segunda-feira, 21 de outubro de 2024

A leste do Éden | 3


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Adam Trask nasceu numa fazenda nos arredores de uma cidade pequena que não ficava longe de uma cidade grande em Connecticut. Era filho único e nasceu seis meses depois que o pai foi convocado para um regimento de Connecticut em 1862. A mãe de Adam tomou conta da fazenda, deu à luz Adam e ainda encontrava tempo para abraçar uma teosofia primitiva. Ela achava que o marido certamente seria morto pelos rebeldes bárbaros e selvagens e se preparou para entrar em contato com ele no que chamava de o além. Ele voltou para casa seis semanas após Adam nascer. Sua perna direita foi amputada na altura do joelho. Caminhava numa perna de pau tosca que ele mesmo entalhara em um pedaço de faia. E já estava rachando. Levava no bolso e colocava sobre a mesa da sala de estar a bala de chumbo que lhe deram para morder quando cortaram a sua perna em frangalhos.
O pai de Adam, Cyrus, era uma espécie de demônio — sempre fora turbulento —, guiava uma charrete em alta velocidade e conseguia fazer sua perna de pau parecer vistosa e desejável. Apreciara sua carreira militar, o pouco que ela durou. Sendo de natureza selvagem, gostara do breve período de treinamento e da bebida, da jogatina e das mulheres que faziam parte dele. Então marchou para o sul com um grupo de reforço e se divertiu com isso também — conhecer o país, roubar galinhas e caçar garotas rebeldes nos montes de feno. O cansaço sombrio e desesperador das demoradas manobras não o afetou. A primeira vez que viu o inimigo foi às oito horas de uma manhã de primavera e às oito e trinta foi atingido na perna direita por um balaço que esmagou e estilhaçou os ossos sem nenhuma possibilidade de reparação. Ainda assim teve sorte, pois os rebeldes recuaram e os cirurgiões de campanha entraram em cena imediatamente. Cyrus Trask teve seus cinco minutos de horror enquanto extirpavam os retalhos, serravam o osso e cauterizavam a carne viva. As marcas de dentes na bala eram prova disso. E sentiu muita dor enquanto o ferimento cicatrizava nas condições incomumente sépticas dos hospitais daquela época. Mas Cyrus tinha vitalidade e insolência. Enquanto entalhava sua perna de faia e manquejava apoiado numa muleta, ele pegou uma gonorreia particularmente virulenta de uma garota negra que assobiou para ele debaixo de uma pilha de madeira e cobrou-lhe dez centavos. Quando colocou a perna nova e dolorosamente veio a saber da sua condição, mancou durante dias à procura da garota. Contou aos companheiros de enfermaria o que iria fazer com ela quando a encontrasse. Planejava cortar suas orelhas e o nariz e conseguir seu dinheiro de volta. Entalhando na sua perna de pau, mostrava aos amigos como a cortaria. “Quando eu acabar com ela, sua cara vai ficar muito engraçada”, disse. “Vou deixar aquela puta de tal jeito que nem um índio bêbado vai querer saber dela.” O alvo do seu amor deve ter sentido suas intenções, pois ele nunca a encontrou. Quando Cyrus foi liberado do hospital e do Exército, sua gonorreia tinha secado. Quando ele voltou para Connecticut, só havia sobrado um pouco dela para a sua mulher.
