Soneto Quixotesco

Uma espada qualquer, de qualquer aço,
Um cavalo de flanco palpitante,
Fortuna incerta, divagar constante,
Sereno o rosto, sempre altivo o braço.

No coração, em mui secreto espaço,
A figura de Dora, tão distante,
Mas tão perto, contudo, e tão reinante,
Que a ela se dedique o menor passo.

Desfeito o agravo, conjurado o mal,
Novo caminho, que neste exercício
Nenhum descanso cabe. E que afinal,

Por luta valerosa ou alto feito,
Eu ganhe reino e Dora, mas no peito
Morem saudades do passado ofício.

José Paulo Paes, em Poesia completa

Coerência

Coerência: o Brasil acabou com a mata atlântica e está destruindo cuidadosamente a floresta amazônica porque vive na lei da selva.

Millôr Fernandes, em A bíblia do caos

O confiteor do artista


Como são prementes os dias de outono! Ah! Prementes a ponto de machucar! Pois há certas sensações deliciosas cuja indefinição não exclui a intensidade; e não há nada mais pungente que a ponta do Infinito.
Que delícia indizível ter o olhar disperso na imensidão do céu e do mar! Solidão, silêncio, inocência incomparável do azul! A vela de uma pequena embarcação que vibra no horizonte, e que pelo seu tamanho diminuto e isolamento imita minha existência irremediável, melodia monótona do marulho; todas essas coisas pensam através de mim, ou eu penso através delas (pois, na desmesura do devaneio, o eu se perde depressa!); essas coisas pensam, eu digo, mas musicalmente e de forma pitoresca, sem argúcias, sem silogismos, sem deduções.
Em todo o caso, esses pensamentos, saiam eles de mim ou se lancem das coisas, cedo se tornam intensos. A energia que há na volúpia cria um mal-estar e um suspense positivos. Meus nervos retesados não proporcionam senão sensações gritantes e dolorosas.
E eis que a vastidão do céu me oprime, sua translucidez me exaspera. A falta de sensibilidade do mar, o caráter imutável do espetáculo me revoltam... Ah! Deve-se sofrer eternamente, ou eternamente fugir do belo? Natureza, feiticeira sem piedade, rival sempre vitoriosa, larga-me! Chega de provocar os meus desejos e o meu orgulho! O estudo do belo é um duelo no qual o artista grita de susto antes de ser vencido.

Charles Baudelaire, em O spleen de Paris – Pequenos poemas em prosa

Final de conferência

O Doutor Dogmático ajeitou os nasóculos. E decretou: “Meus senhores e minhas senhoras, ilustrados agentes da Censura e demais entidades aqui representadas — como acabei de vos provar, a fantasia está morta.”
E fez um gesto definitivo.
Porém com tamanha infelicidade o fez que, da ponta de cada dedo espetado no silêncio do ar poluído, brotaram-lhe inesperadamente flores súbitas. E nenhuma parecia deste mundo.
(Faltam pormenores.)

Mário Quintana, em Caderno H

AS RÃS | Drama em nove atos


Ato VII

No telão do fundo do palco, a imagem muda constantemente. Ora uma rua movimentada, ora uma feira lotada, ora um parque onde uns praticam tai chi, outros passeiam com gaiolas de passarinho, outros tocam erhu… a alternância de imagens indica os lugares por onde ela passa na fuga.

Com o bebê no colo, Chen Sobrancelha corre enquanto fala frases desconexas sobre a criança.

CHEN S. Meu querido bebê… Finalmente a mamãe te achou… A mamãe não vai te largar nunca mais…

Leoazinha, Girino e outros estão atrás dela.

LEOAZINHA Jinwa… meu filho…

No palco, às vezes Sobrancelha corre sozinha, enquanto olha para trás, gritando, de vez em quando, para as pessoas na rua: “Ajudem-me, ajudem meu filho”.

Às vezes a fugitiva e os perseguidores aparecem ao mesmo tempo. Sobrancelha pede socorro aos transeuntes: “Ajudem-nos!”. Leoazinha grita para as pessoas na frente: “Parem ela! Parem essa ladra que roubou meu filho! Parem essa maluca…”.

Chen Sobrancelha cai no chão, levanta-se, cai de novo e levanta-se novamente.

Desde que a cortina se abre até o momento em que se fecha, o som rápido e agudo de um violino da Ópera de Pequim se mistura ao choro da criança.

Cortina.

Mo Yan, em As rãs

Minha alegria

Minha alegria permanece eternidade soterrada
e só sobe para a superfície
através dos tubos alquímicos
e não da causalidade natural.
ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de incêndio.

Waly Salomão, em Antologia Poética

A Contadora de Filmes | [43]


Creio que sou a única mulher que vive sozinha num povoado fantasma. Aqui, faço as vezes de guia. Ofereço folhetos que falam da história do salitre, ofereço fotos antigas, revistas Écran, bonecas de pano, caminhõezinhos de lata, coisas que encontro quando percorro as casas abandonadas.
Algumas pessoas que vêm ver os restos deste salitral abandonado me perguntam, atônitas, como pudemos viver nesses descampados.
Acham que a paisagem é pouco menos que a de uma província do inferno.
E eu respondo, orgulhosa, que para nós era o paraíso. Conto a vida que levávamos no povoado. Aqui ninguém morria de fome. Aqui um ajudava o outro. De noite podíamos dormir com a porta aberta que não acontecia nada. Os visitantes me escutam incrédulos. Alguns, com uma certa pena. Não faltam os que me chamam de saudosista. De romântica. De folhetinesca.
Muitos acham que sou louca.
Não me importa. Pelo contrário: quando estou mais inspirada, faço com que venham até esta casa – ou o que restou dela –, que é a casa onde morei minha vida inteira. E aqui conto para eles a história da menina contadora de filmes. E me escutam assombrados. Principalmente os jovens; no mundo tecnológico de agora, uma contadora de histórias é, para eles, inacreditável.
Ao entardecer, quando eles se retiram em seus veículos para as suas cidades, volto a ser o que sou: o fantasma de uma aldeia abandonada.
Ou serei uma estátua de sal?
Então, subo até a torre da igreja para contemplar o horizonte. Cada crepúsculo é como a panorâmica final de um velho filme, um filme em tecnicolor e cinemascope – e o ruído do vento batendo nas chapas de zinco é a trilha sonora. Um filme repetido dia após dia. Às vezes triste, às vezes menos triste.
Mas o final é sempre o mesmo:
Ao fundo dessa grande tela entardecida vejo meu pai se afastar em sua poltrona de rodas, vejo meus irmãos se afastarem, um a um, e minha mãe com seus lenços de seda ao vento. Vejo-os irem como se fossem os habitantes da Mina, vejo-os se dissiparem no horizonte como se fossem uma miragem, enquanto a música vai se apagando pouco a pouco e em cima de suas silhuetas emerge rotunda, fatal, a palavra que ninguém na vida quer ler:
[FIM]

Hernán Rivera Letelier, em A Contadora de Filmes

Paga

Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens que de um terceiro andar.

Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas

Como morrem os pobres



No ano de 1929, passei várias semanas no Hôpital x, no décimo quinto arrondissement de Paris. Os funcionários me submeteram ao costumeiro interrogatório na recepção, e fiquei respondendo a perguntas por mais de vinte minutos antes de me admitirem. Quem já teve de preencher formulários num país latino conhece o tipo de perguntas a que me refiro. Por alguns dias fui incapaz de converter Réaumur em Fahrenheit, mas sabia que minha temperatura estava em torno de quarenta graus e, ao cabo da entrevista, tive alguma dificuldade para ficar de pé. Atrás de mim, um pequeno grupo de pacientes resignados, segurando embrulhos feitos de lenços de bolso coloridos, esperava a vez de ser interrogado.
Após o interrogatório veio o banho — aparentemente uma rotina obrigatória para todos os recém-chegados, como na prisão ou no asilo de pobres. Levaram minhas roupas e, depois de ficar sentado tiritando de frio por alguns minutos em cinco dedos de água morna, deram-me um camisão de dormir de algodão e um roupão de flanela azul, curto — nada de chinelos, disseram que não tinham um bastante grande que me servisse —, e me conduziram para fora do hospital. Era uma noite de fevereiro, e eu estava com pneumonia. A ala para onde íamos ficava a uns duzentos metros e parecia que, para chegar lá, tínhamos de atravessar o terreno do hospital. Alguém tropeçou à minha frente com uma lanterna. Os cascalhos do caminho estavam gélidos sob os pés, e o vento agitava o camisão em torno das panturrilhas descobertas. Quando chegamos à ala, dei-me conta de uma estranha sensação de familiaridade cuja origem só consegui definir mais tarde naquela noite. Era um quarto comprido, de pé-direito bastante baixo, mal iluminado, cheio de vozes murmurantes e com três fileiras de camas surpreendentemente próximas umas das outras. Quando estava deitado, vi numa cama quase em frente um homenzinho ruivo de ombros caídos sentado seminu enquanto um médico e um estudante lhe faziam uma estranha operação. Primeiro o médico tirou da sacola preta uma dúzia de copos pequenos, iguais a copos de vinho, depois o estudante acendeu um fósforo dentro de cada copo para exaurir o ar, em seguida pôs o copo nas costas ou no peito do homem, e o vácuo extraiu uma enorme bolha amarela. Só depois de alguns momentos percebi o que faziam com o homem. Era algo chamado sangria por meio de ventosas, um tratamento sobre o qual lemos em antigos manuais de medicina, mas que até então eu imaginava vagamente ser dessas coisas que se fazem com cavalos.
O ar frio de fora provavelmente baixara minha temperatura, e eu observava aquele tratamento bárbaro com distanciamento e até alguma dose de diversão. Dali a pouco, porém, o médico e o estudante vieram até minha cama, puseram-me na posição vertical e, sem uma palavra, começaram a aplicar em mim o mesmo conjunto de copos, que de modo algum haviam sido esterilizados. Uns poucos protestos fracos que emiti não provocaram mais reações do que provocariam se eu fosse um animal. Fiquei muitíssimo impressionado com a maneira impessoal como os dois homens me tratavam. Nunca estivera na ala pública de um hospital, era minha primeira experiência com médicos que lidam com pessoas sem falar com elas ou, num sentido humano, sem reparar nelas. No meu caso, puseram apenas seis copos, mas depois disso sacrificaram as bolhas e voltaram a utilizar os copos. Cada copo agora extraía cerca de uma colher de sobremesa de sangue preto. Depois de me deitar outra vez, humilhado, desgostoso e assustado com o que haviam feito comigo, pensei que então ao menos me deixariam em paz. Mas não, nem um pouco. Estavam prontos para outro tratamento, o cataplasma de mostarda, aparentemente mais uma rotina igual ao banho quente. Duas enfermeiras desmazeladas, que já tinham preparado o cataplasma, colocaram-no às pressas em volta do meu peito como uma camisa-de-força bem apertada, enquanto uns homens de camisa e calça que andavam a esmo pela ala começavam a se juntar em volta da minha cama com sorrisos meio complacentes. Soube mais tarde que observar a aplicação do cataplasma de mostarda num paciente era o passatempo predileto na ala. A aplicação desse tipo de coisa em geral leva uns quinze minutos e decerto é engraçada quando não se é o receptor. Nos primeiros cinco minutos, a dor é forte, mas acreditamos ser capazes de suportá-la. Durante os cinco minutos seguintes, tal crença desaparece, no entanto o cataplasma está firmado muito bem atrás e não podemos tirá-lo. Esta é a etapa de que os espectadores gostam mais. Durante os últimos cinco minutos, notei que sobrevinha uma espécie de dormência. Depois de o cataplasma ter sido removido, jogaram um travesseiro cheio de gelo e à prova d’água debaixo da minha cabeça e me deixaram sozinho. Não dormi, e ao que me consta aquela foi a primeira noite na minha vida — quero dizer, passada numa cama — em que não dormi nada, nem um minuto sequer.
Durante minhas primeiras horas no Hôpital x, fui submetido a uma série de tratamentos diferentes e contraditórios, o que era enganoso, pois em geral recebíamos pouquíssimos tratamentos, bons ou ruins, a menos que estivéssemos doentes de uma forma interessante e instrutiva. Às cinco da manhã, as enfermeiras apareciam, acordavam os pacientes e tiravam a temperatura, mas não os lavavam. Quando estamos bem, nós nos lavamos, do contrário dependemos da bondade de algum paciente que possa andar. Também de modo geral eram os pacientes que carregavam os vasos e a comadre nojenta, apelidada de la casserole. Às oito horas entregavam o café-da-manhã, chamado la soupe, como no Exército. Era sopa também, uma sopa rala de verduras com pedaços viscosos de pão flutuando. Mais tarde, o médico alto, solene e de barba preta dava um giro, com um interne e um bando de estudantes logo atrás, mas havia uns sessenta de nós na ala e, é claro, ele também tinha de visitar outras alas. Havia muitas camas pelas quais ele passava sem se deter dia após dia, às vezes seguido de gritos de súplica. Por outro lado, quem estava com alguma doença de que os estudantes queriam tomar conhecimento recebia muita atenção. No meu caso mesmo, um exemplo excepcionalmente admirável de ronco bronquial, às vezes uma dúzia de estudantes formava fila para ouvir meu peito. Era uma sensação esquisita — quero dizer, esquisita por causa do intenso interesse dos estudantes em aprender o trabalho, bem como por uma aparente falta de percepção de que os pacientes eram seres humanos. É estranho contar, mas de quando em quando, ao chegar a vez de um estudante se aproximar para nos manipular, ele tremia de emoção, como um garoto que afinal toca uma maquinaria cara. E então, ouvido após ouvido — ouvidos de moços, moças, negros — pressionava nossas costas, dedos em revezamento batiam solene mas desajeitadamente, e de nenhum deles partia uma palavra qualquer ou um olhar que mirasse nosso rosto. Como pacientes não pagantes em camisão de uniforme, éramos acima de tudo um espécime, uma coisa de que não me ressentia, mas a que nunca me acostumei direito.
Depois de alguns dias, melhorei o suficiente para me soerguer e observar os pacientes circundantes. No quarto abafado, com as camas estreitas tão juntas umas das outras que podíamos tocar com facilidade a mão do vizinho, havia todo tipo de doenças, com exceção, creio, de casos seriamente infecciosos. Meu vizinho da direita era um sapateiro pequeno e ruivo com uma perna mais curta do que a outra e que costumava anunciar a morte de qualquer paciente (isso aconteceu várias vezes, e meu vizinho era sempre o primeiro a saber) ao assobiar para mim e exclamar “Numéro 43!” (ou o que fosse), agitando os braços acima da cabeça. Aquele homem não estava muito mal, mas na maior parte das outras camas, do meu ponto de vista, alguma tragédia miserável ou algum horror manifesto estava em andamento. Na cama cujo pé se voltava para o pé da minha, esteve deitado, até morrer (não o vi morrer, transferiram-no para outra cama), um homenzinho encarquilhado que sofria de não sei qual doença, mas alguma coisa que lhe deixava o corpo tão intensamente sensível que qualquer movimento de um lado para o outro, às vezes até o peso das roupas de cama, fazia-o gritar de dor. O pior sofrimento era quando urinava, o que fazia com grande dificuldade. Uma enfermeira lhe trazia o vaso e ficava parada ao lado da cama durante muito tempo, a assobiar, como dizem que