quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Como morrem os pobres



No ano de 1929, passei várias semanas no Hôpital x, no décimo quinto arrondissement de Paris. Os funcionários me submeteram ao costumeiro interrogatório na recepção, e fiquei respondendo a perguntas por mais de vinte minutos antes de me admitirem. Quem já teve de preencher formulários num país latino conhece o tipo de perguntas a que me refiro. Por alguns dias fui incapaz de converter Réaumur em Fahrenheit, mas sabia que minha temperatura estava em torno de quarenta graus e, ao cabo da entrevista, tive alguma dificuldade para ficar de pé. Atrás de mim, um pequeno grupo de pacientes resignados, segurando embrulhos feitos de lenços de bolso coloridos, esperava a vez de ser interrogado.
Após o interrogatório veio o banho — aparentemente uma rotina obrigatória para todos os recém-chegados, como na prisão ou no asilo de pobres. Levaram minhas roupas e, depois de ficar sentado tiritando de frio por alguns minutos em cinco dedos de água morna, deram-me um camisão de dormir de algodão e um roupão de flanela azul, curto — nada de chinelos, disseram que não tinham um bastante grande que me servisse —, e me conduziram para fora do hospital. Era uma noite de fevereiro, e eu estava com pneumonia. A ala para onde íamos ficava a uns duzentos metros e parecia que, para chegar lá, tínhamos de atravessar o terreno do hospital. Alguém tropeçou à minha frente com uma lanterna. Os cascalhos do caminho estavam gélidos sob os pés, e o vento agitava o camisão em torno das panturrilhas descobertas. Quando chegamos à ala, dei-me conta de uma estranha sensação de familiaridade cuja origem só consegui definir mais tarde naquela noite. Era um quarto comprido, de pé-direito bastante baixo, mal iluminado, cheio de vozes murmurantes e com três fileiras de camas surpreendentemente próximas umas das outras. Quando estava deitado, vi numa cama quase em frente um homenzinho ruivo de ombros caídos sentado seminu enquanto um médico e um estudante lhe faziam uma estranha operação. Primeiro o médico tirou da sacola preta uma dúzia de copos pequenos, iguais a copos de vinho, depois o estudante acendeu um fósforo dentro de cada copo para exaurir o ar, em seguida pôs o copo nas costas ou no peito do homem, e o vácuo extraiu uma enorme bolha amarela. Só depois de alguns momentos percebi o que faziam com o homem. Era algo chamado sangria por meio de ventosas, um tratamento sobre o qual lemos em antigos manuais de medicina, mas que até então eu imaginava vagamente ser dessas coisas que se fazem com cavalos.
O ar frio de fora provavelmente baixara minha temperatura, e eu observava aquele tratamento bárbaro com distanciamento e até alguma dose de diversão. Dali a pouco, porém, o médico e o estudante vieram até minha cama, puseram-me na posição vertical e, sem uma palavra, começaram a aplicar em mim o mesmo conjunto de copos, que de modo algum haviam sido esterilizados. Uns poucos protestos fracos que emiti não provocaram mais reações do que provocariam se eu fosse um animal. Fiquei muitíssimo impressionado com a maneira impessoal como os dois homens me tratavam. Nunca estivera na ala pública de um hospital, era minha primeira experiência com médicos que lidam com pessoas sem falar com elas ou, num sentido humano, sem reparar nelas. No meu caso, puseram apenas seis copos, mas depois disso sacrificaram as bolhas e voltaram a utilizar os copos. Cada copo agora extraía cerca de uma colher de sobremesa de sangue preto. Depois de me deitar outra vez, humilhado, desgostoso e assustado com o que haviam feito comigo, pensei que então ao menos me deixariam em paz. Mas não, nem um pouco. Estavam prontos para outro tratamento, o cataplasma de mostarda, aparentemente mais uma rotina igual ao banho quente. Duas enfermeiras desmazeladas, que já tinham preparado o cataplasma, colocaram-no às pressas em volta do meu peito como uma camisa-de-força bem apertada, enquanto uns homens de camisa e calça que andavam a esmo pela ala começavam a se juntar em volta da minha cama com sorrisos meio complacentes. Soube mais tarde que observar a aplicação do cataplasma de mostarda num paciente era o passatempo predileto na ala. A aplicação desse tipo de coisa em geral leva uns quinze minutos e decerto é engraçada quando não se é o receptor. Nos primeiros cinco minutos, a dor é forte, mas acreditamos ser capazes de suportá-la. Durante os cinco minutos seguintes, tal crença desaparece, no entanto o cataplasma está firmado muito bem atrás e não podemos tirá-lo. Esta é a etapa de que os espectadores gostam mais. Durante os últimos cinco minutos, notei que sobrevinha uma espécie de dormência. Depois de o cataplasma ter sido removido, jogaram um travesseiro cheio de gelo e à prova d’água debaixo da minha cabeça e me deixaram sozinho. Não dormi, e ao que me consta aquela foi a primeira noite na minha vida — quero dizer, passada numa cama — em que não dormi nada, nem um minuto sequer.