A sra. Trask era uma mulher pálida e introvertida. Nenhum calor do sol chegava a avermelhar suas faces e nenhum riso aberto levantava os cantos de sua boca. Usava a religião como uma terapia para os males do mundo e de si mesma e adaptava a religião para que se conformasse aos seus próprios males. Quando descobriu que a teosofia que aperfeiçoara para a comunicação com um marido morto não era mais necessária, ela procurou a sua volta uma nova infelicidade. Sua busca foi logo recompensada pela infecção que Cyrus trouxe da guerra para casa. E, assim que se deu conta do seu mal, ela arquitetou uma nova teologia. Seu deus da comunicação tornou-se deus da vingança — para ela a divindade mais satisfatória que tramara até agora — e, como acabou sendo o caso, a última. Era muito fácil para ela atribuir sua doença a certos sonhos que tivera enquanto o marido esteve fora. Mas a doença não era punição suficiente para seus devaneios noturnos. Seu novo deus era um mestre em punição. Exigia dela um sacrifício. Ela buscou em sua mente alguma humildade egoísta adequada e quase feliz chegou ao sacrifício — de si mesma. Levou duas semanas para escrever sua última carta com revisões e correções de ortografia. Nela, confessava crimes que não podia ter cometido e admitia faltas muito além da sua capacidade. E então, vestida numa mortalha que fizera em segredo, saiu numa noite de luar e afogou-se num tanque tão raso que teve de ficar de joelhos na lama e prender a cabeça debaixo da água. Isso exigiu grande força de vontade. Quando a cálida inconsciência finalmente se apossou dela, ficou pensando com alguma irritação como sua fina mortalha branca estaria suja de lama quando a retirassem do lago na manhã. E foi o que aconteceu.
Cyrus Trask pranteou a mulher com um barril de uísque e três velhos amigos do Exército que tinham passado para visitá-lo a caminho de casa no Maine. O bebê Adam chorou muito no começo do velório, pois os pranteadores, sem entender nada de bebês, tinham se esquecido de alimentá-lo. Cyrus logo resolveu o problema. Ensopou um trapo com uísque e deu ao bebê para chupar e, depois de três ou quatro sugadas, o jovem Adam adormeceu. Várias vezes durante o velório ele acordou, queixou-se, e ganhou o trapo embebido de novo e voltou a dormir. O bebê ficou bêbado durante dois dias e meio. O que quer que possa ter afetado o seu cérebro em formação, acabou sendo benéfico para o seu metabolismo: a partir daqueles dois dias e meio, ele ganhou uma saúde de ferro. E, quando ao fim de três dias seu pai finalmente saiu e comprou uma cabra, Adam bebeu o leite vorazmente, vomitou, bebeu mais e seguiu em frente. Seu pai não achou a reação alarmante, pois estava fazendo a mesma coisa.
Dentro de um mês, a escolha de Cyrus Trask recaiu sobre a filha de dezessete anos de um fazendeiro vizinho. A corte foi rápida e realista. Não havia dúvidas na cabeça de ninguém quanto às suas intenções. Eram honradas e sensatas. O pai dela incentivou o namoro. Ele tinha duas filhas mais moças e Alice, a mais velha, estava com dezessete anos. Esta era a sua primeira proposta de casamento.
Cyrus queria uma mulher para cuidar de Adam. Precisava de alguém para tomar conta da casa e cozinhar, e uma empregada custava dinheiro. Era um homem vigoroso e precisava do corpo de uma mulher, e isso também custava dinheiro — a não ser que se fosse casado com o corpo. Em duas semanas Cyrus a cortejou, desposou, levou para a cama e emprenhou. Seus vizinhos não acharam a ação apressada. Era normal naquela época um homem ter três ou quatro mulheres num tempo de vida normal.
Alice Trask tinha inúmeras qualidades admiráveis. Lavava e limpava profundamente todos os cantos da casa. Não era muito bonita, por isso não havia necessidade de vigiá-la. Seus olhos eram pálidos, sua pele amarelada e os dentes irregulares, mas era extremamente saudável e nunca se queixou durante a gravidez. Se gostava ou não de crianças, ninguém jamais chegou a saber. Não lhe perguntaram, e ela nunca dizia nada a não ser que perguntassem. Do ponto de vista de Cyrus essa era possivelmente a maior de suas virtudes. Nunca dava nenhuma opinião ou declaração, e quando um homem falava ela dava a impressão de estar ouvindo enquanto continuava executando as tarefas da casa.