cavalariços fazem para os cavalos, até que por fim, com um guincho agonizado de “Je pisse!”, ele começava. Na cama ao lado dele, o homem ruivo que vi submeterem à sangria por meio de ventosas costumava expelir, tossindo, um muco com vestígios de sangue, a qualquer hora. Meu vizinho da esquerda era um jovem alto e flácido em cujas costas costumavam de tempos em tempos inserir um tubo pelo qual retiravam quantidades espantosas de um líquido espumoso de alguma parte do corpo. Na cama que vinha logo após essa, um veterano da guerra de 1870 agonizava, um velho simpático com uma pêra branca no queixo, em torno de cuja cama, a qualquer hora em que se permitissem visitas, quatro parentes velhas vestidas de preto ficavam sentadas como gralhas, sem dúvida fazendo planos para alguma herança miserável. Na cama em frente à minha, na fileira mais afastada, estava um velho careca de bigodes curvados, rosto e corpo extremamente inchados, que sofria de alguma doença que o fazia urinar quase sem cessar. Um enorme receptáculo de vidro ficava sempre ao lado da cama. Um dia a esposa e a filha foram visitá-lo. Ao vê-las, o velho de rosto intumescido se iluminou com um sorriso de doçura surpreendente, e quando a filha, uma jovem bonita de uns vinte anos, se aproximou da cama eu percebi que a mão dele se mexia muito devagar sob a coberta. Eu podia antecipar o gesto que estava por vir — a moça ajoelhando-se ao lado da cama, a mão do velho colocada na cabeça dela numa bênção de agonizante. Mas não, ele apenas lhe entregou o vaso, que ela pegou de imediato e esvaziou no receptáculo.
Cerca de dez camas distantes da minha, estava o numéro 57 — acho que era esse o número dele —, um caso de cirrose. Todo mundo na ala o conhecia de vista, porque às vezes ele era objeto de palestra médica. Duas tardes por semana, o médico alto e circunspecto fazia uma palestra na ala para um grupo de estudantes, e em mais de uma ocasião o velho numéro 57 era posto numa espécie de carrinho no meio da ala, onde o médico lhe baixava o camisão, expandia com os dedos uma enorme protuberância flácida na barriga do velho — acho que o fígado doente — e explicava, solene, que aquela era uma doença causada pelo alcoolismo, mais comum em países em que se tem o hábito de tomar vinho. Como sempre, não falou com o paciente nem lhe dirigiu um sorriso, um aceno ou qualquer tipo de consideração. Enquanto falava, bastante circunspecto e empertigado, segurava o corpo enfraquecido com as duas mãos, às vezes girava-o de um lado para o outro de leve, na mesma postura de uma mulher que segura um pau de macarrão. Não que esse tipo de coisa incomodasse o numéro 57. Decerto ele era um velho recluso no hospital, um exemplo constante em palestras, seu fígado há muito reduzido ao interior de um frasco em algum museu de patologia. Totalmente desinteressado do que se dizia a seu respeito, fixava os olhos incolores no vazio, enquanto o médico o expunha como uma porcelana de antigualha. Era um homem de uns sessenta anos, espantosamente mirrado. O rosto, pálido como velino, murchara tanto que não parecia maior do que o rosto de uma boneca.
Numa manhã, meu vizinho sapateiro me acordou com safanões em meu travesseiro antes da chegada das enfermeiras. “Numéro 57!”, disse, agitando os braços acima da cabeça. Havia uma luz na ala, com a qual dava para enxergar. Pude ver o numéro 57 encolhido de lado, o rosto projetando-se para fora cama, voltado para mim. Morrera durante a noite, ninguém sabia quando. Ao chegarem, as enfermeiras receberam a notícia da morte com indiferença e começaram a trabalhar. Depois de muito tempo, uma hora ou mais, duas outras enfermeiras entraram marchando lado a lado como soldados, com um pesado som de tamancos, e embrulharam o cadáver nos lençóis, mas ele só foi removido mais tarde. Enquanto isso, sob uma luz mais forte, tive tempo para dar uma boa olhada no numéro 57. De fato, deitei-me de lado para observá-lo. Curiosamente, era o primeiro europeu morto que eu via. Vi homens mortos antes, mas sempre asiáticos e em geral pessoas que tiveram morte violenta. Os olhos do numéro 57 ainda estavam abertos, a boca também, o rosto pequeno contorcido numa expressão de agonia. O que mais me impressionou, porém, foi a brancura do rosto. Fora pálido antes, mas agora era pouco mais escuro do que os lençóis. Enquanto fitava o rosto miúdo e contorcido, ocorreu-me que aquele refugo repugnante, à espera de ser retirado e descarregado numa laje na sala de dissecção, era um exemplo de morte “natural”, uma das coisas por que rezamos na ladainha. Aí está, então, pensei, é isto que o espera daqui a vinte, trinta, quarenta anos: é assim que morrem os que têm sorte, os que vivem para ser velhos. Queremos viver, claro, na verdade só permanecemos vivos por medo da morte, mas penso agora, como pensava então, que é melhor morrer de forma violenta e não muito velho. As pessoas falam dos horrores da guerra, mas que arma o homem inventou que se assemelhe em crueldade a algumas das doenças mais comuns? Morte “natural”, quase por definição, significa algo lento, malcheiroso e doído. Mesmo nisso, tem importância se o fazemos em casa e não numa instituição pública. Aquele pobre velho infeliz que acabara de se apagar como um toco de vela não era nem importante o bastante para que alguém o velasse no leito de morte. Era só um número, depois uma “matéria” para os escalpelos dos estudantes. E a sórdida publicidade de morrer num lugar daquele! No Hôpital x as camas ficavam muito perto umas das outras e não havia biombos. Imagine, por exemplo, morrer como o homenzinho cuja cama por um tempo esteve encostada à extremidade da minha, o que gritava quando as cobertas lhe tocavam o corpo! Acho que “Je pisse!” foram suas últimas palavras registradas. Talvez os moribundos não se importem com essas coisas — esta ao menos seria a resposta comum: porém a cabeça dos moribundos é muitas vezes mais ou menos normal até cerca de um dia antes do fim.
Nas alas públicas de um hospital, vemos horrores que parece que não encontramos entre pessoas que morrem em sua própria casa, como se algumas doenças só acometessem pessoas com níveis de renda mais baixos. Mas é fato que em qualquer hospital inglês não veríamos algumas das coisas que vi no Hôpital x. Isso de pessoas morrerem como animais, por exemplo, sem a presença de ninguém, ninguém interessado, a morte passada despercebida até a manhã — isso aconteceu mais de uma vez. Com certeza não veríamos nada parecido na Inglaterra, e muito menos veríamos um cadáver deixado à vista dos outros pacientes. Lembro-me de que uma vez, num hospital rural na Inglaterra, um homem morreu enquanto tomávamos chá, e, embora fôssemos apenas seis na ala, as enfermeiras conseguiram se encarregar das coisas com tal habilidade que o homem morreu e o corpo foi removido sem nem sequer sabermos disso até o chá terminar. Uma coisa que talvez subestimemos na Inglaterra é a vantagem de termos um grande número de enfermeiras bem treinadas e rigidamente disciplinadas. Sem dúvida as enfermeiras inglesas são muito tolas, chegam a ler a sorte com folhas de chá, usar distintivos da bandeira nacional e expor fotografias da rainha no console da lareira, mas ao menos não nos deixam ficar sem banho e constipados numa cama por fazer, por pura preguiça. As enfermeiras do Hôpital x ainda tinham um quê de Mrs. Gamp (1), e mais tarde, nos hospitais militares da Espanha republicana, vi enfermeiras que mal sabiam tirar a temperatura. Na Inglaterra também não veríamos a sujeira que havia no Hôpital x. Mais tarde, quando já estava bom o suficiente para me lavar no banheiro, descobri que lá mantinham um enorme caixote onde jogavam restos de comida e curativos sujos da ala, e os lambris estavam infestados de insetos.