Durante minhas primeiras horas no Hôpital x, fui submetido a uma série de tratamentos diferentes e contraditórios, o que era enganoso, pois em geral recebíamos pouquíssimos tratamentos, bons ou ruins, a menos que estivéssemos doentes de uma forma interessante e instrutiva. Às cinco da manhã, as enfermeiras apareciam, acordavam os pacientes e tiravam a temperatura, mas não os lavavam. Quando estamos bem, nós nos lavamos, do contrário dependemos da bondade de algum paciente que possa andar. Também de modo geral eram os pacientes que carregavam os vasos e a comadre nojenta, apelidada de la casserole. Às oito horas entregavam o café-da-manhã, chamado la soupe, como no Exército. Era sopa também, uma sopa rala de verduras com pedaços viscosos de pão flutuando. Mais tarde, o médico alto, solene e de barba preta dava um giro, com um interne e um bando de estudantes logo atrás, mas havia uns sessenta de nós na ala e, é claro, ele também tinha de visitar outras alas. Havia muitas camas pelas quais ele passava sem se deter dia após dia, às vezes seguido de gritos de súplica. Por outro lado, quem estava com alguma doença de que os estudantes queriam tomar conhecimento recebia muita atenção. No meu caso mesmo, um exemplo excepcionalmente admirável de ronco bronquial, às vezes uma dúzia de estudantes formava fila para ouvir meu peito. Era uma sensação esquisita — quero dizer, esquisita por causa do intenso interesse dos estudantes em aprender o trabalho, bem como por uma aparente falta de percepção de que os pacientes eram seres humanos. É estranho contar, mas de quando em quando, ao chegar a vez de um estudante se aproximar para nos manipular, ele tremia de emoção, como um garoto que afinal toca uma maquinaria cara. E então, ouvido após ouvido — ouvidos de moços, moças, negros — pressionava nossas costas, dedos em revezamento batiam solene mas desajeitadamente, e de nenhum deles partia uma palavra qualquer ou um olhar que mirasse nosso rosto. Como pacientes não pagantes em camisão de uniforme, éramos acima de tudo um espécime, uma coisa de que não me ressentia, mas a que nunca me acostumei direito.
Depois de alguns dias, melhorei o suficiente para me soerguer e observar os pacientes circundantes. No quarto abafado, com as camas estreitas tão juntas umas das outras que podíamos tocar com facilidade a mão do vizinho, havia todo tipo de doenças, com exceção, creio, de casos seriamente infecciosos. Meu vizinho da direita era um sapateiro pequeno e ruivo com uma perna mais curta do que a outra e que costumava anunciar a morte de qualquer paciente (isso aconteceu várias vezes, e meu vizinho era sempre o primeiro a saber) ao assobiar para mim e exclamar “Numéro 43!” (ou o que fosse), agitando os braços acima da cabeça. Aquele homem não estava muito mal, mas na maior parte das outras camas, do meu ponto de vista, alguma tragédia miserável ou algum horror manifesto estava em andamento. Na cama cujo pé se voltava para o pé da minha, esteve deitado, até morrer (não o vi morrer, transferiram-no para outra cama), um homenzinho encarquilhado que sofria de não sei qual doença, mas alguma coisa que lhe deixava o corpo tão intensamente sensível que qualquer movimento de um lado para o outro, às vezes até o peso das roupas de cama, fazia-o gritar de dor. O pior