A juventude, a inexperiência e a taciturnidade de Alice Trask transformaram-se todas em trunfos para Cyrus. Enquanto continuava a gerir a sua fazenda como todas as fazendas eram geridas na vizinhança, ele dedicou-se a uma nova carreira — a do velho soldado. E aquela energia que o fizera impetuoso agora o fazia reflexivo. Ninguém fora do Departamento de Guerra conhecia a qualidade e a duração do seu serviço. Sua perna de pau era ao mesmo tempo um certificado de sua atuação como soldado e uma garantia de que jamais a exerceria de novo. Timidamente, ele começou a contar a Alice as suas campanhas, mas à medida que sua técnica aumentava também aumentavam as suas batalhas. Logo no início ele sabia que estava mentindo, mas não demorou para que se convencesse de que cada uma de suas histórias era verdadeira. Antes de entrar no serviço militar, não se interessava muito por guerra; agora comprava todo livro sobre guerra, lia toda notícia, assinava os jornais de Nova York, estudava mapas. Seu conhecimento de geografia era parco e sua informação sobre os combates nula; agora ele se tornava uma autoridade. Não só conhecia as batalhas, os movimentos, as campanhas, mas também as unidades envolvidas, detalhadas até os regimentos e os seus coronéis e suas origens. E ao contar tudo aquilo ficou convencido de que havia estado lá.
Tudo isso teve um desenvolvimento gradual e aconteceu enquanto Adam chegava à meninice e o seu jovem meio-irmão logo atrás dele. Adam e o pequeno Charles ficavam sentados, guardando silêncio e respeito enquanto seu pai explicava como cada general pensava e planejava e onde haviam cometido seus erros e o que deveriam ter feito. E então — ele sabia das coisas naquela ocasião — dissera a Grant e a McClellan onde estavam errados e implorara que levassem em conta a sua análise da situação. Invariavelmente recusavam seu conselho e só depois ficava provado que ele estava certo.
Havia uma coisa que Cyrus não fazia, e talvez fosse esperto da sua parte. Nunca se promoveu sequer a oficial subalterno. Começou como soldado Trask e como soldado Trask ficou. No relato geral, ficou sendo ao mesmo tempo o mais móvel e ubíquo soldado na história da guerra. Era necessário que estivesse em pelo menos quatro lugares ao mesmo tempo. Mas, talvez instintivamente, não contasse estas histórias próximas umas das outras. Alice e os meninos tinham uma imagem completa dele: um soldado raso, orgulhoso da sua condição, que não só conseguiu estar presente onde toda ação espetacular e importante estivesse ocorrendo, como circulava livremente por entre as reuniões do estado-maior e apoiava ou reprovava as decisões dos generais.
A morte de Lincoln atingiu Cyrus na boca do estômago. Lembraria para sempre como se sentiu ao ouvir a notícia. E nunca era capaz de mencioná-la ou ouvi-la sem que as lágrimas rapidamente lhe brotassem dos olhos. Embora nunca chegasse a dizer, dava a impressão indestrutível de que o soldado Cyrus Trask era um dos amigos mais íntimos, calorosos e confiáveis de Lincoln. Quando o sr. Lincoln queria saber sobre o Exército, o verdadeiro Exército, não o das marionetes empertigadas de galões dourados, ele recorria ao soldado Trask. Como Cyrus conseguia transmitir isso sem realmente dizer, era um triunfo da insinuação. Ninguém podia chamá-lo de mentiroso. E isso principalmente porque a mentira estava em sua cabeça e qualquer verdade saída da sua boca tinha a cor da mentira.
