretos estava à
nossa espera, e um para-sol foi aberto sobre o nosso dono assim que
ele embarcou. Depois que todos estávamos sentados, quatro pretos
tomaram seus lugares nas laterais do barco e remaram de modo vigoroso
e cadenciado, como se mentalmente cantassem uma música que impunha o
ritmo da travessia. Fiquei alegre ao pensar que estava voltando para
a Ilha dos Frades, mas logo tomamos outra direção, tendo à nossa
frente a maior das ilhas da Baía de Todos os Santos, que depois eu
soube se chamar Itaparica.
A
ilha crescia e ficava mais bonita à medida que nos aproximávamos, e
eu já via suas imensas praias de areia muito branca e palmeiras que
pareciam as de África, e, mais para dentro, morros cobertos por
florestas que eu também imaginava como as do meu reino. O barco
contornou algumas pedras ao longo da costa e atracou em uma das
pontas da ilha. Desembarcamos e seguimos primeiro pela praia, para
depois entrarmos por uma trilha em meio às árvores. Nós, os
pretos, íamos a pé, mas assim que pisamos a areia, o nosso dono já
tinha esperando por ele um meio de transporte que achei muito
engraçado, e depois vi que era comum entre as pessoas ricas da
terra. Uma espécie de cadeira com encosto alto e sem os pés, pois,
no lugar deles, logo abaixo do assento, estavam fixadas duas grossas
ripas de madeira, que se estendiam paralelas para a frente e para
trás de quem estava sentado. Ajoelhados, dois pretos apoiavam as
ripas sobre os ombros, uma de cada lado, que eram cuidadosamente
erguidas depois que o ocupante se sentava. Os pretos pareciam
acostumados àquele trabalho, e era importante que tivessem mais ou
menos a mesma altura, para que a cadeira não pendesse para um dos
lados. Mesmo assim, não devia ser nada confortável para o ocupante,
que corria o risco de perder o equilíbrio a qualquer solavanco ou em
um terreno inclinado. Mas o nosso dono, o senhor José Carlos de
Almeida Carvalho Gama, de quem herdamos o apelido, preferia o
desconforto à caminhada, sempre.
A
casa ficava a poucos metros da praia e era das maiores que eu já
tinha visto, e a mais bonita. Entramos pela lateral do terreno,
grande, cercado de árvores comuns, de árvores com frutas e de
muitas plantas floridas. Na frente havia palmeiras e um jardim muito
bem cuidado, até o limite com a areia da praia. Nos fundos, em meio
a árvores que mais adiante se fechavam em densa mata, havia dois
enormes barracões rústicos e pintados de branco. A casa era
azul-clara, com as molduras das janelas e das portas pintadas de
azul-escuro, a mesma cor das vigas de madeira que sustentavam o
telhado da varanda que abraçava toda a construção. Na sombra desta
varanda havia algumas cadeiras e redes, plantas em vasos e algumas
pretas cantando e costurando, ao lado de três pretos já idosos, que
trançavam palha para fazer balaios ou esteiras. O sinhô José
Carlos, era assim que ele gostava de ser chamado, mandou que um dos
empregados levasse a cozinheira para a senzala pequena e o pescador,
para a senzala grande. Para mim, ele disse qualquer coisa que não
entendi por ser em português, mas achei que era para segui-lo, o que
fiz até a porta da cozinha. Ele entrou e fez um gesto para que eu
ficasse esperando do lado de fora da porta, onde apareceram duas
mulheres, olharam para mim e tornaram a entrar. Surgiu então uma
terceira, mais velha e gorda, vestindo saia e blusa sujas de carvão,
que me ofereceu um bom pedaço de bolo e um copo de leite. Ela
começou a conversar comigo em português e eu respondia em iorubá,
não me lembro exatamente o quê, mas acho que devo ter entendido.
Não era difícil entender o português, eu apenas ainda não
conseguia falar. Enquanto comia, com gosto e fome, ela me olhava com
pena e carinho, e quando devolvi o copo vazio, falou em iorubá que
eu tinha que aprender logo o português, pois o sinhô José Carlos
não permitia que se falassem línguas de pretos em suas terras, e
que qualquer coisa de que eu precisasse era para falar com ela, que
se chamava Esméria. E que também era para eu ficar com ela na
cozinha até o anoitecer, quando me levaria para a senzala pequena,
onde dormiam os escravos que trabalhavam na casa.