Quando me devolveram as roupas e minhas pernas se fortaleceram, fugi do Hôpital x, antes do tempo e sem esperar pela alta. Não foi o único hospital de que fugi, mas a escuridão e o vazio, seu cheiro nauseante e sobretudo alguma coisa em sua atmosfera mental se distinguem como excepcionais em minha recordação. Fui levado para lá porque era o hospital que pertencia a meu arrondissement, e só mais tarde soube que tinha má reputação. Uns dois anos depois, a célebre escroque Madame Hanaud, que adoeceu enquanto estava em prisão preventiva, foi levada ao Hôpital x e, após alguns dias, conseguiu escapar dos guardas, pegou um táxi e voltou para o presídio, explicando que ali se sentia mais confortável. Não tenho dúvida de que o Hôpital x era pouco representativo dos hospitais franceses mesmo naquela época. Mas os pacientes, quase todos trabalhadores, eram espantosamente conformados. Alguns pareciam achar as condições quase confortáveis, porque ao menos dois deles eram indigentes que se fingiam de doentes, acreditando que essa era uma boa maneira de passar o inverno. As enfermeiras cooperavam secretamente porque aquelas pessoas eram úteis para fazer biscates. A postura da maioria, porém, era: é claro que este lugar não presta, mas o que é que se pode esperar? Não lhes parecia estranho ser acordados às cinco e depois esperar três horas para começar o dia com uma sopa aguada, ou que as pessoas morressem sem ninguém ao lado da cama, ou mesmo que a possibilidade de obter assistência médica dependesse de conseguir chamar a atenção do médico quando ele passasse. De acordo com a tradição daquelas pessoas, hospitais eram assim. Quando estamos gravemente enfermos, e quando somos muito pobres para ser tratados em casa, precisamos ir para um hospital, e uma vez lá temos de suportar crueldades e desconforto, como no Exército. Mas além disso eu estava interessado em encontrar uma crença persistente em histórias antigas que quase já se perderam na memória da Inglaterra — histórias, por exemplo, de médicos que nos abriam por mera curiosidade ou por achar engraçado começar uma operação antes de estarmos devidamente “sob o efeito”. Há relatos sinistros sobre uma pequena sala de operações que estaria situada logo depois do banheiro. Diziam que gritos aflitivos vinham de lá. Nada vi que confirmasse essas histórias, e sem dúvida eram todas absurdas, embora tenha visto dois estudantes matarem um rapaz de dezesseis anos, ou quase matarem (parece que ele estava agonizando quando saí do hospital, mas é possível que tenha se recuperado mais tarde), num experimento travesso que provavelmente não poderiam ter tentado com um paciente pagante. As pessoas ainda se lembram de que em Londres se costumava acreditar que em alguns grandes hospitais pacientes eram eliminados para que se pudesse obter material de dissecção. Não ouvi contarem essa história no Hôpital x, contudo creio que alguns homens de lá a considerariam verossímil. Porque era um hospital em que não os métodos, talvez, mas algo da atmosfera do século xix conseguiu sobreviver, daí seu peculiar interesse.
Durante os últimos cinquenta anos, mais ou menos, houve uma grande mudança na relação entre médico e paciente. Quando examinamos qualquer literatura anterior à última metade do século XIX, verificamos que um hospital é visto popularmente como o mesmo que uma prisão, e uma prisão obsoleta e semelhante a uma masmorra. Um hospital é um lugar sujo, de tortura e morte, uma espécie de antecâmara do túmulo. Ninguém que não fosse mais ou menos indigente pensaria em procurar tratamento num lugar assim. Principalmente na primeira metade do século XIX, quando a ciência da medicina se tornou mais audaz do que antes sem por isso ter alcançado mais êxito, toda a atividade médica foi encarada com horror e temor pelas pessoas comuns. Acreditava-se que a cirurgia, em especial, não passava de uma forma particularmente medonha de sadismo; e a dissecção, possível apenas com a cooperação de ladrões de cadáveres, chegava a ser confundida com a necromancia. Podemos recolher do século xix uma vasta literatura de horror ligada a médicos e hospitais. Pensemos no pobre e velho Jorge III, na decrepitude, gritando por misericórdia ao ver os cirurgiões se aproximarem para “sangrá-lo até desmaiar”! Pensemos nas conversas de Bob Sawyer e Benjamin Allen, que sem dúvida dificilmente são paródias, nos hospitais ambulantes de campanha em La debâcle e Guerra e paz, ou na chocante descrição de uma amputação em Whitejacket, de Herman Melville! Mesmo os nomes dados a médicos na ficção inglesa do século XIX, Slasher, Carver, Sawyer, Fillgrave e assim por diante, e o apelido genérico “carniceiro”, são tão sinistros quanto cômicos. A tradição anticirurgia está talvez mais bem expressa no poema de Alfred Tennyson “The children’s hospital” [O hospital infantil], que é essencialmente um documento pré-clorofórmio, embora pareça ter sido escrito por volta de 1880. Além disso, há muito que dizer sobre o ponto de vista registrado por Tennyson. Quando pensamos no que poderia ter sido uma operação sem anestésico, o que sabidamente foi, é difícil não suspeitar dos motivos das pessoas que se incumbiam dessas coisas. Porque há que se reconhecer que esses horrores sanguinários que os estudantes aguardavam com tamanha ansiedade (“Um espetáculo magnífico quando Slasher o executa!”) eram mais ou menos inúteis: o paciente que não morria de choque em geral morria de gangrena, um resultado com que se contava. Mesmo hoje se encontram médicos cujos motivos são duvidosos. Qualquer um que tenha tido muitas doenças ou que tenha escutado conversas de estudantes de medicina saberá o que quero dizer. Mas os anestésicos foram um ponto fundamental, assim como os desinfetantes. Em lugar algum do mundo, provavelmente, veríamos hoje o tipo de cena descrito por Axel Munthe em The story of San Michele, em que o sinistro cirurgião de cartola e sobrecasaca, o peito da camisa engomada respingado de sangue e pus, talha paciente após paciente com a mesma faca e joga os membros cortados numa pilha ao lado da mesa. Além disso, a previdência social em parte aboliu a ideia de que um paciente da classe trabalhadora é um indigente que merece pouca consideração. Ainda neste século XX, era comum que pacientes “gratuitos” de hospitais grandes tivessem os dentes extraídos sem anestésico. Não pagam, por que lhes aplicar anestésico? — era essa a postura. Isso também mudou.
E no entanto todas as instituições sempre terão de carregar algumas reminiscências do passado. Uma sala de quartel ainda é assombrada pelo espectro de Rudyard Kipling, e é difícil entrar num asilo de pobres sem que Oliver Twist venha à lembrança. Os hospitais começaram como uma espécie de dependência separada para que leprosos e outros mais morressem, e continuaram como locais em que estudantes de medicina aprendiam o ofício com cadáveres de pessoas pobres. Ainda notamos um tênue indício de sua história na arquitetura caracteristicamente sombria. Eu estaria longe de me queixar do tratamento que recebi em qualquer hospital inglês, mas sei que um instinto forte aconselha as pessoas a, se possível, não entrar em hospitais, em especial em alas públicas. Qualquer que seja a posição legal, é indiscutível que temos menos controle sobre nosso próprio tratamento, menos certeza de que não estaremos sujeitos a experimentos frívolos, quando é um caso de “aceite a disciplicina ou caia fora”. E é uma grande coisa morrer em nossa própria cama, embora seja melhor ainda morrer de botas. Por maior que seja a gentileza e a eficiência, em toda morte em hospital haverá algum detalhe cruel e sórdido, algo talvez pequeno demais para ser contado, mas que deixa recordações terrivelmente dolorosas, que surgem da pressa, da aglomeração, da impessoalidade de um lugar em que todos os dias pessoas morrem entre estranhos.
O pavor de hospitais decerto ainda permanece entre os muito pobres e em todos nós só desapareceu há pouco tempo. É um canto escuro não longe da superfície de nossa mente. Disse antes que, ao entrar na ala no Hôpital x, fiquei ciente de uma estranha sensação de familiaridade. É que a cena fazia lembrar os hospitais malcheirosos e cheios de sofrimento do século xix, que nunca vi, mas que conhecia de tantas histórias. E alguma coisa, talvez o médico vestido de preto com sua maleta preta suja, ou talvez apenas o cheiro nauseante, fez o curioso truque de desenterrar de minha memória aquele poema de Tennyson, “The children’s hospital”, no qual não pensava há mais de vinte anos. Quando menino, uma enfermeira o leu em voz alta para mim; sua própria vida profissional talvez remontasse à época em que Tennyson escreveu o poema. Os horrores e os sofrimentos dos hospitais antigos eram para ela uma lembrança viva. Estremecemos juntos com o poema, e depois, aparentemente, eu o esqueci. Mesmo seu título talvez não me fizesse relembrar coisa alguma. Mas o primeiro vislumbre do quarto mal iluminado e murmurante, com as camas tão juntas umas das outras, de repente despertou a cadeia de pensamentos a que ele pertencia, e na noite seguinte me peguei recordando toda a história e a atmosfera do poema, e muitos versos inteiros.