sofrimento era quando urinava, o que fazia com grande dificuldade. Uma enfermeira lhe trazia o vaso e ficava parada ao lado da cama durante muito tempo, a assobiar, como dizem que cavalariços fazem para os cavalos, até que por fim, com um guincho agonizado de “Je pisse!”, ele começava. Na cama ao lado dele, o homem ruivo que vi submeterem à sangria por meio de ventosas costumava expelir, tossindo, um muco com vestígios de sangue, a qualquer hora. Meu vizinho da esquerda era um jovem alto e flácido em cujas costas costumavam de tempos em tempos inserir um tubo pelo qual retiravam quantidades espantosas de um líquido espumoso de alguma parte do corpo. Na cama que vinha logo após essa, um veterano da guerra de 1870 agonizava, um velho simpático com uma pêra branca no queixo, em torno de cuja cama, a qualquer hora em que se permitissem visitas, quatro parentes velhas vestidas de preto ficavam sentadas como gralhas, sem dúvida fazendo planos para alguma herança miserável. Na cama em frente à minha, na fileira mais afastada, estava um velho careca de bigodes curvados, rosto e corpo extremamente inchados, que sofria de alguma doença que o fazia urinar quase sem cessar. Um enorme receptáculo de vidro ficava sempre ao lado da cama. Um dia a esposa e a filha foram visitá-lo. Ao vê-las, o velho de rosto intumescido se iluminou com um sorriso de doçura surpreendente, e quando a filha, uma jovem bonita de uns vinte anos, se aproximou da cama eu percebi que a mão dele se mexia muito devagar sob a coberta. Eu podia antecipar o gesto que estava por vir — a moça ajoelhando-se ao lado da cama, a mão do velho colocada na cabeça dela numa bênção de agonizante. Mas não, ele apenas lhe entregou o vaso, que ela pegou de imediato e esvaziou no receptáculo.
Cerca de dez camas distantes da minha, estava o numéro 57 — acho que era esse o número dele —, um caso de cirrose. Todo mundo na ala o conhecia de vista, porque às vezes ele era objeto de palestra médica. Duas tardes por semana, o médico alto e circunspecto fazia uma palestra na ala para um grupo de estudantes, e em mais de uma ocasião o velho numéro 57 era posto numa espécie de carrinho no meio da ala, onde o médico lhe baixava o camisão, expandia com os dedos uma enorme protuberância flácida na barriga do velho — acho que o fígado doente — e explicava, solene, que aquela era uma doença causada pelo alcoolismo, mais comum em países em que se tem o hábito de tomar vinho. Como sempre, não falou com o paciente nem lhe dirigiu um sorriso, um aceno ou qualquer tipo de consideração. Enquanto falava, bastante circunspecto e empertigado, segurava o corpo enfraquecido com as duas mãos, às vezes girava-o de um lado para o outro de leve, na mesma postura de uma mulher que segura um pau de macarrão. Não que esse tipo de coisa incomodasse o numéro 57. Decerto ele era um velho recluso no hospital, um exemplo constante em palestras, seu fígado há muito reduzido ao interior de um frasco em algum museu de patologia. Totalmente desinteressado do que se dizia a seu respeito, fixava os olhos incolores no vazio, enquanto o médico o expunha como uma porcelana de antigualha. Era um homem de uns sessenta anos, espantosamente mirrado. O rosto, pálido como velino, murchara tanto que não parecia maior do que o rosto de uma boneca.
