parte
1
desde
que me conheço por lúcia, tenho o hábito quase obsessivo de
coletar coisas. cheguei a ponto de colecionar, inclusive, todos os
nomes lúcia que lia por aí em jornais, revistas, livros e também
em adesivos colados em telefones públicos da cidade. lotei uma caixa
de sapato com diferentes lúcias: azuis, datilografadas, helvéticas,
pequenas. quando acho uma pedrinha de formato surpreendente, quase
sempre, guardo no bolso. se encontro um papel de bala colorido no
chão, desses de apenas duas cores e com asinhas de amarrar torcendo,
pego pra mim. imagino que muita gente deva colocar em questão a
minha sanidade – e minha higiene, suponho –, mas posso dizer que
se trata de algo que foge em absoluto do meu controle. é algo maior
do que eu e contra o qual não posso lutar.
se
encontro uma ponta de lápis roxa perdida no meio do tapete, recolho
porque penso uma ponta de lápis roxo no meio do tapete. como é
possível abandonar uma ponta de lápis roxo no meio do tapete? não,
não é possível. pego e guardo num minipotinho de vidro ou num
dedal. já arquivei bituca marcada com batom carmim, nota fiscal da
farmácia referente à compra de um saco de algodão e uma solução
oftalmológica a 0,5%, já guardei lasquinha de azulejo hidráulico
amarelo cádmio. já embrulhei casca de tangerina recém-descascada.
rolha de vinho branco, saquinho de supermercado, aquele plastiquinho
transparente em forma de martelo que prende etiqueta em roupa.
costumo
recolher as coisas pra depois, quando estou completamente só do
mundo, poder admirar tudo sem que me julguem estranha demais. eu e as
variações de tampinhas de caneta bic (mordiscadas ou não). eu e as
latinhas de metal de bala de hortelã. guardo. guardo tudo mesmo.
tudo numa estante comprida e cheia de compartimentos e divisórias
que mandei fazer especialmente para esse fim, o de catalogar. as que
não se enquadram na estante logo acham lugar nas paredes do corredor
ou próximas à janela. organizo as coisas por critérios que nascem
a partir da proximidade das coisas às coisas. por exemplo: um
abridor de latas pode muito bem estar próximo a um cavalinho de
porcelana lilás pelo critério elegância, porém ele também pode
estar próximo a um livro de joão cabral de melo neto pelo grau de
cortância. isso significa que esses objetos estão em constante
movimento, pois todo elemento novo chegante modifica intimamente os
demais elementos anteriores a ele de modo que sou obrigada a,
entropicamente, organizá-los e reorganizá-los indefinidamente para
tentar manter o equilíbrio do conjunto na casa.
outra
regra é que não faço distinção dos objetos por hierarquia para
escolhê-los. não uso classificações como caros ou vagabundos.
eternos ou perecíveis. apenas os escolho pela beleza que enxergo no
instante primeiro em que me deparo com eles. se me sinto expandir em
uma felicidade estranha e sem propósito com esse encontro, com esse
perfume da casca de tangerina solta sobre o concreto quente da
calçada, aí então o que faço é aceitar a beleza efêmera
deflagrada pela coisa e parar para admirá-la profundamente.
Parte
2
o
fato é que duns tempos pra cá, também passei a colecionar palavras
[além das lúcias da caixinha de papelão]. e fico atenta a qualquer
palavra desconhecida que se apareça pra mim. se me surge uma nova
cujo som, a forma ou o significado são desconhecidos, fico tentando
presumir seus significados sem recorrer ao dicionário, mas busco
relacioná-las com os objetos de minha coleção e o espaço da casa.
as últimas dez coletas: gálbano, lúteo, roel, encóspias, imbé,
hioscíamo, áleo, púmice, serrim, sial: cada palavra recebe um
tratamento próprio de acordo com sua natureza original, sua
personalidade.
a
palavra púmice, por exemplo, é palavra destinada a grandes
altitudes, feita para habitats gelados e solitaríssimos. aguenta
firme as intempéries mais rigorosas da natureza e por isso púmice
foi toda esculpida em ossos de búfalo. guardo púmice no freezer
vazio.