Nota:
(1) Personagem de Martin Chuzzlewit, romance de Charles Dickens. (N. T.)

George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios

Acerca da guerra

Os maiores crimes que afligem a humanidade são cometidos sob pretexto de justiça. O maior dos crimes, pelo menos o mais destrutivo, e consequentemente o mais oposto à finalidade da natureza, é a guerra. E, no entanto, não há um agressor que não tinja essa malfeitoria com o pretexto de justiça.

Voltaire, em Tratado sobre a tolerância

Cansado até dos deuses que não são…

Cansado até dos deuses que não são…
Ideais, sonhos... Como o sol é real
E na objetiva coisa universal
Não há o meu coração…
Eu ergo a mão.

Olho-a de mim, e o que ela é não sou eu.
Entre mim e o que sou há a escuridão.
Mas o que são a isto a terra e o céu?

Houvesse ao menos, visto que a verdade
É falsa, qualquer coisa verdadeira
De outra maneira
Que a impossível certeza ou realidade.

Houvesse ao menos, som o sol do mundo,
Qualquer postiça realidade não
O eterno abismo sem fundo,
Crível talvez, mas tenho coração.

Mas não há nada, salvo tudo sem mim.
Crível por fora da razão, mas sem
Que a razão acordasse e visse bem;
Real com coração, inda que […]

Fernando Pessoa, em Poesias inéditas e poemas dramáticos

meia-noite. 16 de junho

Não volto às letras, que doem como uma catástrofe. Não escrevo mais. Não milito mais. Estou no meio da cena, entre quem adoro e quem me adora. Daqui do meio sinto cara afogueada, mão gelada, ardor dentro do gogó. A matilha de Londres caça minha maldade pueril, cândida sedução que dá e toma e então exige respeito, madame javali. Não suporto perfumes. Vasculho com o nariz o terno dele. Ar de Mia Farrow, translúcida. O horror dos perfumes, dos ciúmes e do sapato que era gêmea perfeita do ciúme negro brilhando no gogó. As noivas que preparei, amadas, brancas. Filhas do horror da noite, estalando de novas, tontas de buquês. Tão triste quando extermina, doce, insone, meu amor.

Ana Cristina Cesar, em Cenas de abril

1548 – Xaquixaguana

O verdugo

Enrolado em cordas e correntes, vem Carvajal dentro de uma cesta enorme que as mulas arrastam. Entre redemoinhos de pó e gritos de ódio, o guerreiro canta. Sua bronca voz atravessa o clamor dos insultos, alheia às patadas e aos golpes de quem ontem o aplaudia e hoje cospe-lhe na cara:

Que ventura!
Criança no berço
velho no berço!
Que ventura!

canta na cesta que o leva aos trambolhões. Quando as mulas chegam ao patíbulo, lá em cima, os soldados atiram Carvajal aos pés do verdugo. Brame a multidão enquanto o verdugo desembainha, lento, o alfanje.
Irmão Juan – pede Carvajal. – Já que somos do ofício, trate-me de alfaiate a alfaiate.
Juan Enríquez é o nome deste rapaz de rosto doce. Outro nome tinha em Sevilha, quando passeava pelo cais sonhando com ser verdugo do rei na América. Se comenta que ama o ofício porque mete medo e não há senhor principal nem grande guerreiro que não se afaste de seus passos pelas ruas. Também se diz que é um vingador afortunado. Pagam a ele para que ele mate; e não se enferruja sua arma, nem se apaga seu sorriso.

Ai avô!
Ai avô!,

cantarola Carvajal, em voz baixa e triste, porque bem agora deu para pensar em seu cavalo, Boscanillo, que também está velho e derrotado, e pensar em como se entendiam bem.
Juan Enríquez empunha a barba com a mão esquerda e com a direita corta-lhe o pescoço de um talho.
Debaixo do sol, explode uma ovação.
O verdugo exibe a cabeça de Carvajal, que até um instante atrás tinha oitenta e quatro anos e jamais tinha perdoado ninguém.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

A leste do Éden | 3


[ 2 ]