Numa manhã, meu vizinho sapateiro me acordou com safanões em meu travesseiro antes da chegada das enfermeiras. “Numéro 57!”, disse, agitando os braços acima da cabeça. Havia uma luz na ala, com a qual dava para enxergar. Pude ver o numéro 57 encolhido de lado, o rosto projetando-se para fora cama, voltado para mim. Morrera durante a noite, ninguém sabia quando. Ao chegarem, as enfermeiras receberam a notícia da morte com indiferença e começaram a trabalhar. Depois de muito tempo, uma hora ou mais, duas outras enfermeiras entraram marchando lado a lado como soldados, com um pesado som de tamancos, e embrulharam o cadáver nos lençóis, mas ele só foi removido mais tarde. Enquanto isso, sob uma luz mais forte, tive tempo para dar uma boa olhada no numéro 57. De fato, deitei-me de lado para observá-lo. Curiosamente, era o primeiro europeu morto que eu via. Vi homens mortos antes, mas sempre asiáticos e em geral pessoas que tiveram morte violenta. Os olhos do numéro 57 ainda estavam abertos, a boca também, o rosto pequeno contorcido numa expressão de agonia. O que mais me impressionou, porém, foi a brancura do rosto. Fora pálido antes, mas agora era pouco mais escuro do que os lençóis. Enquanto fitava o rosto miúdo e contorcido, ocorreu-me que aquele refugo repugnante, à espera de ser retirado e descarregado numa laje na sala de dissecção, era um exemplo de morte “natural”, uma das coisas por que rezamos na ladainha. Aí está, então, pensei, é isto que o espera daqui a vinte, trinta, quarenta anos: é assim que morrem os que têm sorte, os que vivem para ser velhos. Queremos viver, claro, na verdade só permanecemos vivos por medo da morte, mas penso agora, como pensava então, que é melhor morrer de forma violenta e não muito velho. As pessoas falam dos horrores da guerra, mas que arma o homem inventou que se assemelhe em crueldade a algumas das doenças mais comuns? Morte “natural”, quase por definição, significa algo lento, malcheiroso e doído. Mesmo nisso, tem importância se o fazemos em casa e não numa instituição pública. Aquele pobre velho infeliz que acabara de se apagar como um toco de vela não era nem importante o bastante para que alguém o velasse no leito de morte. Era só um número, depois uma “matéria” para os escalpelos dos estudantes. E a sórdida publicidade de morrer num lugar daquele! No Hôpital x as camas ficavam muito perto umas das outras e não havia biombos. Imagine, por exemplo, morrer como o homenzinho cuja cama por um tempo esteve encostada à extremidade da minha, o que gritava quando as cobertas lhe tocavam o corpo! Acho que “Je pisse!” foram suas últimas palavras registradas. Talvez os moribundos não se importem com essas coisas — esta ao menos seria a resposta comum: porém a cabeça dos moribundos é muitas vezes mais ou menos normal até cerca de um dia antes do fim.
Nas alas públicas de um hospital, vemos horrores que parece que não encontramos entre pessoas que morrem em sua própria casa, como se algumas doenças só acometessem pessoas com níveis de renda mais baixos. Mas é fato que em qualquer hospital inglês não veríamos algumas das coisas que vi no Hôpital x. Isso de pessoas morrerem como animais, por exemplo, sem a presença de ninguém, ninguém interessado, a morte passada despercebida até a manhã — isso aconteceu mais de uma vez. Com certeza não veríamos nada parecido na Inglaterra, e muito menos veríamos um cadáver deixado à vista dos outros pacientes. Lembro-me de que uma vez, num hospital rural na Inglaterra, um homem morreu enquanto tomávamos chá, e, embora fôssemos apenas seis na ala, as enfermeiras conseguiram se encarregar das coisas com tal habilidade que o homem morreu e o corpo foi removido sem nem sequer sabermos disso até o chá terminar. Uma coisa que talvez subestimemos na Inglaterra é a vantagem de termos um grande número de enfermeiras bem treinadas e rigidamente disciplinadas. Sem dúvida as enfermeiras inglesas são muito tolas, chegam a ler a sorte com folhas de chá, usar distintivos da bandeira nacional e expor fotografias da rainha no console da lareira, mas ao menos não nos deixam ficar sem banho e constipados numa cama por fazer, por pura preguiça. As enfermeiras do Hôpital x ainda tinham um quê de Mrs. Gamp (1), e mais tarde, nos hospitais militares da Espanha republicana, vi enfermeiras que mal sabiam tirar a temperatura. Na Inglaterra também não veríamos a sujeira que havia no Hôpital x. Mais tarde, quando já estava bom o suficiente para me lavar no banheiro, descobri que lá mantinham um enorme caixote onde jogavam restos de comida e curativos sujos da ala, e os lambris estavam infestados de insetos.
