Dans
mon pays de fiel et d’or
j’en
suis la loi.
E.
Verhaeren
Leitor:
Está fundado o Desvairismo.
•
Este
prefácio, apesar de interessante, inútil.
•
Alguns
dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis
ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões,
confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido
explicar o que, antes de ler, já não aceitou.
•
Quando
sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu
inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como
para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio
interessantíssimo.
•
Aliás
muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde
principia a seriedade. Nem eu sei.
•
E
desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos
atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só
vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria
hipócrita se pretendesse representar orientação moderna que ainda
não compreende bem.
•
Livro
evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o
Impressionismo. Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova,
filiando-se, para além dos tempos históricos, nos volumes
elementares: cubo, esfera, etc. Os pintores desdenham Delacroix como
Whistler, para se apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres,
do Greco. Na escultura Rodin é ruim, os imaginários africanos são
bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos diante da polifonia
catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia...
“tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e
efêmeros, para apanhar nele a humanidade”... Sou passadista,
confesso.
•
“Este
Alcorão nada mais é que uma embrulhada de sonhos confusos e
incoerentes. Não é inspiração provinda de Deus, mas criada pelo
autor. Maomé não é profeta, é um homem que faz versos. Que se
apresente com algum sinal revelador do seu destino, como os antigos
profetas”. Talvez digam de mim o que disseram do criador de Alá.
Diferença cabal entre nós dois: Maomé apresentava-se como profeta;
julguei mais conveniente apresentar-me como louco.
•
Você
já leu São João Evangelista? Walt Whitman? Mallarmé? Verhaeren?
•
Perto
de dez anos metrifiquei, rimei. Exemplo?
Artista
O
meu desejo é ser pintor – Lionardo,
cujo
ideal em piedades se acrisola;
fazendo
abrir-se ao mundo a ampla corola
do
sonho ilustre que em meu peito guardo...
Meu
anseio é, trazendo ao fundo pardo
da
vida, a cor da veneziana escola,
dar
tons de rosa e de ouro, por esmola,
a
quanto houver de penedia ou cardo.
Quando
encontrar o manancial das tintas
e
os pincéis exaltados com que pintas,
Veronese!
teus quadros e teus frisos,
irei
morar onde as Desgraças moram;
e
viverei de colorir sorrisos
nos
lábios dos que imprecam ou que choram!
•
Os
srs. Laurindo de Brito, Martins Fontes, Paulo Setúbal, embora não
tenham evidentemente a envergadura de Vicente de Carvalho ou de
Francisca Júlia, publicam seus versos. E fazem muito bem. Podia,
como eles, publicar meus versos metrificados.
•
Não
sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de
contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista,
errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que
saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era
vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me
pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que se discutiriam minhas
ideias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já
agora não me calo. Tanto ridicularizariam meu silêncio como esta
grita. Andarei a vida de braços no ar, como o Indiferente de
Watteau.
•
“Alguns
leitores ao lerem estas frases (poesia citada) não compreenderam
logo. Creio mesmo que é impossível compreender inteiramente à
primeira leitura pensamentos assim esquematizados sem uma certa
prática. Nem é nisso que um poeta pode queixar-se dos seus
leitores. No que estes se tornam condenáveis é em não pensar que
um autor que assina não escreve asnidades pelo simples prazer de
experimentar tinta; e que, sob essa extravagância aparente havia um
sentido porventura interessantíssimo, que havia qualquer coisa por
compreender”. João Epstein.
•
Há
neste mundo um senhor chamado Zdislas Milner. Entretanto escreveu
isto: “O fato duma obra se afastar de preceitos e regras
aprendidas, não dá a medida do seu valor”. Perdoe-me dar algum
valor a meu livro. Não há pai que, sendo pai, abandone o filho
corcunda que se afoga, para salvar o lindo herdeiro do vizinho. A
ama-de-leite do conto foi uma grandíssima cabotina desnaturada.
•
Todo
escritor acredita na valia do que escreve. Se mostra é por vaidade.
Se não mostra é por vaidade também.
•
Não
fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres.
•
O
ridículo é muitas vezes subjetivo. Independe do maior ou menor alvo
de quem o sofre. Criamo-lo para vestir com ele quem fere nosso
orgulho, ignorância, esterilidade.