A
cozinha era maior do que toda a minha casa em Savalu e quase do
tamanho da casa da Titilayo, em Uidá. Em um canto havia um enorme
fogão a lenha onde a Esméria trabalhava, vermelho, da cor do
cimento que cobria o chão. Em uma das paredes havia um armário com
várias panelas e uma pia enorme, onde uma outra preta, mais nova que
a Esméria e chamada Firmina, lavava uma pilha de coisas de cozinha e
de mesa, que eu passava a conhecer a partir daquele momento. Havia
também uma mesa sobre a qual, do teto, pendiam molhos de alho,
pedaços de toucinho e outras comidas que eu também não conhecia.
Ao lado da porta de saída, perto da qual eu tinha me sentado para
observar tudo com muita curiosidade, ficava uma outra porta por onde
a Esméria entrava e saía diversas vezes, com os ingredientes que
usava para fazer a comida. Ao sair, sempre trancava a porta com uma
chave que carregava amarrada à cintura. Uma terceira porta, bem em
frente de onde eu estava sentada, levava ao interior da casa, velado
por uma cortina.
Quando
o jantar ficou pronto, um preto muito bem-vestido apareceu para pegar
as travessas, muitas, onde a Esméria ia ajeitando a comida de várias
qualidades, cada uma disposta em sua própria vasilha. Fiquei
tentando imaginar, pela quantidade e variedade, quantas pessoas
moravam naquela casa. O preto se chamava Sebastião e era quase
branco no seu jeito de andar e de falar, tendo até os pés calçados,
como também era o caso da Antônia, que apareceu para ajudá-lo,
vestida com roupas diferentes das que a Esméria e a Firmina usavam.
Depois do jantar, foram os dois também que carregaram tudo de volta
para a cozinha, travessas, pratos, copos, talheres e a comida quase
intocada. A Esméria me deu um pouco do que tinha sobrado e disse
para eu comer rápido e não contar a ninguém, enquanto ela e a
Firmina faziam o mesmo. Depois que as duas terminaram de lavar, secar
e guardar a louça, com a Antônia e o Sebastião sentados à mesa e
conversando em voz baixa, a Esméria me levou para a senzala pequena,
onde também dormiam todos que eu tinha conhecido.
A
Esméria riu quando perguntei sobre aquela história de virar
carneiro e disse que também já tinha pensado assim. Em iorubá, ela
me explicou o que era um escravo, alguém por quem o dono tinha
pagado a quantia que achava justa e que lhe dava o direito de ter o
escravo trabalhando pelo resto da vida, ou até que ele pudesse pagar
pela liberdade que tinha antes de ser comprado. Eu não sei se
entendi direito naquele dia, mas a explicação conformada me pareceu
justa, e acho que até fiquei feliz por saber que os brancos não nos
compravam porque apreciavam a nossa carne. Gostei também quando ela
disse que eu seria escrava de companhia da sinhazinha Maria Clara, a
filha do sinhô José Carlos. Ele era casado com a sinhá Ana Felipa,
mas a mãe da sinhazinha Maria Clara era a sinhá Angélica, que
tinha morrido no parto. O sinhô José Carlos então se casou de novo
e não teve mais filhos, o que fazia da sinhazinha uma criança
bastante solitária naquele mundo de adultos. Antes de mim, ela tinha
tido uma outra companhia, uma moça mais velha, que foi vendida pela
sinhá Ana Felipa quando começou a se dar ao desfrute dentro da
casa. A Esméria recomendou que eu me comportasse bem, nunca dizendo
nada que não fosse perguntado, nunca fazendo o que não fosse pedido
e nunca desobedecendo ou questionando, mesmo quando achasse que uma
ordem estava errada ou era injusta. Era assim que as coisas
aconteciam entre pretos e brancos, e era assim que deveriam
continuar, pois eu nunca poderia mudá-las e tinha até muita sorte
de estar entre os escravos da casa, mais bem tratados do que os que
viviam na senzala grande e trabalhavam na lavoura, no engenho ou na
pesca da baleia. A Esméria disse ainda que a sinhazinha era uma
menina muito boa, pois tinha herdado a bondade da mãe, de quem todos
sentiam falta.