áleo
já é palavra quente que reluz ao sol e à luz do abajur no fim do
dia. gravei áleo do lado de fora dum arco dourado [mais ou menos
como uma aliança ao contrário, só que do tamanho dum prato de
sobremesa] e pendurei-a num cordão transparente que desce do lustre
em direção ao ar. áleo requer suspensão e sutis movimentos
circulares. precisa girar para exercer sua potência áurea. eu, sem
escolhas, respeito sua natureza quase que real de existir.
hioscíamo
eu armazenei num vidrinho de perfume cor de âmbar na forma de
ameixa. o pequeno vidrinho está dentro duma caixa de madeira forrada
com veludo púrpura e fecho de metal dourado. hioscíamo é coisa
rara, licor secreto e elixir exato para apenas uma ou duas vezes na
vida, no máximo. hioscíamo é uma espécie de absinto doce para o
corpo e o espírito – absorve tanto pra dentro quanto pra fora.
está fundido em prata, mergulhado em silêncio profundo no
potinho-ameixa.
para
a palavra lúteo eu
reservei o espaço do espelho do banheiro. escrevi lúteo à tinta
[negra, encerada e viscosa] na altura do espelho que atinge o meu
próprio peito, meu coração. lúteo, repito diariamente.
lúteo-dureza. lúteo-batimento cardíaco. lúteo faz lembrar das
coisas mortas, mas que ainda pulsam como não estivessem.
para
contrapor lúteo há gálbano
no canto esquerdo da sala, ao lado do sofá de couro. gálbano é
comprido e elegante. e sóbrio feito uma escultura do giacometti. a
palavra, entalhada em mogno nobre na porta retangular de um
instrumento musical oriental chamado lohah, funciona como uma caixa
acústica. utilizo gálbano para meditar sobre questões do
tempo-espaço, do afastamento das galáxias ou para me concentrar em
fazer os cálculos de contas de telefone, luz, gás, etc.
para
a palavra imbé, mãe
maior, feminino corpo, reservei uma bacia de metal prateada com água
mineral pura. imbé flutua na bacia como fosse uma flor de lótus
jovem ou uma ninfeia. feita de contas azuis e amarelas de murano, a
palavra imbé exala delicadeza e força. cogitei, inclusive, chamá-la
de imbé oxum.
roel
é palavra que está completamente enferrujada sobre o piano de
cauda. oxidou após receber, pouco a pouco, as lágrimas expelidas
diante de coisas ou muito violentas ou muito belas – como sinfonias
ou guerras civis ou ambas juntas. roel está situada dentro duma
espécie de cinzeiro de lágrimas fundo e gasto e funciona como um
cemitério de palavras. com o tempo provocou um pequeno afundamento
sobre a superfície do instrumento.
sendo
o termo encóspias um
termo plural e por perceber nele um potencial para fragmentação e
espalhamento, decidi que faria diferente com este caso. desmembrei
todas as suas letras e espalhei-as pelos cômodos como se espalhasse
incenso. quartos, sala, cozinha, varanda, lavabo, área de serviço
ficaram empesteados da palavra. achei que pulverizada, assim, ela
ficou mais suave e reverberou de modo menos previsível.
as
últimas são sial e
serrim, que são
palavras-irmãs feito dia/noite ou firmamento/cordilheira. a
primeira, aérea, vocálica, resplandece por si só dado o nascer do
dia e portanto está locada no parapeito da varanda, desenhada à mão
como se tivesse a capacidade de abrir o dia, de rasgar o que é
imenso e insustentável. serrim, por sua vez, está logo abaixo,
esteando o peso do ar trazido por sial. serrim tem essências de
jardim horizontal e onduloso. distribuí serrim ao longo de uma
jardineira com terra fofa, escrevendo suas letras com micropeônias
rosadas. juntas, elas formam um perfeito rebatimento de um possível
poema sobre o impermanente x permanente.
Ana Estaregui, em Coletânea Prêmio Off Flip de Literatura [2016]
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