Quando me devolveram as roupas e minhas pernas se fortaleceram, fugi do Hôpital x, antes do tempo e sem esperar pela alta. Não foi o único hospital de que fugi, mas a escuridão e o vazio, seu cheiro nauseante e sobretudo alguma coisa em sua atmosfera mental se distinguem como excepcionais em minha recordação. Fui levado para lá porque era o hospital que pertencia a meu arrondissement, e só mais tarde soube que tinha má reputação. Uns dois anos depois, a célebre escroque Madame Hanaud, que adoeceu enquanto estava em prisão preventiva, foi levada ao Hôpital x e, após alguns dias, conseguiu escapar dos guardas, pegou um táxi e voltou para o presídio, explicando que ali se sentia mais confortável. Não tenho dúvida de que o Hôpital x era pouco representativo dos hospitais franceses mesmo naquela época. Mas os pacientes, quase todos trabalhadores, eram espantosamente conformados. Alguns pareciam achar as condições quase confortáveis, porque ao menos dois deles eram indigentes que se fingiam de doentes, acreditando que essa era uma boa maneira de passar o inverno. As enfermeiras cooperavam secretamente porque aquelas pessoas eram úteis para fazer biscates. A postura da maioria, porém, era: é claro que este lugar não presta, mas o que é que se pode esperar? Não lhes parecia estranho ser acordados às cinco e depois esperar três horas para começar o dia com uma sopa aguada, ou que as pessoas morressem sem ninguém ao lado da cama, ou mesmo que a possibilidade de obter assistência médica dependesse de conseguir chamar a atenção do médico quando ele passasse. De acordo com a tradição daquelas pessoas, hospitais eram assim. Quando estamos gravemente enfermos, e quando somos muito pobres para ser tratados em casa, precisamos ir para um hospital, e uma vez lá temos de suportar crueldades e desconforto, como no Exército. Mas além disso eu estava interessado em encontrar uma crença persistente em histórias antigas que quase já se perderam na memória da Inglaterra — histórias, por exemplo, de médicos que nos abriam por mera curiosidade ou por achar engraçado começar uma operação antes de estarmos devidamente “sob o efeito”. Há relatos sinistros sobre uma pequena sala de operações que estaria situada logo depois do banheiro. Diziam que gritos aflitivos vinham de lá. Nada vi que confirmasse essas histórias, e sem dúvida eram todas absurdas, embora tenha visto dois estudantes matarem um rapaz de dezesseis anos, ou quase matarem (parece que ele estava agonizando quando saí do hospital, mas é possível que tenha se recuperado mais tarde), num experimento travesso que provavelmente não poderiam ter tentado com um paciente pagante. As pessoas ainda se lembram de que em Londres se costumava acreditar que em alguns grandes hospitais pacientes eram eliminados para que se pudesse obter material de dissecção. Não ouvi contarem essa história no Hôpital x, contudo creio que alguns homens de lá a considerariam verossímil. Porque era um hospital em que não os métodos, talvez, mas algo da atmosfera do século xix conseguiu sobreviver, daí seu peculiar interesse.
Durante os últimos cinquenta anos, mais ou menos, houve uma grande mudança na relação entre médico e paciente. Quando examinamos qualquer literatura anterior à última metade do século XIX, verificamos que um hospital é visto popularmente como o mesmo que uma prisão, e uma prisão obsoleta e semelhante a uma masmorra. Um hospital é um lugar sujo, de tortura e morte, uma espécie de antecâmara do túmulo. Ninguém que não fosse mais ou menos indigente pensaria em procurar tratamento num lugar assim. Principalmente na primeira metade do século XIX, quando a ciência da medicina se tornou mais audaz do que antes sem por isso ter alcançado mais êxito, toda a atividade médica foi encarada com horror e temor pelas pessoas comuns. Acreditava-se que a cirurgia, em especial, não passava de uma forma particularmente medonha de sadismo; e a dissecção, possível apenas com a cooperação de ladrões de cadáveres, chegava a ser confundida com a necromancia. Podemos recolher do século xix uma vasta literatura de horror ligada a médicos e hospitais. Pensemos no pobre e velho Jorge III, na decrepitude, gritando por misericórdia ao ver os cirurgiões se aproximarem para “sangrá-lo até desmaiar”! Pensemos nas conversas de Bob Sawyer e Benjamin Allen, que sem dúvida dificilmente são paródias, nos hospitais ambulantes de campanha em La debâcle e Guerra e paz, ou na chocante descrição de uma amputação em Whitejacket, de Herman Melville! Mesmo os nomes dados a médicos na ficção inglesa do século XIX, Slasher, Carver, Sawyer, Fillgrave e assim por diante, e o apelido genérico “carniceiro”, são tão sinistros