A primeira casa


Do armazém, seguimos em direção ao cais, de volta pelo caminho que eu já tinha percorrido, e mais uma vez pude reparar nas mulheres que tanto me fascinaram, prometendo a mim mesma que um dia usaria aquelas roupas e seria muito mais feliz do que jamais tinha sido, pois foi esta a imagem que elas me passaram, a de felicidade, apesar de tudo. Chegando ao ancoradouro, um barco com mais três pretos estava à nossa espera, e um para-sol foi aberto sobre o nosso dono assim que ele embarcou. Depois que todos estávamos sentados, quatro pretos tomaram seus lugares nas laterais do barco e remaram de modo vigoroso e cadenciado, como se mentalmente cantassem uma música que impunha o ritmo da travessia. Fiquei alegre ao pensar que estava voltando para a Ilha dos Frades, mas logo tomamos outra direção, tendo à nossa frente a maior das ilhas da Baía de Todos os Santos, que depois eu soube se chamar Itaparica.
A ilha crescia e ficava mais bonita à medida que nos aproximávamos, e eu já via suas imensas praias de areia muito branca e palmeiras que pareciam as de África, e, mais para dentro, morros cobertos por florestas que eu também imaginava como as do meu reino. O barco contornou algumas pedras ao longo da costa e atracou em uma das pontas da ilha. Desembarcamos e seguimos primeiro pela praia, para depois entrarmos por uma trilha em meio às árvores. Nós, os pretos, íamos a pé, mas assim que pisamos a areia, o nosso dono já tinha esperando por ele um meio de transporte que achei muito engraçado, e depois vi que era comum entre as pessoas ricas da terra. Uma espécie de cadeira com encosto alto e sem os pés, pois, no lugar deles, logo abaixo do assento, estavam fixadas duas grossas ripas de madeira, que se estendiam paralelas para a frente e para trás de quem estava sentado. Ajoelhados, dois pretos apoiavam as ripas sobre os ombros, uma de cada lado, que eram cuidadosamente erguidas depois que o ocupante se sentava. Os pretos pareciam acostumados àquele trabalho, e era importante que tivessem mais ou menos a mesma altura, para que a cadeira não pendesse para um dos lados. Mesmo assim, não devia ser nada confortável para o ocupante, que corria o risco de perder o equilíbrio a qualquer solavanco ou em um terreno inclinado. Mas o nosso dono, o senhor José Carlos de Almeida Carvalho Gama, de quem herdamos o apelido, preferia o desconforto à caminhada, sempre.
A casa ficava a poucos metros da praia e era das maiores que eu já tinha visto, e a mais bonita. Entramos pela lateral do terreno, grande, cercado de árvores comuns, de árvores com frutas e de muitas plantas floridas. Na frente havia palmeiras e um jardim muito bem cuidado, até o limite com a areia da praia. Nos fundos, em meio a árvores que mais adiante se fechavam em densa mata, havia dois enormes barracões rústicos e pintados de branco. A casa era azul-clara, com as molduras das janelas e das portas pintadas de azul-escuro, a mesma cor das vigas de madeira que sustentavam o telhado da varanda que abraçava toda a construção. Na sombra desta varanda havia algumas cadeiras e redes, plantas em vasos e algumas pretas cantando e costurando, ao lado de três pretos já idosos, que trançavam palha para fazer balaios ou esteiras. O sinhô José Carlos, era assim que ele gostava de ser chamado, mandou que um dos empregados levasse a cozinheira para a senzala pequena e o pescador, para a senzala grande. Para mim, ele disse qualquer coisa que não entendi por ser em português, mas achei que era para segui-lo, o que fiz até a porta da cozinha. Ele entrou e fez um gesto para que eu ficasse esperando do lado de fora da porta, onde apareceram duas mulheres, olharam para mim e tornaram a entrar. Surgiu então uma terceira, mais velha e gorda, vestindo saia e blusa sujas de carvão, que me ofereceu um bom pedaço de bolo e um copo de leite. Ela começou a conversar comigo em português e eu respondia em iorubá, não me lembro exatamente o quê, mas acho que devo ter entendido. Não era difícil entender o português, eu apenas ainda não conseguia falar. Enquanto comia, com gosto e fome, ela me olhava com pena e carinho, e quando devolvi o copo vazio, falou em iorubá que eu tinha que aprender logo o português, pois o sinhô José Carlos não permitia que se falassem línguas de pretos em suas terras, e que qualquer coisa de que eu precisasse era para falar com ela, que se chamava Esméria. E que também era para eu ficar com ela na cozinha até o anoitecer, quando me levaria para a senzala pequena, onde dormiam os escravos que trabalhavam na casa.