Quando uma criança descobre pela primeira vez o que os adultos realmente são — quando entra pela primeira vez na sua cabecinha honesta que os adultos não possuem inteligência divina, que seus julgamentos nem sempre são sábios, nem seu pensamento sincero, nem suas frases justas — seu mundo cai num pânico desolador. Os deuses tombaram e toda a segurança se foi. E há algo de certo em relação à queda dos deuses: eles não caem um pouco; eles despencam e se despedaçam ou mergulham fundo no esterco verde. É um trabalho tedioso reconstruí-los; nunca chegam a brilhar mais. E o mundo da criança nunca mais é o mesmo. É uma espécie de crescimento doloroso.
Adam descobriu a verdade do seu pai. Não que seu pai tenha mudado, mas uma nova qualidade foi percebida por Adam. Ele sempre detestara a disciplina, como todo animal normal, mas ela era verdadeira e inevitável como o sarampo, não era para ser negada ou amaldiçoada, apenas odiada. E um dia — foi muito rápido, quase como um estalo no cérebro — Adam percebeu que, para ele pelo menos, os métodos do pai não tinham referência a nada no mundo senão ao próprio pai. As técnicas e o treinamento não eram destinados de modo algum aos meninos, mas só a fazer de Cyrus um grande homem. E o mesmo estalo no cérebro disse a Adam que seu pai não era um grande homem, que ele era, na verdade, um homenzinho muito obstinado e concentrado, dotado de um ego imenso. Quem sabe o que causa isso — uma expressão no olhar, uma mentira descoberta, um momento de hesitação? —, e o deus despenca por inteiro na cabeça de uma criança.
O jovem Adam sempre foi um menino obediente. Algo nele o fazia evitar a violência, a contenda, as terríveis tensões abafadas que podem dilacerar uma casa. Contribuía para a paz que almejava não oferecendo qualquer violência, disputa, e para fazer isso precisava refugiar-se dentro de si, uma vez que existe um pouco de violência em todo mundo. Cobria sua vida com um véu de alheamento, enquanto por trás dos seus olhos quietos uma vida rica e cheia fluía. Isso não o protegia de ataques, mas lhe dava uma certa imunidade.
Seu meio-irmão Charles, apenas um ano e pouco mais novo, cresceu com a agressividade do pai. Charles era um atleta natural, com um senso de oportunidade e uma coordenação instintivos e com a delicada garra do competidor que quer vencer os outros, o que determina o sucesso no mundo.
O jovem Charles ganhava todas as disputas com Adam, quer envolvessem habilidade, força ou inteligência rápida, e ganhava com tanta facilidade que logo perdeu o interesse e teve de dar vazão à sua competitividade com outras crianças. Por isso, uma espécie de afeição se formou entre os dois meninos, mas era mais como uma associação entre irmão e irmã do que entre irmãos. Charles brigava com qualquer garoto que provocasse ou admoestasse Adam e geralmente ganhava. Protegia Adam da dureza do pai com mentiras e até assumindo a culpa. Charles sentia por seu irmão o afeto que se tem pelas coisas desamparadas, como cachorrinhos cegos e recém-nascidos.
Adam olhava do fundo de seu cérebro protegido — pelos longos túneis dos seus olhos — para as pessoas do seu mundo: seu pai, uma força da natureza perneta a princípio, instalada justamente para fazer meninos pequenos se sentirem menores e meninos burros se darem conta da sua burrice; e depois — quando o deus desabou — via seu pai como o policial nato, uma autoridade que podia ser evitada ou enganada, mas nunca desafiada. E através dos longos túneis dos seus olhos Adam via seu meio-irmão Charles como um ser brilhante de outra espécie, dotado de músculos e ossos, velocidade e prontidão, situado num plano diferente, para ser admirado como se admira o perigo liso e preguiçoso de um leopardo negro, de modo algum comparável a nós mesmos. E jamais ocorreu a Adam fazer do irmão o seu confidente — contar-lhe seus anseios, os sonhos nebulosos, os planos e os prazeres silenciosos que se ocultavam no final do túnel dos olhos — em vez de partilhar seus pensamentos com uma árvore bonita ou com um faisão em voo. Adam apreciava Charles como uma mulher aprecia um grande diamante, e dependia do irmão assim como uma mulher depende do brilho do diamante e da segurança que o seu valor lhe traz; mas amor, afeto e empatia eram inimagináveis.
Em relação a Alice Trask, Adam ocultava um sentimento que se aproximava de uma cálida vergonha. Ela não era sua mãe — sabia disso porque lhe contaram muitas vezes. Não através de coisas ditas, mas pelo tom com que outras coisas eram ditas, sabia que tivera uma mãe e que ela havia feito algo de vergonhoso, como esquecer de recolher as galinhas ou errar o alvo na prática de tiro no quintal. Adam achava às vezes que se pudesse apenas descobrir o pecado que ela havia cometido, e por quê, ele o cometeria também — e não estaria ali.
Alice tratava os meninos com igualdade, dava-lhes banho e os alimentava, e deixava o resto por conta do pai, que fizera saber com clareza e propósito que treinar os meninos física e mentalmente era o seu território exclusivo. Mesmo elogios e reprimendas ele não delegava. Alice nunca se queixava, brigava, ria ou chorava. Sua boca fora reduzida a uma linha que nada escondia e nada oferecia também. Mas certa vez, quando Adam era bem pequeno, ele entrou silenciosamente na cozinha. Alice não o viu. Cerzia uma meia e sorria. Adam afastou-se secretamente e saiu da casa até o quintal, escolhendo um local protegido atrás de um toco de árvore que conhecia bem. Enfiou-se fundo entre as raízes protetoras. Adam ficou tão chocado como se a tivesse encontrado nua. Nervoso, a respiração soava em sua garganta. Porque Alice estava nua — ela havia sorrido. Quis saber como ela ousara entregar-se a tanta lascívia. E desejou-a com um anseio apaixonado e caloroso. Não entendia por que, mas o longo tempo sem que o pegassem nos braços, embalassem, acariciassem, a fome de seio e de mamilo, a maciez de um colo e a voz sussurrada do amor e da compaixão, e o doce sentimento de ansiedade — tudo isso fazia parte da sua paixão e ele não sabia, porque desconhecia que tais coisas existissem, então como podia sentir falta delas?
Naturalmente, ocorreu-lhe que poderia estar errado, que alguma sombra perdida tinha caído sobre seu rosto e perturbado a sua visão. E então voltou à imagem nítida na sua cabeça e viu que os olhos sorriam também. A luz distorcida podia ocasionar uma ou outra coisa, mas não as duas.
Vigiou-a então, como um caçador, como fizera com as marmotas no outeiro quando dia após dia se deitou inanimado como uma jovem pedra para observar as marmotas velhas e desconfiadas trazerem seus filhotes para o sol. Espionava Alice, escondido, insuspeitado, com o canto do olho, e era verdade. Às vezes, quando estava sozinha e sabia que estava sozinha, ela permitia que seu pensamento brincasse num jardim e sorria. Era maravilhoso ver a rapidez com que podia enterrar o seu sorriso, como as marmotas enfiavam os filhotes na toca.
Adam escondeu seu tesouro bem no fundo dos seus túneis, mas resolveu pagar pelo seu prazer com algo. Alice começou a encontrar presentes — na sua cesta de costura, na bolsa surrada, debaixo do travesseiro — duas ramas de canela, uma pena do rabo de um azulão, meio bastão de lacre verde, um lenço roubado. No começo, Alice ficou espantada, mas depois passou, e quando encontrava algum presente inesperado o sorriso do jardim se abria e desaparecia como uma truta atravessa uma lâmina de sol num lago. Não fazia perguntas e não fazia comentários.
Sua tosse piorava muito à noite, era tão alta e perturbadora que Cyrus teve de colocá-la num outro quarto, ou não conseguiria dormir. Mas ele a visitava com muita frequência — saltitando sobre seu pé nu, apoiando-se com a mão na parede. Os meninos podiam ouvir o barulho do seu corpo através da casa enquanto ele manquejava até o quarto de Alice e de volta ao seu.
À medida que crescia, Adam temia uma coisa acima de qualquer outra. Receava o dia em que fosse levado e alistado no Exército. Seu pai nunca o deixava esquecer que tal ocasião chegaria. Falava nela frequentemente. Era Adam quem precisava que o Exército fizesse dele um homem. Charles já era quase um homem. E Charles era um homem, e um homem perigoso, mesmo aos quinze anos, quando Adam tinha dezesseis.

John Steinbeck, em A leste do Éden

[Para Whit Burnett]



25 de agosto de 1954

Lamento saber, por meio de uma papeleta que me foi enviada de Smithtown dois meses atrás, que a Story deixou de existir.
Mandei outro conto por essa época chamado “A história do estuprador”, mas não tive retorno. Está por aí?
Sempre vou me lembrar da velha revista laranja com a tira branca. De alguma forma, eu sempre tivera a ideia de que podia escrever qualquer coisa que quisesse, e, se fosse algo bom o bastante, entraria. Nunca tive essa ideia olhando para nenhuma outra revista, e sobretudo hoje, quando todo mundo sente esse medo tão desgraçado de ofender ou dizer qualquer coisa contra qualquer pessoa – um escritor honesto fica num apuro infernal. Quero dizer, você se senta para escrever e sabe que não adianta nada. Tem um monte de coragem que sumiu agora, e um monte de fibra e um monte de clareza – e um monte de Talento Artístico também.
Sempre vou me lembrar da velha revista laranja com a tira branca. De alguma forma, eu sempre tivera a ideia de que podia escrever qualquer coisa que quisesse, e, se fosse algo bom o bastante, entraria. Nunca tive essa ideia olhando para nenhuma outra revista, e sobretudo hoje, quando todo mundo sente esse medo tão desgraçado de ofender ou dizer qualquer coisa contra qualquer pessoa – um escritor honesto fica num apuro infernal. Quero dizer, você se senta para escrever e sabe que não adianta nada. Tem um monte de coragem que sumiu agora, e um monte de fibra e um monte de clareza – e um monte de Talento Artístico também.
E contos: não há nada: nenhuma vida. […]
A Story tinha um significado para mim. E acho que ver seu desaparecimento faz parte da rotina do mundo, e me pergunto: em seguida vai ser o quê?
Eu me lembro de quando costumava escrever e lhe mandar quinze ou vinte ou mais histórias por mês, e depois três ou quatro ou cinco – e principalmente, no mínimo, uma por semana. De Nova Orleans e Frisco e Miami e L.A. e Philly e St. Louis e Atlanta e Greenwich Village e Houston e tudo que é lugar.
Eu costumava me sentar junto a uma janela aberta em Nova Orleans e olhar lá embaixo as ruas noturnas do verão e tocar aquelas teclas, e, quando vendi minha máquina de escrever em Frisco para ficar bêbado, não consegui parar de escrever, e tampouco consegui parar de beber, então imprimi à mão a minha merda por anos, e posteriormente decorei a mesma merda com desenhos para fazer você prestar atenção.
Bem, segundo me dizem, não posso beber agora, e arranjei outra máquina de escrever. Arranjei uma espécie de emprego agora, mas não sei por quanto tempo vou aguentar nele. Estou fraco e fico doente fácil, e me sinto nervoso o tempo todo e acho que tenho alguns curtos-circuitos em algum lugar, mas desse jeito eu sinto vontade de tocar as teclas de novo, tocá-las e fazer frases, um palco, um arranjo, fazer gente andar e falar e fechar portas. E agora não tem mais a Story.
Mas quero lhe agradecer, Burnett, por me tolerar. Sei que uma grande parte era fraca. Mas aqueles eram tempos bons, os tempos de 438 Fourth Ave. 16, e agora, como todas as outras coisas, os cigarros e o vinho e os pardais vesgos na meia-lua, tudo se foi. Uma tristeza mais pesada que piche. Adeus, adeus.

Charles Bukowski, em Escrever para não enlouquecer

Carrego comigo

Carrego comigo
há dezenas de anos
há centenas de anos
o pequeno embrulho.

Serão duas cartas?
será uma flor?
será um retrato?
um lenço talvez?

