De
fato, aconteceu que fui mesmo escolhida no segundo dia. Tão logo as
portas do armazém foram abertas, começaram a chegar homens dos mais
diferentes tipos, sabedores da notícia de que havia peças novas.
Uns brancos, outros nem tanto, alguns com roupas bem parecidas com as
que vestiam os brancos que nos pegaram em Uidá. Percebi uma pequena
mudança nos rostos de todos aqueles que já estavam ali antes de
nós. Parecia que renasciam a cada manhã, como se tivessem dentro
deles um sol que surgia forte e que, com o correr do dia, ia
enfraquecendo, até desaparecer por completo com o fim da tarde. A
cada manhã renovavam a esperança de serem escolhidos para, enfim,
deixarem aquele lugar que aos poucos ia acabando com eles, roubando
saúde e, principalmente, dignidade. Era desonroso ficar no armazém
por muito tempo, dia após dia, sendo preteridos e humilhados,
rebaixados a um ponto em que não serviam nem mais para carneiros. A
comida era pouca, levada uma vez por dia por um homem que a entregava
a uma senhora bastante idosa e respeitada, que cuidava da preparação
e da distribuição. Todos tentavam viver às boas com ela, que tanto
poderia favorecer como prejudicar alguém. Não percebi se ela estava
no armazém esperando para ser escolhida ou se aquele era o seu
trabalho. Em comparação com a comida que recebíamos na Ilha dos
Frades ou mesmo no navio, já que parecia ser para a mesma quantidade
de pessoas, não chegava nem à metade. Além do mais, era apenas
farinha, água, poucos legumes de péssima qualidade, já passados do
ponto, e um pedaço de carne escura e malcheirosa, que depois me
disseram ser carne de baleia, da pior qualidade.
Os
brancos entravam, olhavam ao redor e apontavam os pretos pelos quais
se interessavam. Então, um dos empregados se aproximava dos pretos e
batia em seus ombros com uma vara ou gritava de longe para que eles
se aproximassem, caso já entendessem o português. Não importando
se era homem, mulher ou criança, o comprador apalpava-lhes todo o
corpo e os fazia erguer os braços e mostrar as plantas dos pés,
como a minha avó tinha feito em Uidá. O empregado do armazém batia
com um chicote em suas pernas e eles tinham que pular, para ver se
reagiam rápido, e depois tinham que abrir a boca e mostrar os
dentes, para então gritar o mais alto que podiam. Senti vontade de
rir quando vi este ritual pela primeira vez, talvez mais pelo nervoso
de saber que também teria que passar por ele, mas desejando que
acontecesse logo, que eu fosse logo escolhida e levada embora. Caso
contrário, estaria condenada a ficar, quem sabe, até morrer, visto
que a grande maioria dos compradores não se interessava por
crianças. Quase todos os que tinham chegado junto comigo foram
vendidos ainda de manhã, o que fazia aumentar a tristeza, o desânimo
e o ódio dos que permaneciam. Sabendo das poucas chances que eu
teria e que não deveria perder nenhuma delas, tentei me manter limpa
e demonstrar alegria, pois percebi que a aparência contava muito.
Primeiro foram vendidos os homens e as mulheres que estavam mais bem
compostos e pareciam mais saudáveis, risonhos até, orgulhosos de
serem escolhidos antes dos outros.