A cozinha era maior do que toda a minha casa em Savalu e quase do tamanho da casa da Titilayo, em Uidá. Em um canto havia um enorme fogão a lenha onde a Esméria trabalhava, vermelho, da cor do cimento que cobria o chão. Em uma das paredes havia um armário com várias panelas e uma pia enorme, onde uma outra preta, mais nova que a Esméria e chamada Firmina, lavava uma pilha de coisas de cozinha e de mesa, que eu passava a conhecer a partir daquele momento. Havia também uma mesa sobre a qual, do teto, pendiam molhos de alho, pedaços de toucinho e outras comidas que eu também não conhecia. Ao lado da porta de saída, perto da qual eu tinha me sentado para observar tudo com muita curiosidade, ficava uma outra porta por onde a Esméria entrava e saía diversas vezes, com os ingredientes que usava para fazer a comida. Ao sair, sempre trancava a porta com uma chave que carregava amarrada à cintura. Uma terceira porta, bem em frente de onde eu estava sentada, levava ao interior da casa, velado por uma cortina.
Quando o jantar ficou pronto, um preto muito bem-vestido apareceu para pegar as travessas, muitas, onde a Esméria ia ajeitando a comida de várias qualidades, cada uma disposta em sua própria vasilha. Fiquei tentando imaginar, pela quantidade e variedade, quantas pessoas moravam naquela casa. O preto se chamava Sebastião e era quase branco no seu jeito de andar e de falar, tendo até os pés calçados, como também era o caso da Antônia, que apareceu para ajudá-lo, vestida com roupas diferentes das que a Esméria e a Firmina usavam. Depois do jantar, foram os dois também que carregaram tudo de volta para a cozinha, travessas, pratos, copos, talheres e a comida quase intocada. A Esméria me deu um pouco do que tinha sobrado e disse para eu comer rápido e não contar a ninguém, enquanto ela e a Firmina faziam o mesmo. Depois que as duas terminaram de lavar, secar e guardar a louça, com a Antônia e o Sebastião sentados à mesa e conversando em voz baixa, a Esméria me levou para a senzala pequena, onde também dormiam todos que eu tinha conhecido.
A Esméria riu quando perguntei sobre aquela história de virar carneiro e disse que também já tinha pensado assim. Em iorubá, ela me explicou o que era um escravo, alguém por quem o dono tinha pagado a quantia que achava justa e que lhe dava o direito de ter o escravo trabalhando pelo resto da vida, ou até que ele pudesse pagar pela liberdade que tinha antes de ser comprado. Eu não sei se entendi direito naquele dia, mas a explicação conformada me pareceu justa, e acho que até fiquei feliz por saber que os brancos não nos compravam porque apreciavam a nossa carne. Gostei também quando ela disse que eu seria escrava de companhia da sinhazinha Maria Clara, a filha do sinhô José Carlos. Ele era casado com a sinhá Ana Felipa, mas a mãe da sinhazinha Maria Clara era a sinhá Angélica, que tinha morrido no parto. O sinhô José Carlos então se casou de novo e não teve mais filhos, o que fazia da sinhazinha uma criança bastante solitária naquele mundo de adultos. Antes de mim, ela tinha tido uma outra companhia, uma moça mais velha, que foi vendida pela sinhá Ana Felipa quando começou a se dar ao desfrute dentro da casa. A Esméria recomendou que eu me comportasse bem, nunca dizendo nada que não fosse perguntado, nunca fazendo o que não fosse pedido e nunca desobedecendo ou questionando, mesmo quando achasse que uma ordem estava errada ou era injusta. Era assim que as coisas aconteciam entre pretos e brancos, e era assim que deveriam continuar, pois eu nunca poderia mudá-las e tinha até muita sorte de estar entre os escravos da casa, mais bem tratados do que os que viviam na senzala grande e trabalhavam na lavoura, no engenho ou na pesca da baleia. A Esméria disse ainda que a sinhazinha era uma menina muito boa, pois tinha herdado a bondade da mãe, de quem todos sentiam falta.
A senzala pequena era um cômodo não muito grande, simples, com as paredes pintadas de branco do lado de fora e no tijolo cor de barro do lado de dentro. O chão era de barro alisado, mas muito limpo, sobre o qual estavam estendidas algumas esteiras. A Esméria colocou uma para mim ao lado da dela e mostrou onde dormiam a Firmina, o Sebastião e a Antônia, que eu já conhecia, e onde ia dormir a Maria das Graças, que tinha sido comprada junto comigo para ajudá-la na cozinha. As outras esteiras pertenciam ao Tico e ao Hilário, dois moleques que eram uma espécie de faz-tudo na casa-grande e que estavam sempre fugindo do trabalho, escondidos pelo mato. Havia ainda a esteira da Josefa, que estava na casa preparando o banho e os quartos para os nossos donos dormirem, a do Eufrásio, o capataz, que estava vigiando os pretos da senzala grande e esperando a hora de trancá-los dentro das baias, e a da Rita, a arrumadeira, que normalmente dormia na casa-grande, na cozinha, para o caso de o sinhô, a sinhá ou a sinhazinha precisarem de alguma coisa durante a noite. Eu estava cansada por causa do dia agitado e de tantas novidades, mas feliz por estar ali e pelo trabalho que ia fazer, e principalmente por causa da Esméria, de quem gostei bastante. Queria ter ficado mais tempo pensando na minha avó ou mesmo na Titilayo, que devia estar preocupada por falta de notícias nossas, mas peguei no sono tão logo larguei o corpo na esteira.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

“nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares”

Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... Ai que enjoo me dá o açúcar do desejo.

Ana Cristina Cesar, em Cenas de abril

Um coice de cavalo na cabeça


A casa dos peões era uma construção comprida e retangular, um tipo de barracão. Lá dentro, as paredes eram caiadas e o chão não tinha pintura. Em três paredes havia janelas quadradas pequenas e, na quarta, uma porta bem sólida com uma tranca de madeira. Encostados na parede havia oito catres, cinco deles arrumados com cobertores e os outros três exibindo o forro de aniagem do colchão. Sobre cada catre havia um caixote de frutas pregado com a abertura para a frente, de modo que formava duas prateleiras para os pertences do ocupante do catre. E as prateleiras estavam cheias de pequenos objetos, sabonete e talco, lâminas de barbear e aquelas revistas de bangue-bangue que os homens das fazendas adoram ler e depois caçoar delas, mas em que acreditam secretamente. E havia remédios nas prateleiras, e pequenos frascos, e pentes; e penduradas nos pregos da lateral dos caixotes, algumas gravatas. Perto de uma parede havia um fogão de ferro fundido preto, com uma chaminé que atravessava o teto. No meio do barracão ficava uma mesa quadrada grande, coberta de cartas de baralho, e em volta dela havia caixotes reforçados para os jogadores se sentarem.
Por volta das dez da manhã, o sol jogava ali uma coluna clara, cheia de poeira, através de uma das janelas laterais, e moscas entravam e saíam do feixe de luz como estrelas cadentes.
A tranca de madeira se ergueu. A porta se abriu e um homem alto, velho, de ombros curvados entrou. Usava calça jeans e carregava uma vassoura grande na mão esquerda. Atrás dele vinha George e, atrás deste, Lennie.
O patrão tava esperando oceis ontem à noite – o velho disse. – Ficô loco da vida quando viu qu’oceis num tavam aqui pra trabaiá hoje de manhã. – Apontou com o braço direito, e da manga saiu um pulso que mais parecia um pau arredondado, mas não tinha mão. – Oceis pode ficá co’aquelas duas cama ali – disse, indicando os dois catres mais próximos do fogão.
George deu um passo à frente e jogou os cobertores em cima do saco de aniagem cheio de palha que era o colchão. Olhou dentro do caixote-prateleira e pegou uma latinha amarela dali de dentro.
Diz uma coisa. Que diabo é isso aqui?
Sei lá – respondeu o velho.
Aqui diz assim: “Acaba com piolho, barata e outras pragas”. Que porcaria de cama que ocê tá dando pra gente? A gente num qué nenhum ninho de rato.
O velho ajudante mudou a vassoura de posição e ficou segurando o cabo entre o cotovelo e a lateral do corpo, ao mesmo tempo que esticou a mão para pegar a lata. Estudou o rótulo com cuidado.
Vô te dizê uma coisa… – terminou por falar. – O último sujeito que ficô nessa cama aí era ferrero… um sujeito muito agradável, e o sujeito mais limpo qu’ocê já viu na vida. Tinha mania de lavá a mão até depois de comer.
Então, como foi que ele pegô piolho? – Dentro de George ia se formando uma raiva vagarosa. Lennie colocou sua trouxa no catre ao lado e se sentou. Ficou observando George com a boca aberta.
Vô te dizê uma coisa – respondeu o velho ajudante. – Esse ferrero aí… o nome dele era Whitey… era o tipo de sujeito que espalhava uns negócio desses aí, memo quando num tinha bicho nenhum… só pra tê certeza, sabe como é? Vô te contá o que ele costumava fazê… Na hora de comê, ele descascava as batata cozida e tirava cada manchinha, de qualquer tipo, antes de comê. E se tivesse uma mancha vermelha em um ovo, ele tirava também. Acabô indo imbora por causa da comida. Ele era esse tipo de sujeito… limpo. Tinha mania de se arrumá todo domingo, memo quando num ia a lugá nenhum, ele até colocava gravata, e daí ficava na casa dos pião.