Bem cedo começou a escrever cartas e depois artigos sobre a condução da guerra e suas conclusões eram inteligentes e convincentes. Na verdade, Cyrus Trask desenvolveu uma excelente mente militar. Suas críticas ao modo como a guerra fora conduzida e à persistente organização do Exército eram irresistivelmente penetrantes. Seus artigos em várias revistas chamaram a atenção. Suas cartas ao Departamento de Guerra, publicadas simultaneamente nos jornais, começaram a ter um efeito acentuado sobre as decisões do Exército. Talvez se o Grande Exército da República não tivesse assumido força política e direção, a sua voz não fosse ouvida tão claramente em Washington, mas o porta-voz de um bloco de quase um milhão de homens não deveria ser ignorado. E em questões militares Cyrus Trask transformou-se nessa voz. Acabou que era consultado em questões de organização do Exército, relacionamento entre oficiais, pessoal e equipamento. Seu conhecimento era visível a todos que o ouviam. Tinha talento para assuntos militares. Mais do que isso, foi um dos responsáveis pela organização do Grande Exército da República como uma força coesa e poderosa na vida nacional. Depois de várias funções não remuneradas nessa organização, ele assumiu uma secretaria com vencimentos que manteria para o resto da vida. Viajou de uma extremidade do país a outra, participando de convenções, encontros e acampamentos. Esta era a sua vida pública.
Sua vida privada também era marcada por sua nova profissão. Era um homem devotado. Organizou sua casa e sua fazenda em bases militares. Exigia e recebia relatórios sobre sua economia privada. É provável que Alice preferisse assim. Ela não era de falar. Um relatório conciso era mais fácil para ela. Ocupava-se com a criação dos meninos e em manter a casa limpa e as roupas lavadas. E também tinha de conservar suas energias, embora não mencionasse isso em nenhum de seus relatórios. Sem nenhum aviso sua energia a desertava e tinha de se sentar e esperar até que voltasse. À noite ficava empapada de suor. Sabia perfeitamente que o que tinha chamava-se tuberculose, teria sabido mesmo que não precisasse ser lembrada por uma tosse violenta e extenuante. E não sabia quanto tempo ia viver. Algumas pessoas definhavam durante alguns anos. Não havia nenhuma regra naquilo. Talvez não ousasse mencionar ao marido. Ele tinha aperfeiçoado um método para tratar das doenças que parecia uma punição. Uma dor de estômago era tratada com uma purgação tão violenta que era um milagre que alguém escapasse. Se mencionasse sua condição, Cyrus poderia ter encontrado um tratamento que a teria matado antes que a própria tuberculose o conseguisse. Além do mais, à medida que Cyrus se tornava mais militar, sua mulher aprendeu a única técnica pela qual um soldado consegue sobreviver. Nunca se fez notar, nunca falou a não ser que lhe dirigissem a palavra, fazia o que esperavam dela e nada mais, e não buscava nenhuma promoção. Tornou-se um soldado mais do que raso. Era muito mais fácil assim. Alice recolheu-se ao fundo de cena até que mal a conseguiam ver.
O foco se deslocou então para os meninos. Cyrus havia decidido que, embora o Exército não fosse perfeito, ainda era a única profissão honrada para um homem. Lamentava o fato de que não podia mais ser um soldado regular por causa da perna de pau, mas não conseguia imaginar qualquer carreira para os filhos exceto o Exército. Achava que um homem devia aprender a ser militar como soldado raso, como ele aprendera. Só assim saberia de tudo a partir da experiência, não por gráficos ou manuais. Ensinou-lhes o manejo das armas quando ainda mal conseguiam andar. Quando estavam na escola primária, os exercícios de ordem unida eram tão naturais quanto respirar e detestáveis como o diabo. Manteve-os na dureza dos exercícios, marcando o ritmo com uma vareta na perna de pau. Obrigava-os a caminhar quilômetros carregando mochilas cheias de pedras para fortalecer seus ombros. E trabalhava constantemente a pontaria dos meninos no quintal cheio de árvores que davam madeira e lenha atrás da casa.

John Steinbeck, em A leste do Éden

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