Eu
me senti quase feliz ao avistar a Ilha dos Frades. Uma felicidade que
talvez pudesse ter sido chamada de alívio, como aconteceria várias
outras vezes em minha vida. Por causa da beleza da ilha, fiquei
impressionada com as cores, com o ar, com as novas sensações, com a
esperança de tudo nem ser tão ruim assim. Ao subir as escadas do
porão e ver primeiro o céu azul, depois a luz do sol quase me
cegando, fazendo com que os outros sentidos ficassem mais atentos.
Tive vontade de nascer de novo naquele lugar e ter comigo os amigos
de Uidá. Havia um murmúrio do mar, um cantaréu de passarinhos,
homens gritando numa língua estranha e melodiosa. Nascer de novo e
deixar na vida passada o riozinho de sangue do Kokumo e da minha mãe,
os meus olhos nos olhos cegos da Taiwo, o sono da minha avó. O mar
era azul e nos levava tranquilos até uma ilha que, de longe e de
cima do navio, não parecia ter nada além de árvores e da pequena
faixa de areia branca. Algumas pessoas festejaram, deslumbradas,
esquecendo-se de que iam virar carneiros, mesmo que fossem carneiros
do paraíso. Eu tentava imaginar o que o Akin diria se eu contasse
sobre aquele lugar ou, melhor ainda, se ele visse tal lugar.
Desembarcamos do mesmo jeito que subimos a bordo, mas mandaram os
homens na frente. Alguns saudaram a terra, saudaram a areia, batendo
com a testa no chão. Os muçurumins pareciam não saber para que
lado se virar e rezar, e demoraram olhando o céu até se decidirem,
provavelmente baseados na posição do sol.
O
sol estava quente e em pouco tempo já ardia na pele nua e acostumada
à escuridão do navio, mas que ao mesmo tempo era refrescada pelo
que parecia o vento harmatã, em África. Procurei o branco
que queria a mim e à Taiwo como presente, mas não o encontrei, pois
devia ter desembarcado assim que chegamos. Para falar a verdade, acho
que fiquei feliz por ele não me querer mais, porque assim podia
ficar na ilha, junto com os outros. A Tanisha também estava feliz e
me abraçou. Da praia, o Amari e o Daren acenaram para ela, que
agradeceu por estarem todos vivos. Nós não víamos a hora de
desembarcar também, mas, disseram que antes teríamos que esperar um
padre que viria nos batizar, para que não pisássemos em terras do
Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já
tinha sido batizada em África, já tinha recebido um nome e não
queria trocá-lo, como tinham feito com os homens. Em terras do
Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como
louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois
tinha ouvido os conselhos da minha avó. Ela tinha dito que seria
através do meu nome que meus voduns iam me proteger, e que também
era através do meu nome que eu estaria sempre ligada à Taiwo,
podendo então ficar com a metade dela na alma que nos pertencia.
O
escaler que carregava o padre já estava se aproximando do navio,
enquanto os guardas distribuíam alguns panos entre nós, para que
não descêssemos nuas à terra, como também fizeram com os homens
na praia. Amarrei meu pano em volta do pescoço, como a minha avó
fazia, e saí correndo pelo meio dos guardas. Antes que algum deles
conseguisse me deter, pulei no mar. A água estava quente, mais
quente que em Uidá, e eu não sabia nadar direito. Então me lembrei
de Iemanjá e pedi que ela me protegesse, que me levasse até a
terra. Um dos guardas deu um tiro, mas logo ouvi gritarem com ele,
provavelmente para não perderem uma peça, já que eu não tinha
como fugir a não ser para a ilha, onde outros já me esperavam. Ir
para a ilha e fugir do padre era exatamente o que eu queria,
desembarcar usando o meu nome, o nome que a minha avó e a minha mãe
tinham me dado e com o qual me apresentaram aos orixás e aos voduns.
Quando
cheguei à ilha, sentei-me na areia e fiquei esperando, nem sei bem o
quê. Um homem me chamou de selvagem em iorubá, e disse para eu
ficar quieta, pois minha vida não valia quase nada. Aproveitei para
pegar uma concha, desfiar algumas linhas do pano que tinham me dado,
amarrar com elas a concha e pendurar no pescoço, onde ficaria
representando a Taiwo enquanto eu não mandasse entalhar uma figura,
como tinha que ser. Eu estava cansada, tinha percorrido uma boa
distância do navio até a praia sem saber nadar direito, e fiquei
feliz quando vi que o padre, ao deixar o navio, entrou no escaler e
tomou a direção contrária à da ilha. A direção na qual eu vi,
ao longe, algumas construções brilhando à luz do sol,
equilibrando-se sobre montanhas, uma cidade que parecia ser muito
maior que Uidá e Savalu juntas. Queria ter ficado olhando para ela,
mas logo as outras mulheres chegaram à praia; fui amarrada junto com
elas e conduzida por um caminho estreito entre muitas árvores,
coqueiros e pássaros. Puxei o colar da Taiwo para fora da roupa para
que ela também visse como tudo era bonito, e nos deixaram em um
barracão que se erguia em imensa clareira, ao lado de mais duas
construções, quase de igual tamanho. O lugar era limpo, com paredes
de barro que subiam até quase o teto de sapé, deixando um vão por
onde entrava uma claridade bonita e o ar fresco, muito diferente do
que estávamos acostumados no navio. Ao entrar, todos se benzeram,
agradecendo por terem chegado vivos. Eu também agradeci,
principalmente aos espíritos dos pássaros e das cobras, que eu
sabia serem os preferidos da minha avó.
Pensei
que se aquela vida fosse a vida que carneiro de gente levava, era o
que eu queria ter sido desde sempre, para sempre, porque os dias
foram bons e até passaram mais rápido do que eu desejava. Éramos
vigiados, mas não muito, porque dali não havia para onde ir, e nem
queríamos. Apesar de não terem desamarrado os homens, para
dificultar alguma tentativa de fuga, podíamos passear pela ilha,
nadar, cozinhar e comer bananas e cocos que nasciam por todos os
lados. Quando começava a escurecer, tínhamos que ir para o
barracão, mas durante o dia éramos livres para fazer quase tudo que
quiséssemos. No barracão, até certa hora, podia haver canto e
dança, e alguns instrumentos foram feitos com o que achávamos nas
andanças durante o dia e levávamos escondido por baixo dos panos.
Pedaços de árvore, cipós, areia, conchas, folhas, pedras, tudo o
que pudesse fazer barulho. Aprendemos também as primeiras palavras
em português, uma língua que desde o início me pareceu uma música
suave, com as palavras cantadas e muito bonitas. Todos os guardas que
nos vigiavam falavam português e uma ou outra palavra nas nossas
línguas, e um deles disse que não era para nos acostumarmos, porque
só ficaríamos na ilha até terem certeza de que não estávamos
doentes, e também para melhorarmos um pouco a aparência. Por causa
disso, gostavam que tomássemos sol e caminhássemos, nos alimentavam
bem e ainda podíamos comer tudo o que encontrássemos pela ilha.
Um
dia nos fizeram cortar os cabelos uns dos outros, nos deram roupas
limpas e disseram que o tempo de vadiagem tinha terminado. Em barcos
separados para os que tinham e os que não tinham marcas de ferro,
fomos levados para a cidade que víamos ao longe e que parecia ser
muito bonita, a que ficava em cima do morro e da qual desde o início
achei que fosse gostar bastante. Cruzando a baía, olhei uma última
vez para a ilha e vi um navio grande ancorando, provavelmente com
outros carneiros, que ocupariam os nossos lugares.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
Nenhum comentário:
Postar um comentário