Num sei não – George disse, cético. – Por que memo foi qu’ocê disse qu’ele foi imbora?
O velho colocou a lata no bolso e afagou o bigode branco espetado com os nós dos dedos.– Sei lá… ele… só pegô e foi imbora, do jeito que uns home vai. Disse que foi por causo da comida. Mas eu acho que ele só queria sigui em frente. Num falô que era por causo de mais nada fora a cumida. Só veio uma noite e disse assim: “Me paga meu serviço”, do jeito que uns home faiz.
George levantou o forro do colchão e olhou por baixo. Debruçou-se e inspecionou o enchimento com muita atenção. Lennie se levantou imediatamente e fez a mesma coisa com a cama dele. Afinal, George pareceu satisfeito. Desenrolou sua trouxa e colocou seus pertences na prateleira, a lâmina de barbear e um sabonete, o pente e um frasco de pílulas, o unguento e a munhequeira de couro. Então arrumou bem a cama com os cobertores. O velho disse:
Acho qu’o patrão vai passá por aqui daqui a uns minuto. Ele ficô nervoso de verdade de vê qu’oceis num tava aqui hoje de manhã. Chegô bem quando a gente tava tomando o café da manhã e disse assim, “Onde diabo tão os trabaiadô novo?”. E aproveitô pra discontá no estribero também.
George arrumou um pedaço de tecido enrugado da cama com um tapinha e se sentou.
Discontô no estribero? – perguntou.
Claro. Sabe como é, o estribero é preto.
Preto, é?
É. E também é um bom camarada. Ficô com as costa alejada no lugá que um cavalo deu um coice nele. O patrão descarrega tudo nele quando tá bravo. Mas o estribero num tá nem aí. Lê muito. Tem uns livro bem bom no quarto dele.
Que tipo de sujeito é esse patrão? – George perguntou.
Bom, ele é um sujeito bem justo. Às vezes fica bem loco da vida, mas é um home bom. Vou te dizê uma coisa… sabe o que ele feiz no Natal? Trouxe um garrafão de uísque bem aqui e disse: “Pode bebê, pessoal. O Natal só vem uma vez cada ano.”
Que diabo, num acredito que ele feiz isso! Um garrafão intero?
Isso memo. Jesus, como a gente se divertiu. Deixaram até o preto entrá naquela noite. Um carrocero chamado Smitty implicou co’o preto. Tava bem alto, também. Os otro num deixaro ele usá os pé, então o preto é que deu um jeito nele. Se tivesse usado os pé, o Smitty disse que ia tê matado o preto. Os otro disse que o preto tinha as costa alejada, e por isso o Smitty não ia podê usá os pé. – Fez uma pausa, saboreando a memória. – Depois todo mundo foi pra Soledad e armô a maió confusão. Eu num fui. Num tenho mais ânimo pra nada disso.
Lennie estava terminando de arrumar a cama. A tranca de madeira se ergueu de novo e a porta se abriu. Um homenzinho corpulento estava parado no batente da porta aberta. Usava calça jeans, camisa de flanela, colete preto desabotoado e um paletó preto. Os polegares estavam enfiados no cinto, cada um de um lado da fivela quadrada de aço. Na cabeça, trazia um chapéu de caubói marrom surrado, e usava botas de salto com espora, para provar que não era trabalhador braçal.
O velho ajudante olhou para ele rapidamente, e então se arrastou até a porta, afagando o bigode com os nós dos dedos enquanto falava.
Esses sujeito chegaro agorinha memo – disse, e passou se arrastando pelo patrão e saiu pela porta.
O patrão entrou no barracão com os passinhos curtos e rápidos de um homem de pernas roliças.
Escrevi pro Murray e pro Ready que eu queria dois homens pra hoje de manhã. Oceis têm aí os cupom de trabaio?
George enfiou a mão no bolso, tirou os cupons e entregou para o patrão.
Não foi culpa do Murray nem do Ready. Diz bem aqui que oceis devia tê chegado pra começá a trabaiá hoje de manhã.
George olhou para os pés.
Mas o motorista do ônibus num foi honesto co’a gente – respondeu. – A gente teve que andá quinze quilômetro. Ele disse que já tava perto, mais num tava. E a gente num conseguiu carona hoje de manhã.