Já não me recordo
onde o encontrei.
Se foi um presente
ou se foi furtado.

Se os anjos desceram
trazendo-o nas mãos,
se boiava no rio,
se pairava no ar.

Não ouso entreabri-lo.
Que coisa contém,
ou se algo contém,
nunca saberei.

Como poderia
tentar esse gesto?
O embrulho é tão frio
e também tão quente.

Ele arde nas mãos,
é doce ao meu tato.
Pronto me fascina
e me deixa triste.

Guardar um segredo
em si e consigo,
não querer sabê-lo
ou querer demais.

Guardar um segredo
de seus próprios olhos,
por baixo do sono,
atrás da lembrança.

A boca experiente
saúda os amigos.
Mão aperta mão,
peito se dilata.

Vem do mar o apelo,
vêm das coisas gritos.
O mundo te chama:
Carlos! Não respondes?

Quero responder.
A rua infinita
vai além do mar.
Quero caminhar.

Mas o embrulho pesa.
Vem a tentação
de jogá-lo ao fundo
da primeira vala.

Ou talvez queimá-lo:
cinzas se dispersam
e não fica sombra
sequer, nem remorso.

Ai, fardo sutil
que antes me carregas
do que és carregado,
para onde me levas?

Por que não me dizes
a palavra dura
oculta em teu seio,
carga intolerável?

Seguir-te submisso
por tanto caminho
sem saber de ti
senão que te sigo.

Se agora te abrisses
e te revelasses
mesmo em forma de erro,
que alívio seria!

Mas ficas fechado.
Carrego-te à noite
se vou para o baile.
De manhã te levo

para a escura fábrica
de negro subúrbio.
És, de fato, amigo
secreto e evidente.

Perder-te seria
perder-me a mim próprio.
Sou um homem livre
mas levo uma coisa.

Não sei o que seja.
Eu não a escolhi.
Jamais a fitei.
Mas levo uma coisa.

Não estou vazio,
não estou sozinho,
pois anda comigo
algo indescritível.

Carlos Drummond de Andrade, em A Rosa do Povo

O colégio de Tia Gracinha

Tia Gracinha, cujo nome ficou no grupo escolar Graça Guardiã, de Cachoeiro de Itapemirim, era irmã de minha avó paterna, mas tão mais moça, que a tratava de mãe. Eu era certamente menino, quando ela e o tio Guardiã — um simpático espanhol de cavanhaque, que fora piloto em sua terra — saíram de Cachoeiro para o Rio. Assim, tenho do colégio de Tia Gracinha uma recordação em que não sei o que é lembrança mesmo e lembrança de conversas que ouvi menino.
Lembro-me, sobretudo, do pomar e do jardim do colégio, e imagino ver moças de roupas antigas, cuidando das plantas. O colégio era um internato de moças. Elas não aprendiam datilografia nem taquigrafia, pois o tempo era de pouca máquina e nenhuma pressa. Moças não trabalhavam fora. As famílias de Cachoeiro e de muitas outras cidades do Espírito Santo mandavam suas adolescentes para ali; muitas eram filhas de fazendeiros. Recebiam instrução geral, uma espécie de curso primário reforçado, o mais eram prendas domésticas. Trabalhos caseiros e graças especiais: bordados, jardinagem, francês, piano...
A carreira de toda a moça era casar, e no colégio de Tia Gracinha elas aprendiam boas maneiras. Levavam depois, para as casas de seus pais e seus maridos, uma porção de noções úteis de higiene e de trabalhos domésticos, e muitas finuras que lhes davam certa superioridade sobre os homens de seu tempo. Pequenas etiquetas que elas iam impondo suavemente, e transmitiam às filhas. Muitas centenas de lares ganharam, graças ao colégio de Tia Gracinha, a melhoria burguesa desses costumes mais finos. Eu avalio a educação de Tia Gracinha pela delicadeza de duas de suas alunas — minha saudosa irmã e madrinha Carmozina, e minha prima Noemita.
Tudo isto será risível aos olhos das moças de hoje; mas a verdade é que o colégio de Tia Gracinha dava às moças de então a educação de que elas precisavam para viver sua vida. Não apenas o essencial, mas muito do que, sendo supérfluo e superior ao ambiente, era, por isto mesmo, de certo modo, funcional — pois a função do colégio era uma certa elevação espiritual do meio a que servia. Tia Gracinha era bem o que se podia chamar uma educadora.
Lembro-a na casa de Vila Isabel, onde vivia com o marido, a filha, o genro, os netos, a irmã Ana, que ela chamava de mãe, e que para nós era a Vovô Donana, e a sogra de idade imemorial, que, à força de ser Abuelita, acabara sendo, para nós todos, Vovó Bolita. Tinha nostalgia, talvez, de seu tempo de educadora, de seu belo colégio com pomar às margens do Córrego Amarelo, afluente do Itapemirim; lembro-me de que uma vez me pediu algum livro que explicasse os novos sistemas de educação, o método de ensinar a ler sem soletrar — e me fez esta indagação a que eu jamais poderia responder: “E piano, como é que se ensina piano, hoje?”
Gostava de seu piano. O saudoso Mário Azevedo sabia tocar várias de suas composições, feitas lá em Cachoeiro; lembro-me de uma pequena valsa cheia de graça, finura e melancolia — parecida com a alma de Tia Gracinha.