A
senzala pequena era um cômodo não muito grande, simples, com as
paredes pintadas de branco do lado de fora e no tijolo cor de barro
do lado de dentro. O chão era de barro alisado, mas muito limpo,
sobre o qual estavam estendidas algumas esteiras. A Esméria colocou
uma para mim ao lado da dela e mostrou onde dormiam a Firmina, o
Sebastião e a Antônia, que eu já conhecia, e onde ia dormir a
Maria das Graças, que tinha sido comprada junto comigo para ajudá-la
na cozinha. As outras esteiras pertenciam ao Tico e ao Hilário, dois
moleques que eram uma espécie de faz-tudo na casa-grande e que
estavam sempre fugindo do trabalho, escondidos pelo mato. Havia ainda
a esteira da Josefa, que estava na casa preparando o banho e os
quartos para os nossos donos dormirem, a do Eufrásio, o capataz, que
estava vigiando os pretos da senzala grande e esperando a hora de
trancá-los dentro das baias, e a da Rita, a arrumadeira, que
normalmente dormia na casa-grande, na cozinha, para o caso de o
sinhô, a sinhá ou a sinhazinha precisarem de alguma coisa durante a
noite. Eu estava cansada por causa do dia agitado e de tantas
novidades, mas feliz por estar ali e pelo trabalho que ia fazer, e
principalmente por causa da Esméria, de quem gostei bastante. Queria
ter ficado mais tempo pensando na minha avó ou mesmo na Titilayo,
que devia estar preocupada por falta de notícias nossas, mas peguei
no sono tão logo larguei o corpo na esteira.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
“nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares”
Este
é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os
pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... Ai que enjoo me
dá o açúcar do desejo.
Ana Cristina Cesar, em Cenas de abril
Um coice de cavalo na cabeça
A
casa dos peões era uma construção comprida e retangular, um tipo
de barracão. Lá dentro, as paredes eram caiadas e o chão não
tinha pintura. Em três paredes havia janelas quadradas pequenas e,
na quarta, uma porta bem sólida com uma tranca de madeira.
Encostados na parede havia oito catres, cinco deles arrumados com
cobertores e os outros três exibindo o forro de aniagem do colchão.
Sobre cada catre havia um caixote de frutas pregado com a abertura
para a frente, de modo que formava duas prateleiras para os pertences
do ocupante do catre. E as prateleiras estavam cheias de pequenos
objetos, sabonete e talco, lâminas de barbear e aquelas revistas de
bangue-bangue que os homens das fazendas adoram ler e depois caçoar
delas, mas em que acreditam secretamente. E havia remédios nas
prateleiras, e pequenos frascos, e pentes; e penduradas nos pregos da
lateral dos caixotes, algumas gravatas. Perto de uma parede havia um
fogão de ferro fundido preto, com uma chaminé que atravessava o
teto. No meio do barracão ficava uma mesa quadrada grande, coberta
de cartas de baralho, e em volta dela havia caixotes reforçados para
os jogadores se sentarem.
Por
volta das dez da manhã, o sol jogava ali uma coluna clara, cheia de
poeira, através de uma das janelas laterais, e moscas entravam e
saíam do feixe de luz como estrelas cadentes.
A
tranca de madeira se ergueu. A porta se abriu e um homem alto, velho,
de ombros curvados entrou. Usava calça jeans e carregava uma
vassoura grande na mão esquerda. Atrás dele vinha George e, atrás
deste, Lennie.
– O
patrão tava esperando oceis ontem à noite – o velho disse. –
Ficô loco da vida quando viu qu’oceis num tavam aqui pra trabaiá
hoje de manhã. – Apontou com o braço direito, e da manga saiu um
pulso que mais parecia um pau arredondado, mas não tinha mão. –
Oceis pode ficá co’aquelas duas cama ali – disse, indicando os
dois catres mais próximos do fogão.
George
deu um passo à frente e jogou os cobertores em cima do saco de
aniagem cheio de palha que era o colchão. Olhou dentro do
caixote-prateleira e pegou uma latinha amarela dali de dentro.
– Diz
uma coisa. Que diabo é isso aqui?
– Sei
lá – respondeu o velho.
– Aqui
diz assim: “Acaba com piolho, barata e outras pragas”. Que
porcaria de cama que ocê tá dando pra gente? A gente num qué
nenhum ninho de rato.
