“O
senhor mesmo sabe. E, se sabe, me entende...” Tudo indica
que o Riobaldo, numa outra encarnação, estudou filosofia com
Platão. Os dois, Lobato e Nietzsche, tinham a mesma coisa na alma.
Eles, ambos, amavam as crianças. Não esse amor bobo, as crianças
umas gracinhas, tolinhas, com quem se fala só por meio de
diminutivos idiotas: tem dois aninhos, vai tomar sopinha, vai pôr
roupinha. Levavam as crianças a sério. Concordavam com a opinião
de Bernardo Soares, que notava a “diferença hedionda entre a
inteligência das crianças e a estupidez dos adultos”. Num
momento de desânimo ante a incompreensão dos adultos, Nietzsche
escreveu: “Gosto de me assentar aqui onde as crianças brincam,
ao lado da parede em ruínas, entre os espinhos e as papoulas
vermelhas. Para as crianças eu sou ainda um sábio, e também para
os espinhos e as papoulas vermelhas”.
Nietzsche
escrevia para educar. Mas tinha horror às escolas. Nas escolas se
formam os rebanhos de ovelhas, todas balindo igual, todas pensando
igual. Ovelha que balisse diferente, que pensasse diferente, ia para
o manicômio ou era reprovada. Morreria de rir se tivesse tido a
felicidade de ler a Adélia Prado: “Escola é uma coisa sarnenta.
Fosse terrorista, raptava era diretor de escola e dentro de três
dias amarrava no formigueiro, se não aceitasse minhas condições.
Quando acabarem as escolas quero nascer outra vez”.
Escola
é máquina de destruir crianças. Nas escolas, as crianças são
transformadas em adultos. É isso que todos os pais querem: que seus
filhos sejam adultos produtivos. O destino de uma criança é
conseguir entrar no mercado de trabalho.
Nietzsche
andava na direção contrária... Não era ovelha de rebanho. Era
cabrito montês que andava sozinho nas rochas. Criança não é meio
para se chegar ao adulto. Criança é fim, o lugar onde todo adulto
deve chegar. Zaratustra tinha 30 anos de idade quando deixou sua casa
e o lago de sua casa e subiu para a solidão das montanhas. Chegou um
dia, entretanto, em que ele se sentiu como fonte transbordante. E
então teve saudades dos homens. Desejou que eles bebessem da sua
água. E assim começou a descer. Sua descida passava por uma
floresta, a mesma por que passara dez anos antes. Dez anos antes ele
se encontrara com um eremita. E agora se encontrava com o mesmo
eremita, que se espantou ao vê-lo: “Esse caminhante não me é
estranho; muitos anos atrás ele passou por esse caminho. Ele se
chamava Zaratustra. Mas ele mudou. Naquele tempo tu levavas tuas
cinzas para as montanhas; e agora tu levas teu fogo para os vales?
Não tens medo de ser punido como incendiário?... Zaratustra mudou,
Zaratustra se transformou numa criança, Zaratustra é um iluminado”.
De
fato, o jequitibá é maravilhoso, muito alto, muito velho. No galho
de um jequitibá se pode pendurar um balanço. Mas a criança de
Nietzsche é mais maravilhosa que o jequitibá. Que são a altura e a
idade de uma árvore comparados ao momento efêmero de uma criança
que balança no balanço? Bolha de sabão...
Rubem Alves, em Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo
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