•
Um
pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente,
acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são
versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com
acentuação determinada. Entroncamento é sueto para os condenados
da prisão alexandrina. Há porém raro exemplo dele neste livro. Uso
de cachimbo...
•
A
inspiração é fugaz, violenta. Qualquer empecilho a perturba e
mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não
consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para
avisá-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece,
caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições
fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis
ou inexpressivos.
•
Que
Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero:
símbolo sempre novo da vida como do sonho. Por ele vida e sonho se
irmanam. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de
expressão.
•
“O
vento senta no ombro das tuas velas!” Shakespeare. Homero já
escrevera que a terra mugia debaixo dos pés de homens e cavalos. Mas
você deve saber que há milhões de exageros na obra dos mestres.
•
Taine
disse que o ideal dum artista consiste em “apresentar, mais que os
próprios objetos, completa e claramente qualquer característica
essencial e saliente deles, por meio de alterações sistemáticas
das relações naturais entre as suas partes, de modo a tornar essa
característica mais visível e dominadora”. O sr. Luís Carlos,
porém, reconheço que tem o direito de citar o mesmo em defesa das
suas “Colunas”.
•
Já
raciocinou sobre o chamado “belo horrível”? É pena. O belo
horrível é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de
certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os
tempos, pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o
artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de
belo o que é feio, horrível, só porque está expressado com
grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito da
beleza. Mas feio = pecado... Atrai. Anita Malfatti falava-me outro
dia no encanto sempre novo do feio. Ora Anita Malfatti ainda não leu
Emílio Bayard: “O fim lógico dum quadro é ser agradável de ver.
Todavia comprazem-se os artistas em exprimir o singular encanto da
feiura. O artista sublima tudo”.
•
Belo
da arte: arbitrário, convencional, transitório – questão de
moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural – tem a
eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir
natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora
consciente (Rafael das Madonas, Rodin
do Balzac, Beethoven
da Pastoral, Machado de Assis do Brás Cubas), ora
inconscientemente (a grande maioria) foram deformadores da natureza.
Donde infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto
mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram
o que quiserem. Pouco me importa.
•
Nossos
sentidos são frágeis. A percepção das coisas exteriores é fraca,
prejudicada por mil véus, provenientes das nossas taras físicas e
morais: doenças, preconceitos, indisposições, antipatias,
ignorâncias, hereditariedade, circunstâncias de tempo, de lugar,
etc... Só idealmente podemos conceber os objetos como os atos na sua
inteireza bela ou feia. A arte que, mesmo tirando os seus temas do
mundo objetivo, desenvolve-se em comparações afastadas, exageradas,
sem exatidão aparente, ou indica os objetos, como um universal, sem
delimitação qualificativa nenhuma, tem o poder de nos conduzir a
essa idealização livre, musical. Esta idealização livre,
subjetiva, permite criar todo um ambiente de realidades ideais onde
sentimentos, seres e coisas, belezas e defeitos se apresentam na sua
plenitude heroica, que ultrapassa a defeituosa percepção dos
sentidos. Não sei que futurismo pode existir em quem quase perfilha
a concepção estética de Fichte. Fujamos da natureza! Só assim a
arte não se ressentirá da ridícula fraqueza da fotografia...
colorida.
•
Não
acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um
leito de Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número
convencional de sílabas. Já, primeiro livro, usei indiferentemente,
sem obrigação de retorno periódico, os diversos metros pares.
Agora liberto-me também desse preconceito. Adquiro outros. Razão
para que me insultem?
•
Mas
não desdenho balouços dançarinos de redondilhas e decassílabos.
Acontece a comoção caber neles. Entram pois às vezes no cabaré
rítmico dos meus versos. Nesta questão de metros não sou aliado;
sou como a Argentina: enriqueço-me.
•
Sobre
a ordem? Repugna-me, com efeito, o que Musset chamou: “L’art de
servir à point un dénouement bien cuit”.
•
Existe
a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas,
dois a dois. Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores
que descem uma escada de quatro em quatro degraus, chocando-se
lindamente. Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria desencadeada
dos elementos.