O
velho ajudante mudou a vassoura de posição e ficou segurando o cabo
entre o cotovelo e a lateral do corpo, ao mesmo tempo que esticou a
mão para pegar a lata. Estudou o rótulo com cuidado.
– Vô
te dizê uma coisa… – terminou por falar. – O último sujeito
que ficô nessa cama aí era ferrero… um sujeito muito agradável,
e o sujeito mais limpo qu’ocê já viu na vida. Tinha mania de lavá
a mão até depois de comer.
– Então,
como foi que ele pegô piolho? – Dentro de George ia se formando
uma raiva vagarosa. Lennie colocou sua trouxa no catre ao lado e se
sentou. Ficou observando George com a boca aberta.
– Vô
te dizê uma coisa – respondeu o velho ajudante. – Esse ferrero
aí… o nome dele era Whitey… era o tipo de sujeito que espalhava
uns negócio desses aí, memo quando num tinha bicho nenhum… só
pra tê certeza, sabe como é? Vô te contá o que ele costumava
fazê… Na hora de comê, ele descascava as batata cozida e tirava
cada manchinha, de qualquer tipo, antes de comê. E se tivesse uma
mancha vermelha em um ovo, ele tirava também. Acabô indo imbora por
causa da comida. Ele era esse tipo de sujeito… limpo. Tinha mania
de se arrumá todo domingo, memo quando num ia a lugá nenhum, ele
até colocava gravata, e daí ficava na casa dos pião.
– Num
sei não – George disse, cético. – Por que memo foi qu’ocê
disse qu’ele foi imbora?
O
velho colocou a lata no bolso e afagou o bigode branco espetado com
os nós dos dedos.– Sei lá… ele… só pegô e foi imbora, do
jeito que uns home vai. Disse que foi por causo da comida. Mas eu
acho que ele só queria sigui em frente. Num falô que era por causo
de mais nada fora a cumida. Só veio uma noite e disse assim: “Me
paga meu serviço”, do jeito que uns home faiz.
George
levantou o forro do colchão e olhou por baixo. Debruçou-se e
inspecionou o enchimento com muita atenção. Lennie se levantou
imediatamente e fez a mesma coisa com a cama dele. Afinal, George
pareceu satisfeito. Desenrolou sua trouxa e colocou seus pertences na
prateleira, a lâmina de barbear e um sabonete, o pente e um frasco
de pílulas, o unguento e a munhequeira de couro. Então arrumou bem
a cama com os cobertores. O velho disse:
– Acho
qu’o patrão vai passá por aqui daqui a uns minuto. Ele ficô
nervoso de verdade de vê qu’oceis num tava aqui hoje de manhã.
Chegô bem quando a gente tava tomando o café da manhã e disse
assim, “Onde diabo tão os trabaiadô novo?”. E aproveitô pra
discontá no estribero também.
George
arrumou um pedaço de tecido enrugado da cama com um tapinha e se
sentou.
– Discontô
no estribero? – perguntou.
– Claro.
Sabe como é, o estribero é preto.
– Preto,
é?
– É.
E também é um bom camarada. Ficô com as costa alejada no lugá que
um cavalo deu um coice nele. O patrão descarrega tudo nele quando tá
bravo. Mas o estribero num tá nem aí. Lê muito. Tem uns livro bem
bom no quarto dele.
– Que
tipo de sujeito é esse patrão? – George perguntou.
– Bom,
ele é um sujeito bem justo. Às vezes fica bem loco da vida, mas é
um home bom. Vou te dizê uma coisa… sabe o que ele feiz no Natal?
Trouxe um garrafão de uísque bem aqui e disse: “Pode bebê,
pessoal. O Natal só vem uma vez cada ano.”
– Que
diabo, num acredito que ele feiz isso! Um garrafão intero?
– Isso
memo. Jesus, como a gente se divertiu. Deixaram até o preto entrá
naquela noite. Um carrocero chamado Smitty implicou co’o preto.
Tava bem alto, também. Os otro num deixaro ele usá os pé, então o
preto é que deu um jeito nele. Se tivesse usado os pé, o Smitty
disse que ia tê matado o preto. Os otro disse que o preto tinha as
costa alejada, e por isso o Smitty não ia podê usá os pé. – Fez
uma pausa, saboreando a memória. – Depois todo mundo foi pra
Soledad e armô a maió confusão. Eu num fui. Num tenho mais ânimo
pra nada disso.