Rubem Braga, em Recado de primavera

Mau sangue


Tenho dos ancestrais gauleses olhos azuis-claros, crânio estreito, imperícia na luta. Minha vestimenta acho tão bárbara quanto a deles, mas não emplastro o cabelo.
Os gauleses eram os carneadores de animais e queimadores de campo mais ineptos da época.
Tenho deles a idolatria e o amor do sacrilégio. Oh, todos os vícios, cólera, luxúria – magnífica, a luxúria –, sobretudo a mentira e a preguiça.
Detesto todos os ofícios. Chefes e operários, tudo campônios, ignóbeis. A mão na pena vale a mão no arado. – Que século de mãos! Não darei nunca a minha. Depois, ser doméstico leva longe demais. A honestidade de mendigar me aflige. Os criminosos repugnam como os castrados: eu, estou intacto, e para mim é o mesmo.
Mas! quem me fez assim a língua para guiar e salvaguardar até aqui a minha preguiça? Sem me servir para viver de fato do meu corpo, mais ocioso que o sapo, tenho vivido por toda parte. Não há uma família da Europa que eu não conheça. – Refiro-me a famílias como a minha, que pegam tudo da Declaração de Direitos do Homem. – Conheci cada filho-família!
Se eu tivesse antecessores a uma altura qualquer da história da França!
Mas não, nada.
Fica evidente que fui sempre raça inferior. Não posso compreender a revolta. Minha raça só se subleva para pilhar, como os lobos com o animal que não mataram.
Lembro a história da França, filha mais velha da Igreja. Rústico, eu teria feito a viagem à terra santa; tenho na memória as estradas pelas planícies suávias, as vistas de Bizâncio, as muralhas de Solimão; o culto de Maria, o enternecimento sobre o crucificado se erguem em mim entre mil magias profanas. – Estou sentado, leproso, entre vasos quebrados e urtigas, ao pé duma parede descascada pelo sol. Mais tarde, cavaleiro germânico, ia bivacar sob as noites da Alemanha.
Ah! ainda: danço o sabá numa clareira rubra, com velhas e crianças.
Não recordo além desta terra e do cristianismo. Não acabo de me rever no passado. Mas sempre só, sem família; que língua eu falava mesmo? Nunca me vejo nas recomendações do Cristo; nem nas dos Proprietários – representantes do Cristo.
Fosse quem fosse no século passado, não dou comigo senão hoje. Nada mais de vagabundos nem de guerras vagas. A raça inferior cobriu tudo – o povo, como se diz, a razão; a nação e a ciência.
Oh, a ciência! Tudo foi retomado, para o corpo e para a alma; o viático – temos a medicina e a filosofia, os remédios das comadres e as canções populares musicadas. E as diversões dos príncipes e os jogos que proibiam! Geografia, cosmografia, mecânica, química!…
A ciência, a nova nobreza! O progresso. O mundo anda! Por que não giraria?É a visão dos números. Vamos ao Espírito. É certíssimo, oracular, o que digo. Compreendo, e sem saber me explicar sem palavras pagãs, preferia calar.
O sangue pagão retorna! Se o Espírito está próximo, por que Cristo não o ajuda, dando à minha alma nobreza e liberdade? Ai, o Evangelho caducou! O Evangelho! O Evangelho.
Aguardo Deus com gula. Sou de raça inferior por toda a eternidade.
Eis-me na praia provinciana. Que as cidades se acendam de noite. Minha jornada terminou, abandono a Europa. O ar marinho queimará meus pulmões, climas ignotos me curtirão. Nadar, desbastar verdes, caçar, sobretudo fumar; tomar bebidas fortes como metal fundindo, como faziam nossos caros ancestrais em volta do fogo.
Voltarei, com membros de ferro, a pele sombria, olhar furioso; pela máscara, me julgarão raça forte. Terei dinheiro; vou ser ocioso e brutal. As mulheres cuidam dos ferozes doentes de volta dos países tropicais. Entrarei nos negócios políticos. Serei salvo.
Por ora sou maldito, tenho horror da pátria. O melhor é um sono bem bêbado na praia.
A gente não parte. Retoma o caminho, e carregando meu vício, o vício que lançou raízes de dor ao meu lado desde a idade da razão, e sobe ao céu, me bate, me derruba, me arrasta.
A última inocência e a última timidez. Está dito. Não levar ao mundo meus dissabores e minhas traições.
Vamos! O ir, o fardo, o deserto, o tédio e a cólera.
A quem me alugar? Que animal é preciso que adore? Que santa imagem nos agredirá? Que corações partirei? Que mentira devo sustentar? Em que ânimo avançar?
Antes de tudo, acautelar-se com a justiça. A dura vida, o simples embrutecimento; levantar, com a mão seca, a tampa do caixão, sentar, se asfixiar. Assim nada de velhice nem de perigos: o terror não é francês.
Ah! estou tão abandonado que ofereço a não importa que imagem divina os impulsos para a perfeição.
Ó minha abnegação, ó minha maravilhosa caridade! aqui na terra, no entanto.
De profundis Domine, estou aparvalhado!
Em pequeno, admirava o condenado intratável sempre nas galés; visitava albergues e quartos mobiliados que ele consagrara por ter estado ali; via com sua mente o céu azul e o trabalho florido do campo; farejava sua fatalidade nas cidades. Tinha mais força que um santo, mais bom-senso que um viajante e ele, só ele! por testemunha de sua glória e motivação.Nas estradas, por noites de inverno, sem morada, sem um abrigo, sem pão, uma voz comprimia meu coração gelado: “Fraqueza ou força: está aí, é força. Não sabes nem onde vais nem por que vais, passas por tudo, respondes a tudo. Não te matarão mais, por já seres cadáver”. De manhã tinha o olhar tão perdido e o aspecto tão morto que os que encontrava teriam podido não me ver.
Nas cidades, o barro me parecia de repente vermelho e negro, como um espelho quando o lampião é removido no quarto vizinho, como um tesouro na floresta! Boa sorte, exclamava e via um mar de chamas e de fumos no céu; e, à esquerda, à direita, todas as riquezas em labaredas como um bilhão de centelhas.
Mas a orgia e a camaradagem das mulheres me eram proibidas. Nem mesmo um companheiro. Via-me diante de uma multidão exasperada, frente ao pelotão de execução, chorando do infortúnio que teriam podido entender, e perdoando! Como Joana d’Arc! “Padres, professores, advogados, enganam-se entregando-me à justiça. Nunca fui deste povo, nunca fui cristão; sou da espécie que cantava no suplício; não conheço as leis; não tenho senso moral, sou um tosco: se enganam...”
Sim, tenho a vista fechada à vossa luz. Sou um animal, um negro. Mas posso ser salvo. Vós sois falsos negros, vós, maniáticos, irascíveis, avarentos. Comerciante, és negro; magistrado, és negro; general, és negro; imperador, velha sarna, és negro: bebeste o vinho não tributado da fábrica de Satã. – Esta gente está inspirada pela febre e o câncer. Doentes e velhos são tão respeitáveis que pedem para ser fervidos. – O mais astuto é deixar este continente, onde a loucura corre para fornecer reféns a esses miseráveis. Entro no verdadeiro reino dos filhos de Cam(1).
Conheço ainda a natureza? Conheço a mim mesmo? – Chega de palavras. Sepulto os mortos no meu ventre. Gritos, tambor, dança, dança, dança! Não vejo a hora em que, ao desembarcarem os brancos, cairei no nada.
Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança!
Os brancos desembarcaram. O canhão! Cumpre se submeter ao batismo, se vestir, trabalhar Recebi no coração o golpe da graça. Ah! não tinha previsto isso.
Não fiz o mal. Os dias me serão leves, o arrependimento, poupado. Não terei as torturas da alma quase morta no bem, de onde sobe a luz severa como dos círios fúnebres. A sorte do filho-família, prematuro caixão coberto de límpidas lágrimas. Sem dúvida a devassidão é torpe, o vício é torpe; é de jogar fora a podridão. Mas o relógio não conseguirá dar senão a hora da pura dor! Vou ser arrebatado como uma criança, para brincar de paraíso, esquecido de toda a desgraça!
Rápido! existem outras vidas? – O sono na riqueza é impossível. A riqueza sempre foi bem público. Só o amor divino outorga as chaves do conhecimento. Vejo que a natureza não é um espetáculo de bondade. Adeus, quimeras, ideais, erros.
O canto sensato dos anjos se ergue do navio salvador: é o amor divino. – Dois amores! posso morrer do amor terrestre, morrer de devotamento. Abandonei almas cuja pena aumentou com a minha partida! Me escolheste entre os náufragos. Os que ficaram não são meus amigos?
Salvai-os!
Nasce-me a razão. O mundo é bom. Abençoarei a vida. Amarei meus irmãos. Não são mais promessas de infância. Nem a esperança de escapar à velhice e à morte. Deus faz a minha força, e eu louvo Deus.
O tédio já não é meu amor. As raivas, as farras, a loucura, de que sei todos os ímpetos e os desastres –, larguei meu fardo inteiro. Vejamos sem vertigem a medida da minha inocência.
Não serei mais capaz de pedir o reconforto de uma flagelação. Não me creio indo para um casamento com Jesus Cristo por sogro.
Não sou prisioneiro da minha razão. Disse: Deus. Quero a liberdade na salvação: como obtê-la? Os gostos frívolos me deixaram. Não é mais necessária a devoção nem o amor divino. Não sinto falta da moda dos corações sensíveis. Cada um tem sua razão, desprezo e caridade: mantenho o lugar no topo dessa angélica escada de bom-senso.
Quanto à felicidade estabelecida, doméstica ou não... não, não posso. Sou dissipado demais, fraco demais. A vida floresce pelo trabalho, velha verdade: eu, minha vida não é tão pesada, se alça e flutua longe acima da ação, essa apreciada exigência do mundo.
Como eu me torno mulher velha, sem coragem de amar a morte!
Se Deus me concedesse a calma celeste, aérea, a prece, como aos antigos santos – os santos! uns fortes! os anacoretas, artistas como não há mais!
Farsa permanente! Minha inocência me fará chorar. A vida é a farsa a levar por todos.
Basta! Eis a punição. – Marchar!
Ah! Os pulmões ardem, as fontes pulsam! A noite me passa pelos olhos, neste sol! O coração... os membros…
Onde vamos? ao combate? Sou débil! Os outros avançam. As ferramentas, as armas... o tempo!…
Fogo! fogo em mim! Aqui! ou me rendo. – Covardes! – Mato-me! Me jogo nas patas dos cavalos!
Ah!…
Me acostumarei.
Essa seria a maneira francesa, a senda da honra!

___________________________________
Nota:
(1) Cam ou Cão, segundo filho de Noé. Seus descendentes, segundo a história sagrada, formaram a raça negra. (N.T.).

Arthur Rimbaud, em Uma temporada no inferno seguido de Correspondência