•
Quem
leciona História do Brasil obedecerá a uma ordem que, certo, não
consiste em estudar a guerra do Paraguai antes do ilustre acaso de
Pedro Álvares. Quem canta seu subconsciente seguirá a ordem
imprevista das comoções, das associações de imagens, dos contatos
exteriores. Acontece que o tema às vezes descaminha. • O impulso
lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. Seria
engraçadíssimo que a esta se dissesse: “Alto lá! Cada qual berre
por sua vez; e quem tiver o argumento mais forte, guarde-o para o
fim!” A turba é confusão aparente. Quem souber afastar-se
idealmente dela, verá o imponente desenvolver-se dessa alma
coletiva, falando a retórica exata das reivindicações.
•
Minhas
reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embridá-la
nas minhas verdades filosóficas e religiosas; porque verdades
filosóficas, religiosas, não são convencionais como a Arte, são
verdades. Tanto não abuso! Não pretendo obrigar ninguém a
seguir-me. Costumo andar sozinho.
•
Virgílio,
Homero, não usaram rima. Virgílio, Homero, têm assonâncias
admiráveis. • A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E
possui o admirabilíssimo “ão”.
•
Marinetti
foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo,
simbólico, universal, musical da palavra em liberdade. Aliás: velha
como Adão. Marinetti errou: fez dela sistema. É apenas auxiliar
poderosíssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto que o meu copo é
grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros.
•
Sei
construir teorias engenhosas. Quer ver?
A
poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou,
talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito
oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A
poética, com rara exceção até meados do século 19 francês, foi
essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que
melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas,
contendo pensamento inteligível.
Ora,
se em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais:
“Mnezarete,
a divina, a pálida Frineia,
Comparece
ante a austera e rígida assembleia
Do
Areópago supremo...”
fizermos
que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas
palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual,
gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa
sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias.
Explico
melhor:
Harmonia:
combinação de sons simultâneos. Exemplo:
“Arroubos...
Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...”
Estas
palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase,
período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico. Se pronuncio
“Arroubos”, como não faz parte de frase (melodia), a palavra
chama a atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera
duma frase que lhe faça adquirir significado e QUE NÃO VEM.
“Lutas” não dá conclusão alguma a “Arroubos”; e, nas
mesmas condições, não fazendo esquecer a primeira palavra, fica
vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de
melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia, – o
verso harmônico. Mas, se em vez de usar só palavras soltas, uso
frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de
palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia
poética. Assim, em Pauliceia desvairada usam-se o verso
melódico:
“São
Paulo é um palco de bailados russos”;
o
verso harmônico:
“A
cainçalha... A Bolsa... As jogatinas...”;
e
a polifonia poética (um e às vezes dois e mesmo mais versos
consecutivos):
“A
engrenagem trepida... A bruma neva...”
Que
tal? Não se esqueça porém que outro virá destruir tudo isto que
construí.
Para
ajuntar à teoria:
1º
Os
gênios poéticos do passado conseguiram dar maior interesse ao verso
melódico, não só criando-o mais belo, como fazendo-o mais variado,
mais comotivo, mais imprevisto. Alguns mesmo conseguiram formar
harmonias, por vezes ricas. Harmonias porém inconscientes,
esporádicas. Provo inconsciência: Victor Hugo, muita vez harmônico,
exclamou depois de ouvir o quarteto do Rigoletto: “Façam
que possa combinar simultaneamente várias frases e verão de que sou
capaz”. Encontro anedota em Galli, Estética musical. Se non
é vero...
2º
Há
certas figuras de retórica em que podemos ver embrião da harmonia
oral, como na lição das sinfonias de Pitágoras encontramos germe
da harmonia musical. Antítese – genuína dissonância. E se tão
apreciada é justo porque poetas como músicos, sempre sentiram o
grande encanto da dissonância, de que fala G. Migot.
3º
Comentário
à frase de Hugo. Harmonia oral não se realiza, como a musical, nos
sentidos, porque palavras não se fundem como sons, antes
baralham-se, tornam-se incompreensíveis. A realização da harmonia
poética efetua-se na inteligência. A compreensão das artes do
tempo nunca é imediata, mas mediata. Na arte do tempo coordenamos
atos de memória consecutivos, que assimilamos num todo final. Este
todo, resultante de estados de consciência sucessivos, dá a
compreensão final, completa da música, poesia, dança terminada.
Victor Hugo errou querendo realizar objetivamente o que se realiza
subjetivamente, dentro de nós.