quanto cômicos. A tradição anticirurgia está talvez mais bem expressa no poema de Alfred Tennyson “The children’s hospital” [O hospital infantil], que é essencialmente um documento pré-clorofórmio, embora pareça ter sido escrito por volta de 1880. Além disso, há muito que dizer sobre o ponto de vista registrado por Tennyson. Quando pensamos no que poderia ter sido uma operação sem anestésico, o que sabidamente foi, é difícil não suspeitar dos motivos das pessoas que se incumbiam dessas coisas. Porque há que se reconhecer que esses horrores sanguinários que os estudantes aguardavam com tamanha ansiedade (“Um espetáculo magnífico quando Slasher o executa!”) eram mais ou menos inúteis: o paciente que não morria de choque em geral morria de gangrena, um resultado com que se contava. Mesmo hoje se encontram médicos cujos motivos são duvidosos. Qualquer um que tenha tido muitas doenças ou que tenha escutado conversas de estudantes de medicina saberá o que quero dizer. Mas os anestésicos foram um ponto fundamental, assim como os desinfetantes. Em lugar algum do mundo, provavelmente, veríamos hoje o tipo de cena descrito por Axel Munthe em The story of San Michele, em que o sinistro cirurgião de cartola e sobrecasaca, o peito da camisa engomada respingado de sangue e pus, talha paciente após paciente com a mesma faca e joga os membros cortados numa pilha ao lado da mesa. Além disso, a previdência social em parte aboliu a ideia de que um paciente da classe trabalhadora é um indigente que merece pouca consideração. Ainda neste século XX, era comum que pacientes “gratuitos” de hospitais grandes tivessem os dentes extraídos sem anestésico. Não pagam, por que lhes aplicar anestésico? — era essa a postura. Isso também mudou.
E no entanto todas as instituições sempre terão de carregar algumas reminiscências do passado. Uma sala de quartel ainda é assombrada pelo espectro de Rudyard Kipling, e é difícil entrar num asilo de pobres sem que Oliver Twist venha à lembrança. Os hospitais começaram como uma espécie de dependência separada para que leprosos e outros mais morressem, e continuaram como locais em que estudantes de medicina aprendiam o ofício com cadáveres de pessoas pobres. Ainda notamos um tênue indício de sua história na arquitetura caracteristicamente sombria. Eu estaria longe de me queixar do tratamento que recebi em qualquer hospital inglês, mas sei que um instinto forte aconselha as pessoas a, se possível, não entrar em hospitais, em especial em alas públicas. Qualquer que seja a posição legal, é indiscutível que temos menos controle sobre nosso próprio tratamento, menos certeza de que não estaremos sujeitos a experimentos frívolos, quando é um caso de “aceite a disciplicina ou caia fora”. E é uma grande coisa morrer em nossa própria cama, embora seja melhor ainda morrer de botas. Por maior que seja a gentileza e a eficiência, em toda morte em hospital haverá algum detalhe cruel e sórdido, algo talvez pequeno demais para ser contado, mas que deixa recordações terrivelmente dolorosas, que surgem da pressa, da aglomeração, da impessoalidade de um lugar em que todos os dias pessoas morrem entre estranhos.
O pavor de hospitais decerto ainda permanece entre os muito pobres e em todos nós só desapareceu há pouco tempo. É um canto escuro não longe da superfície de nossa mente. Disse antes que, ao entrar na ala no Hôpital x, fiquei ciente de uma estranha sensação de familiaridade. É que a cena fazia lembrar os hospitais malcheirosos e cheios de sofrimento do século xix, que nunca vi, mas que conhecia de tantas histórias. E alguma coisa, talvez o médico vestido de preto com sua maleta preta suja, ou talvez apenas o cheiro nauseante, fez o curioso truque de desenterrar de minha memória aquele poema de Tennyson, “The children’s hospital”, no qual não pensava há mais de vinte anos. Quando menino, uma enfermeira o leu em voz alta para mim; sua própria vida profissional talvez remontasse à época em que Tennyson escreveu o poema. Os horrores e os sofrimentos dos hospitais antigos eram para ela uma lembrança viva. Estremecemos juntos com o poema, e depois, aparentemente, eu o esqueci. Mesmo seu título talvez não me fizesse relembrar coisa alguma. Mas o primeiro vislumbre do quarto mal iluminado e murmurante, com as camas tão juntas umas das outras, de repente despertou a cadeia de pensamentos a que ele pertencia, e na noite seguinte me peguei recordando toda a história e a atmosfera do poema, e muitos versos inteiros.

Nota:
(1) Personagem de Martin Chuzzlewit, romance de Charles Dickens. (N. T.)

George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios

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