No
meio da tarde eu já sentia muita fome, pois a comida não tinha dado
para todo mundo. Os que estavam ali antes da nossa chegada foram os
únicos a se servir, e em quantidades moderadas. Foi quando entrou um
homem muito distinto, de meia-idade, seguido de perto por dois pretos
também alinhados, embora tivessem os pés descalços. Ele pediu uma
preta que soubesse cozinhar e algumas se apresentaram,
voluntariamente ou depois de serem chamadas pelo empregado do
barracão, que primeiro tentava vender as peças mais antigas, que os
compradores recusavam para escolher as que estavam em melhores
condições. Acabou sendo escolhida uma senhora que tinha viajado no
meu navio, uma que eu vi chorando no dia em que levaram o marido
morto para ser jogado no mar. Depois, o homem pediu um preto que
entendesse de pescaria, e como já não havia mais homens da nova
leva, ficou com um dos antigos que, na verdade, não tinha nada de
antigo, era bem moço ainda, embora magro e maltratado. Quando
parecia que já estava se preparando para ir embora, feliz com a
compra, correu os olhos pelo armazém, como quem procura uma vaca
entre carneiros, parou e apontou a bengala na minha direção.
Antes
que ele se arrependesse, e antes mesmo que me chamassem, corri para
ele e me apressei a fazer todo o procedimento, o que me valeu uma
chicotada de reprimenda por parte do empregado, mas também algumas
risadas de todos que estavam prestando atenção. Isso porque nem
todos prestavam atenção, alguns pareciam completamente indiferentes
em relação ao próprio destino, não se importando se fossem
comprados ou não, se vivessem ou não. Mas eu queria viver e
consegui arrancar uma gargalhada daquele que seria meu futuro dono, o
que foi um sinal de permissão para que todos fizessem o mesmo. Logo
o armazém tinha uma atmosfera menos triste, onde ecoavam algumas
risadas tímidas e outras bem escandalosas. Como percebi que estava
agradando, resolvi continuar. Dava um salto, levantava os braços,
mostrava a planta dos pés, punha a língua para fora, berrava,
corria ao redor de um círculo imaginário, me agachava e ficava de
pé, dava pulos no ar e repetia tudo em seguida. Eu já estava
ficando cansada quando o homem também se cansou de rir e passou a
conversar em português com o empregado, e eu sabia que estava
perguntando o meu preço. Fiquei muito feliz por ter sido aceita e me
lembrei da minha mãe, da minha avó, da Taiwo e do Kokumo, e achei
que eles também teriam rido se tivessem visto o que eu tinha acabado
de fazer, e que estariam mais felizes ainda por eu ter sido escolhida
no meu segundo dia no armazém. Mesmo não sendo mais para presente,
eu não ia virar carneiro.
O
homem que tinha acabado de me comprar sentou-se ao lado de uma mesa
que servia de escritório em um dos cantos do armazém, onde ele e um
dos empregados trataram da assinatura dos títulos de compra e venda.
Os dois pretos que o acompanhavam já sabiam o que fazer e logo nos
amarraram, eu, a cozinheira e o pescador, e nos levaram para perto da
mesa, onde quiseram saber os nossos nomes, os nomes de branco que
tínhamos recebido em África ou na Ilha dos Frades. O do pescador
era Afrânio, e então passou a se chamar Afrânio Gama, e a
cozinheira ficou sendo Maria das Graças Gama. Quando eu disse que me
chamava Kehinde, o nosso dono pareceu ficar bravo, e um dos
empregados perguntou novamente, em iorubá, que nome tinham me dado
no batismo. Eu repeti que meu nome era Kehinde e não consegui
entender o que diziam entre eles, enquanto o empregado procurava
algum registro na lista dos que tinham chegado no dia anterior. O que
sabia iorubá disse para eu falar o meu nome direito porque não
havia nenhuma Kehinde, e eu não poderia ter sido batizada com este
nome africano, devia ter um outro, um nome cristão. Foi só então
que me lembrei da fuga do navio antes da chegada do padre, quando eu
deveria ter sido batizada, mas não quis que soubessem dessa
história. A Tanisha tinha me contado o nome dado a ela, Luísa, e
foi esse que adotei. Para os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa
Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O nome que a minha mãe e a
minha avó me deram e que era reconhecido pelos voduns, por Nanã,
por Xangô, por Oxum, pelos Ibêjis e principalmente pela Taiwo.
Mesmo quando adotei o nome de Luísa por ser conveniente, era como
Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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