4º
Os
psicólogos não admitirão a teoria... É responder-lhes com o
Só-quem-ama de Bilac. Ou com os versos de Heine de que Bilac
tirou o Só-quem-ama. Entretanto: se você já teve por acaso
na vida um acontecimento forte, imprevisto (já teve, naturalmente)
recorde-se do tumulto desordenado das muitas ideias que nesse momento
lhe tumultuaram no cérebro. Essas ideias, reduzidas ao mínimo
telegráfico da palavra, não se continuavam, porque não faziam
parte de frase alguma, não tinham resposta, solução, continuidade.
Vibravam, ressoavam, amontoavam-se, sobrepunham-se. Sem ligação,
sem concordância aparente – embora nascidas do mesmo acontecimento
– formavam, pela sucessão rapidíssima, verdadeira simultaneidade,
verdadeiras harmonias acompanhando a melodia enérgica e larga do
acontecimento.
5º
Bilac,
Tarde, é muitas vezes tentativa de harmonia poética. Daí,
em parte ao menos, o estilo novo do livro. Descobriu, para a língua
brasileira, a harmonia poética, antes dele empregada raramente
(Gonçalves Dias, genialmente, na cena da luta, I-Juca-Pirama).
O defeito de Bilac foi não metodizar o invento; tirar dele todas as
consequências. Explica-se historicamente seu defeito: Tarde é
um apogeu. As decadências não vêm depois dos apogeus. O apogeu já
é decadência, porque sendo estagnação não pode conter em si um
progresso, uma evolução ascensional. Bilac representa uma fase
destrutiva da poesia; porque toda perfeição em arte significa
destruição. Imagino o seu susto, leitor, lendo isto. Não tenho
tempo para explicar: estude, se quiser. O nosso primitivismo
representa uma nova fase construtiva. A nós compete esquematizar,
metodizar as lições do passado. Volto ao poeta. Ele fez como os
criadores do organum medieval: aceitou harmonias de quartas e de
quintas desprezando terceiras, sextas, todos os demais intervalos. O
número das suas harmonias é muito restrito. Assim, “[...] o ar e
o chão, a fauna e a flora, a erva e o pássaro, a pedra e o tronco,
os ninhos e a hera, a água e o réptil, a folha e o inseto, a flor e
a fera” dá impressão duma longa, monótona série de quintas
medievais, fastidiosa, excessiva, inútil, incapaz de sugestionar o
ouvinte e dar-lhe a sensação do crepúsculo na mata.[48]
•
Lirismo:
estado afetivo sublime – vizinho da sublime loucura. Preocupação
de métrica e de rima prejudica a naturalidade livre do lirismo
objetivado. Por isso poetas sinceros confessam nunca ter escrito seus
melhores versos. Rostand por exemplo; e, entre nós, mais ou menos, o
sr. Amadeu Amaral. Tenho a felicidade de escrever meus melhores
versos. Melhor do que isso não posso fazer.
•
Ribot
disse algures que inspiração é telegrama cifrado transmitido pela
atividade inconsciente à atividade consciente que o traduz. Essa
atividade consciente pode ser repartida entre poeta e leitor. Assim
aquele não escorcha e esmiúça friamente o momento lírico; e
bondosamente concede ao leitor a glória de colaborar nos poemas.
•
“A
linguagem admite a forma dubitativa que o mármore não admite”.
Renan.
•
“Entre
o artista plástico e o músico está o poeta, que se avizinha do
artista plástico com a sua produção consciente, enquanto atinge as
possibilidades do músico no fundo obscuro do inconsciente”. De
Wagner.
•
Você
está reparando de que maneira costumo andar sozinho...
•
Dom
Lirismo, ao desembarcar do Eldorado do Inconsciente no cais da terra
do Consciente, é inspecionado pela visita médica, a Inteligência,
que o alimpa dos macaquinhos e de toda e qualquer doença que possa
espalhar confusão, obscuridade na terrinha progressista. Dom Lirismo
sofre mais uma visita alfandegária, descoberta por Freud, que a
denominou Censura. Sou contrabandista! E contrário à lei da vacina
obrigatória
•
Parece
que sou todo instinto... Não é verdade. Há no meu livro, e não me
desagrada, tendência pronunciadamente intelectualista. Que quer
você? Consigo passar minhas sedas sem pagar direitos. Mas é
psicologicamente impossível livrar-me das injeções e dos tônicos.
•
A
gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que
meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de
línguas organizadas. E como Dom Lirismo é contrabandista...
•
Você
perceberá com facilidade que se na minha poesia a gramática às
vezes é desprezada, graves insultos não sofre neste prefácio
interessantíssimo. Prefácio: rojão do meu eu superior. Versos:
paisagem do meu eu profundo.
•
Pronomes?
Escrevo brasileiro. Se uso ortografia portuguesa é porque, não
alterando o resultado, dá-me uma ortografia.
•
Escrever
arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual
no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Se estas
palavras frequentam-me o livro não é porque pense com elas escrever
moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão
de ser.
•
Sei
mais que pode ser moderno artista que se inspire na Grécia de Orfeu
ou na Lusitânia de Nun’Álvares. Reconheço mais a existência de
temas eternos, passíveis de afeiçoar pela modernidade: universo,
pátria, amor e a presença-dos-ausentes,
ex-gozo-amargo-de-infelizes.
•
Não
quis também tentar primitivismo vesgo e insincero. Somos na
realidade os primitivos duma era nova. Esteticamente: fui buscar
entre as hipóteses feitas por psicólogos, naturalistas e críticos
sobre os primitivos das eras passadas, expressão mais humana e livre
de arte.
•
O
passado é lição para se meditar, não para reproduzir. “E tu che
se’ costì, anima viva, Pàrtiti da cotesti che son morti”.
•
Por
muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que
ando à procura da originalidade, porque já descobri onde ela
estava, pertence-me, é minha.
•
Quando
uma das poesias deste livro foi publicada, muita gente me disse: “Não
entendi”. Pessoas houve porém que confessaram: “Entendi, mas não
senti”. Os meus amigos... percebi mais duma vez que sentiam, mas
não entendiam. Evidentemente meu livro é bom.
•
Escritor
de nome disse dos meus amigos e de mim que ou éramos gênios ou
bestas. Acho que tem razão. Sentimos, tanto eu como meus amigos, o
anseio do farol. Se fôssemos tão carneiros a ponto de termos escola
coletiva, esta seria por certo o “Farolismo”. Nosso desejo:
alumiar. A extrema-esquerda em que nos colocamos não permite
meio-termo. Se gênios: indicaremos o caminho a seguir; bestas:
naufrágios por evitar.
•
Canto
da minha maneira. Que me importa se me não entendem? Não tenho
forças bastantes para me universalizar? Paciência. Com o vário
alaúde que construí, me parto por essa selva selvagem da cidade.
Como o homem primitivo cantarei a princípio só. Mas canto é agente
simpático: faz renascer na alma dum outro predisposto ou apenas
sinceramente curioso e livre, o mesmo estado lírico provocado em nós
por alegrias, sofrimentos, ideais. Sempre hei-de achar também algum,
alguma que se embalarão à cadência libertária dos meus versos.
Nesse momento: novo Anfião moreno e caixa-d’óculos, farei que as
próprias pedras se reúnam em muralhas à magia do meu cantar. E
dentro dessas muralhas esconderemos nossa tribo.
•
Minha
mão escreveu a respeito deste livro que “não tinha e não tem
nenhuma intenção de o publicar”. Jornal do Comércio, 6 de
junho. Leia frase de Gourmont sobre contradição: 1° volume das
Promenades littéraires. Rui Barbosa tem sobre ela página
lindíssima, não me recordo onde. Há umas palavras também em João
Cocteau, La noce massacrée.
Mas
todo este prefácio, com todo o disparate das teorias que contém,
não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi Pauliceia desvairada
não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que
ri, que berrei... Eu vivo!
•
Aliás
versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos
cantam-se, urram-se, choram-se. Quem não souber cantar não leia
Paisagem n° 1. Quem não souber urrar não leia Ode ao
burguês. Quem não souber rezar, não leia religião.
Desprezar: A escalada.
Sofrer: Colloque sentimental.
Perdoar: a cantiga do berço, um dos solos de Minha Loucura, das
Enfibraturas do Ipiranga.
Não continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu
tem essa chave.
•
E
está acabada a escola poética “Desvairismo”.
•
Próximo
livro fundarei outra.
•
E
não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para
vaidade dum só.
•
Poderia
ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio
Interessantíssimo.
“Toda canção de liberdade vem do cárcere”.
Mário de Andrade, em Poesias completas
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