Lennie
estava terminando de arrumar a cama. A tranca de madeira se ergueu de
novo e a porta se abriu. Um homenzinho corpulento estava parado no
batente da porta aberta. Usava calça jeans, camisa de flanela,
colete preto desabotoado e um paletó preto. Os polegares estavam
enfiados no cinto, cada um de um lado da fivela quadrada de aço. Na
cabeça, trazia um chapéu de caubói marrom surrado, e usava botas
de salto com espora, para provar que não era trabalhador braçal.
O
velho ajudante olhou para ele rapidamente, e então se arrastou até
a porta, afagando o bigode com os nós dos dedos enquanto falava.
– Esses
sujeito chegaro agorinha memo – disse, e passou se arrastando pelo
patrão e saiu pela porta.
O
patrão entrou no barracão com os passinhos curtos e rápidos de um
homem de pernas roliças.
– Escrevi
pro Murray e pro Ready que eu queria dois homens pra hoje de manhã.
Oceis têm aí os cupom de trabaio?
George
enfiou a mão no bolso, tirou os cupons e entregou para o patrão.
– Não
foi culpa do Murray nem do Ready. Diz bem aqui que oceis devia tê
chegado pra começá a trabaiá hoje de manhã.
George
olhou para os pés.
– Mas
o motorista do ônibus num foi honesto co’a gente – respondeu. –
A gente teve que andá quinze quilômetro. Ele disse que já tava
perto, mais num tava. E a gente num conseguiu carona hoje de manhã.
O
patrão apertou os olhos.
– Bom,
eu tive que mandá a turma da colheita com dois carregadô a menos.
Agora num adianta mais nada sair antes do almoço. – Tirou a
caderneta de ponto do bolso e abriu no lugar onde um lápis estava
enfiado, no meio das páginas.
George
lançou um olhar sugestivo para Lennie, e Lennie assentiu com a
cabeça, para mostrar que tinha entendido. O patrão lambeu o lápis.
– Qual
é o seu nome?
– George
Milton.
– E
o seu?
George
respondeu:
– Ele
chama Lennie Small.
Os
nomes foram anotados na caderneta.
– Vamo
vê, hoje é dia 20, meio-dia do dia 20. – Fechou o caderno. –
Por onde é qu’oceis já trabaiaram?
– Lá
por Weed – George respondeu.
– Ocê
também? – perguntou para Lennie.
– É,
ele também – respondeu George.
O
patrão apontou um dedo irrequieto para Lennie:
– Ele
é do tipo que num fala muito, né memo?
– É
isso aí, ele num fala memo. Mas trabaia que é uma beleza. Forte que
nem um touro.
Lennie
sorriu para si mesmo:
– Forte
que nem um touro – repetiu.
George
olhou torto para ele, e Lennie deixou a cabeça pender de vergonha
por ter esquecido.
O
patrão disse de repente:
– Olha
aqui, Small, o que é qu’ocê sabe fazê?
Em
pânico, Lennie olhou para George em busca de ajuda.
– Ele
é capaiz de fazê qualqué coisa que o sinhô mandá – George
respondeu. – É um bom carrocero. Sabe carregá saco de cereal e
sabe dirigi arado. Ele faiz qualqué coisa. É só pedi.
O
patrão se virou para George:
– Então,
por que é qu’ocê num deixa ele respondê? O que é qu’ocê tá
me aprontando?
George
explicou, com a voz bem alta:
– Ah!
Num tô dizendo qu’ele é isperto. Porque num é não. Mais digo
que é trabaiadô de primera. Ele consegue carregá um fardo de
duzentos quilo.
O
patrão colocou a caderneta no bolso em um gesto rebuscado. Enfiou os
polegares no cinto e apertou um dos olhos até quase fechar.
– Diz
uma coisa… o que é qu’ocê tá vendendo?
– Hã?
– Eu
perguntei qual é o investimento qu’ocê feiz nesse sujeito aí.
Ocê tira o pagamento dele?
– Num
tiro não, claro que num tiro. Por que é que o senhor acha que eu tô
vendendo ele?
– Bom,
nunca vi um sujeito tê tanto trabaio por causa de um otro fulano. Só
queria sabê qual é o seu interesse.
George
respondeu:
– Ele
é meu… primo. Eu prometi pruma senhora que ia tomá conta dele.
Ele levô um coice de cavalo na cabeça quando era criança. Ele é
um homem bom. Só num é isperto. Mas consegue fazê qualqué coisa
que o sinhô pede.
O
patrão fez menção de ir embora:
– Bom,
Deus bem sabe que ele num precisa de cérebro nenhum pra carregá
saco de cevada. Mais ocê que num vem me tentá aprontá alguma,
Milton. Tô de olho n’ocê. Por que foi qu’oceis foro imbora de
Weed?
– O
trabaio terminô – George respondeu prontamente.
– Qual
era o tipo de trabaio?
– A
gente… a gente tava cavando uma fossa.
– Tudo
bem. Mas num vai tentá aprontá nada, porque ocê num vai consegui
se safá de nada. Oceis podem sair com a turma da colheita depois do
almoço. Eles tão recolhendo a cevada da debulhadora. Oceis pode
ficá na turma do Slim.
– Slim?
– Isso,
um sujeito alto e magro. Oceis vão vê ele no almoço. – Deu as
costas abruptamente e foi até a porta, mas antes de sair se virou e
observou os dois homens durante um longo momento.
Quando
o som dos passos dele sumiu, George se virou para Lennie.
– A
gente tinha combinado qu’ocê num ia soltá nenhuma palavra. Que ia
ficá com esse seu bocão bem fechado e ia dexá eu falá tudo.
Caramba, a gente quase perdeu o serviço.
Lennie
ficou olhando para as mãos, desconsolado.
– Eu
isqueci, George.
– É,
ocê isqueceu. Ocê sempre isquece, e eu preciso ficá livrando a tua
cara. – Sentou-se pesadamente sobre o catre. – Agora ele vai ficá
de olho na gente. Agora a gente precisa tomá cuidado pra num saí da
linha. Ocê fica co’o seu bocão bem fechado, faiz o favor.
Caiu
em um silêncio moroso.
– George.
– O
que que foi agora?
– Eu
num levei coice de cavalo nenhum na cabeça, né?
John Steinbeck, em Ratos e Homens
Nem tudo que reluz é ouro
Então não apanhei no chão o que reluzia. Era ouro, meu Deus. Era ouro, talvez.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
De velhas e novas tábuas | 3.
Foi
também lá que recolhi do caminho a palavra “super-homem”, e que
o homem é algo que tem de ser superado,
— que
o homem é uma ponte e não um fim: declarando-se bem-aventurado por
seu meio-dia e entardecer, como o caminho para novas auroras:
— a
palavra de Zaratustra do grande meio-dia, e o que mais suspendi sobre
os homens, como segundas auroras purpúreas.
Em
verdade, também novas estrelas os fiz ver, junto com novas noites; e
sobre as nuvens, o dia e a noite estendi o riso, como uma tenda
multicor.
Ensinei-lhes
todo o meu engenho e esforço: compor e transformar em um o que no
homem é pedaço, enigma e apavorante acaso, —
— como
poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso ensinei-lhes a criar
com o futuro, a redimir criadoramente tudo aquilo que — foi.
Redimir
o passado no homem e recriar todo “Foi assim”, até que a vontade
diga: “Mas assim eu quis! Assim quererei —”.
— a
isso denominei redenção para eles, apenas isso lhes ensinei a
denominar redenção. — —
Agora
espero minha redenção —, que eu vá pela última vez até
eles.
Pois
ainda uma vez quero ir até os homens: entre eles quero
declinar: morrendo quero lhes dar minha maior dádiva!
Do
sol aprendi isso, quando ele se põe, o riquíssimo: derrama ouro
sobre o mar, de sua inesgotável riqueza, —
— de
modo que até o mais pobre dos pescadores rema com remo de ouro!
Pois isso vi certa vez, e minhas lágrimas não cessavam de correr
enquanto meus olhos contemplavam. — —
Tal
como o sol quer Zaratustra declinar: agora ele se acha aqui sentado,
esperando, com velhas tábuas partidas ao seu redor e também novas
tábuas — inscritas pela metade.
Friedrich Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra