Ao
deixarmos a ruazinha, saímos em outra mais larga, na qual andamos
bem pouco antes de entrarmos em um armazém. O espaço era grande e
arejado, aberto para a rua com três enormes portas em forma de arcos
que tomavam quase toda a parede da frente. O armazém já estava
cheio de gente, e lá ficaram apenas os que não tinham nenhuma marca
a ferro, pois tal marca indicava quem já tinha saído de África
tratado de compra. Apesar de não estarem marcados, fui separada
também de todos os muçurumins, e mais tarde soube que eles tinham
grande valor e eram vendidos em lugares especiais. Fomos recebidos
com certa alegria pelo branco que parecia ser o dono daquele local e
que, ainda na rua, andou em torno de nós, apalpou nossas carnes,
alisou nossas peles e provou o gosto deixado no dedo, abriu nossas
bocas e olhou os dentes, e, por fim, fez sinais de aprovação.
Quando entramos no armazém, percebi o motivo da felicidade, pois ele
tinha um bom estoque de pretos, mas, juntando todos, não dava um de
nós. Pareciam mesmo carneiros magros, bichos maltratados e doentes.
Quase
todos estavam nus e eram homens e mulheres de várias idades, desde
crianças de colo até idosos, todos tristes e muito diferentes dos
pretos que eu tinha visto pelas ruas, sadios, fortes e, por que não
dizer, alegres. Os que estavam no armazém pareciam não aguentar o
peso do próprio corpo, que se resumia a quase que apenas ossos, e
era por isso que permaneciam quietos o tempo todo. Em bancos
encostados às paredes ficavam os mais velhos e os mais doentes,
sentados ou deitados. Espalhados por todos os cantos do barracão, no
chão de terra ou sobre esteiras de palha já se desmanchando, os
mais jovens formavam grupos de acordo com os locais de onde tinham
saído de África, o que era fácil de saber por causa das marcas nos
rostos ou das línguas que falavam. As mulheres se acocoravam ao
redor de fogareiros improvisados com barro e chapas de ferro que
sustentavam tachos de comida. Elas olhavam, mudas, tanto para o fogo
como para as vasilhas onde preparavam algo que nem de longe poderia
ser chamado de refeição, apenas água onde boiavam pedaços
minúsculos de verduras e ossos. Algumas crianças, magras e
barrigudas, dormiam perto delas, outras estavam penduradas em peitos
murchos, e outras ainda, um pouco mais velhas, brincavam de atirar
pedrinhas para o ar e apanhá-las antes que tocassem o chão, como
muitas vezes eu, a Taiwo e o Kokumo brincávamos em Savalu.
Os
homens também formavam grupos, mais pela companhia, porque mal se
falavam, deitados ou agachados, com os braços em volta dos joelhos e
as cabeças enfiadas entre as pernas. O comum a todos eram os ossos,
que de tão aparentes quase rasgavam a pele sem viço e sem cor
definida, coberta por imensa quantidade de escaras. Tenho quase
certeza de que nós também estávamos bem parecidos com eles quando
desembarcamos, magros, tristes e com aparência de bichos, e nos
fizeram muito bem os dias na Ilha dos Frades, ao ar livre, podendo
tomar sol, tomar banho, e com comida suficiente para, além de não
passarmos fome, ainda nos fartarmos com frutas, muitas que eu não
conhecia e eram bem gostosas. Mais tarde, em África, senti muita
falta delas. Os pretos que estavam naquele armazém provavelmente
tinham ido do navio para lá, sem passar pelo período de descanso e
recuperação. Ou estavam lá havia muito tempo, à espera de alguém
que se interessasse por eles, não sendo cuidados por quem apenas
intermediava a venda e não tratava bem de peça alheia. Na verdade,
tamanho descaso fazia com que se tornassem peças que ninguém nunca
ia querer.
Homens,
mulheres e crianças tinham os cabelos raspados, mas alguns deixavam
crescer pequenos tufos no alto da cabeça. As mulheres, na tentativa
de imitar as que ficavam no porto, passavam grande parte do tempo
amarrando e desamarrando lenços em volta da cabeça, enfeitados com
qualquer coisa que fosse possível conseguir por ali, como palha,
pedras e barro. Mas não ficavam bonitas, por mais que tentassem. Nem
as crianças eram bonitas. Aliás, a única coisa que se podia
perceber naqueles pretos era o ódio nos olhos de alguns deles, que
até os guardas pareciam respeitar, mantendo uma distância segura.
Até mesmo nós, talvez por estarmos mais bem-vestidos e mais
saudáveis, fomos alvos de tais olhares. A sensação era de que a
qualquer momento eles correriam todos na nossa direção e nos
matariam, vingando em nós o tratamento recebido. O grupo no qual eu
cheguei permaneceu unido, e ninguém conversou conosco durante um bom
tempo. À noite, a temperatura esfriou e me senti desconfortável por
todos aqueles que estavam nus, ou quase nus, inclusive as crianças,
que choravam. Os guardas que ficavam do lado de fora das portas
fechadas gritavam alguma coisa que as fazia calar, mas que eu não
compreendia por não entender ainda o português.
Fiquei
aliviada quando o dia amanheceu, pois tinha dormido muito mal,
incomodada, com medo, mas vencida pelo cansaço provocado por emoções
tão diferentes. Uma das mulheres do nosso grupo puxou conversa com
outra das que já estavam no armazém, e ela disse que tinha chegado
havia muito tempo e que infelizmente ninguém tinha se interessado
por ela, um problema bastante comum para os que não eram vendidos
logo nos primeiros dias. Quem acabava de chegar tinha a preferência
por estar mais bem alimentado, e quanto mais tempo ficava ali,
menores eram as chances de ser escolhido, porque a comida era pouca e
irregular. Às vezes mal dava para as crianças, que tinham certas
prioridades, seguindo uma norma estabelecida por eles mesmos. Mas
quando a fome apertava, esqueciam até mesmo esta regra, colocavam as
crianças para dormir e dividiam a comida entre os que tinham mais
influência no grupo. Muitas das crianças não estavam acompanhadas
de pai ou mãe, ou porque tinham viajado sozinhas, menos provável,
ou porque ficaram órfãs durante a viagem, ou tinham sido separadas
da família por compradores que se interessaram somente pelos
adultos. A conversa atraiu outras mulheres, que estavam apenas
observando, desconfiadas e curiosas para saber quando tínhamos saído
da África, de que região éramos, a que tribo pertencíamos, como
estava tudo por lá. Quando encontravam alguém da mesma região ou
tribo, perguntavam por parentes e conhecidos, e às vezes aconteciam
coincidências. Na segunda ou terceira leva anterior à nossa, havia
um homem que conheceu a família de um rapaz que já estava no
armazém e contou que a aldeia deles tinha sido arrasada, que os que
não foram capturados estavam mortos.
Eu
não sabia o motivo, mas tinha absoluta certeza de que não teria o
mesmo destino que aquelas crianças, que alguém me escolheria logo e
nada seria tão ruim assim, mas fiquei me perguntando se algumas
delas já tinham tido o mesmo pensamento e a mesma certeza em vão.
Mas elas pareciam indiferentes a tudo que acontecia ao redor, ou por
estarem brincando ou por ficarem quietas a um canto, sozinhas,
caladas, como se quisessem ficar invisíveis, como quando eu fechava
os olhos na viagem de Savalu para Uidá e todo o mundo desaparecia.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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