O patrão apertou os olhos.
Bom, eu tive que mandá a turma da colheita com dois carregadô a menos. Agora num adianta mais nada sair antes do almoço. – Tirou a caderneta de ponto do bolso e abriu no lugar onde um lápis estava enfiado, no meio das páginas.
George lançou um olhar sugestivo para Lennie, e Lennie assentiu com a cabeça, para mostrar que tinha entendido. O patrão lambeu o lápis.
Qual é o seu nome?
George Milton.
E o seu?
George respondeu:
Ele chama Lennie Small.
Os nomes foram anotados na caderneta.
Vamo vê, hoje é dia 20, meio-dia do dia 20. – Fechou o caderno. – Por onde é qu’oceis já trabaiaram?
Lá por Weed – George respondeu.
Ocê também? – perguntou para Lennie.
É, ele também – respondeu George.
O patrão apontou um dedo irrequieto para Lennie:
Ele é do tipo que num fala muito, né memo?
É isso aí, ele num fala memo. Mas trabaia que é uma beleza. Forte que nem um touro.
Lennie sorriu para si mesmo:
Forte que nem um touro – repetiu.
George olhou torto para ele, e Lennie deixou a cabeça pender de vergonha por ter esquecido.
O patrão disse de repente:
Olha aqui, Small, o que é qu’ocê sabe fazê?
Em pânico, Lennie olhou para George em busca de ajuda.
Ele é capaiz de fazê qualqué coisa que o sinhô mandá – George respondeu. – É um bom carrocero. Sabe carregá saco de cereal e sabe dirigi arado. Ele faiz qualqué coisa. É só pedi.
O patrão se virou para George:
Então, por que é qu’ocê num deixa ele respondê? O que é qu’ocê tá me aprontando?
George explicou, com a voz bem alta:
Ah! Num tô dizendo qu’ele é isperto. Porque num é não. Mais digo que é trabaiadô de primera. Ele consegue carregá um fardo de duzentos quilo.
O patrão colocou a caderneta no bolso em um gesto rebuscado. Enfiou os polegares no cinto e apertou um dos olhos até quase fechar.
Diz uma coisa… o que é qu’ocê tá vendendo?
Hã?
Eu perguntei qual é o investimento qu’ocê feiz nesse sujeito aí. Ocê tira o pagamento dele?
Num tiro não, claro que num tiro. Por que é que o senhor acha que eu tô vendendo ele?
Bom, nunca vi um sujeito tê tanto trabaio por causa de um otro fulano. Só queria sabê qual é o seu interesse.
George respondeu:
Ele é meu… primo. Eu prometi pruma senhora que ia tomá conta dele. Ele levô um coice de cavalo na cabeça quando era criança. Ele é um homem bom. Só num é isperto. Mas consegue fazê qualqué coisa que o sinhô pede.
O patrão fez menção de ir embora:
Bom, Deus bem sabe que ele num precisa de cérebro nenhum pra carregá saco de cevada. Mais ocê que num vem me tentá aprontá alguma, Milton. Tô de olho n’ocê. Por que foi qu’oceis foro imbora de Weed?
O trabaio terminô – George respondeu prontamente.
Qual era o tipo de trabaio?
A gente… a gente tava cavando uma fossa.
Tudo bem. Mas num vai tentá aprontá nada, porque ocê num vai consegui se safá de nada. Oceis podem sair com a turma da colheita depois do almoço. Eles tão recolhendo a cevada da debulhadora. Oceis pode ficá na turma do Slim.
Slim?
Isso, um sujeito alto e magro. Oceis vão vê ele no almoço. – Deu as costas abruptamente e foi até a porta, mas antes de sair se virou e observou os dois homens durante um longo momento.
Quando o som dos passos dele sumiu, George se virou para Lennie.
A gente tinha combinado qu’ocê num ia soltá nenhuma palavra. Que ia ficá com esse seu bocão bem fechado e ia dexá eu falá tudo. Caramba, a gente quase perdeu o serviço.
Lennie ficou olhando para as mãos, desconsolado.
Eu isqueci, George.
É, ocê isqueceu. Ocê sempre isquece, e eu preciso ficá livrando a tua cara. – Sentou-se pesadamente sobre o catre. – Agora ele vai ficá de olho na gente. Agora a gente precisa tomá cuidado pra num saí da linha. Ocê fica co’o seu bocão bem fechado, faiz o favor.
Caiu em um silêncio moroso.
George.
O que que foi agora?
Eu num levei coice de cavalo nenhum na cabeça, né?

John Steinbeck, em Ratos e Homens

Nem tudo que reluz é ouro

Então não apanhei no chão o que reluzia. Era ouro, meu Deus. Era ouro, talvez.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

De velhas e novas tábuas | 3.



Foi também lá que recolhi do caminho a palavra “super-homem”, e que o homem é algo que tem de ser superado,
que o homem é uma ponte e não um fim: declarando-se bem-aventurado por seu meio-dia e entardecer, como o caminho para novas auroras:
a palavra de Zaratustra do grande meio-dia, e o que mais suspendi sobre os homens, como segundas auroras purpúreas.
Em verdade, também novas estrelas os fiz ver, junto com novas noites; e sobre as nuvens, o dia e a noite estendi o riso, como uma tenda multicor.
Ensinei-lhes todo o meu engenho e esforço: compor e transformar em um o que no homem é pedaço, enigma e apavorante acaso, —
como poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso ensinei-lhes a criar com o futuro, a redimir criadoramente tudo aquilo que — foi.
Redimir o passado no homem e recriar todo “Foi assim”, até que a vontade diga: “Mas assim eu quis! Assim quererei —”.
a isso denominei redenção para eles, apenas isso lhes ensinei a denominar redenção. — —
Agora espero minha redenção —, que eu vá pela última vez até eles.
Pois ainda uma vez quero ir até os homens: entre eles quero declinar: morrendo quero lhes dar minha maior dádiva!
Do sol aprendi isso, quando ele se põe, o riquíssimo: derrama ouro sobre o mar, de sua inesgotável riqueza, —
de modo que até o mais pobre dos pescadores rema com remo de ouro! Pois isso vi certa vez, e minhas lágrimas não cessavam de correr enquanto meus olhos contemplavam. — —
Tal como o sol quer Zaratustra declinar: agora ele se acha aqui sentado, esperando, com velhas tábuas partidas ao seu redor e também novas tábuas — inscritas pela metade.

Friedrich Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra