domingo, 22 de setembro de 2024

Italo Svevo


Um homem — um homem imenso, ao lado do qual você se sente muito pequeno — decide convidá-lo para conhecer suas filhas, a fim de escolher uma delas para esposa. Elas são quatro, todas com os nomes começando em A; o seu nome começa com Z. Você vai visitá-las em casa e tenta travar uma conversa civilizada, mas não consegue evitar que insultos se despejem da sua boca. Você se descobre contando piadas indecentes, que são recebidas com um silêncio glacial. No escuro, você murmura palavras sedutoras para a mais bonita das A; quando as luzes se acendem, descobre que quem vinha cortejando era a A de olhos estrábicos. Você se apoia descuidado em seu guarda-chuva; o guarda-chuva se parte ao meio; todos riem.
Isso tudo parece, se não um pesadelo, um desses sonhos que, nas mãos de um vienense devidamente habilitado para interpretá-los, como por exemplo Sigmund Freud, acabam revelando muita coisa embaraçosa a seu respeito. Entretanto não se trata de um sonho, e sim de um dia na vida de Zeno Cosini, herói de A consciência de Zeno, romance de Italo Svevo (1861-1928). Se Svevo é de fato um romancista freudiano, será freudiano na medida em que mostra o quanto a vida das pessoas comuns é repleta de lapsos, parapraxias e símbolos, ou na medida em que, usando como fontes A interpretação dos sonhos, O chiste e sua relação com o inconsciente e Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, ele cria uma personagem cuja vida interior obedece às linhas descritas pelos manuais freudianos? Ou será ainda que tanto Freud quanto Svevo pertencem a uma era em que cachimbos, charutos, bolsas e guarda-chuvas pareciam impregnados de significados secretos, enquanto nos dias de hoje um cachimbo é apenas um cachimbo?
Italo Svevo” (Italo, o Suevo) é obviamente um pseudônimo. O nome original de Svevo era Aron Ettore Schmitz. Seu avô paterno era um judeu vindo da Hungria e estabelecido em Trieste. Seu pai começou a vida como mascate e acabou como um bem-sucedido comerciante de artigos de vidro; sua mãe vinha de uma família judaica de Trieste. Os Schmitz eram judeus praticantes, mas de observância não muito rígida. Aron Ettore casou-se com uma convertida ao catolicismo, e por pressão dela acabou se convertendo ele também (um tanto a contragosto, vale dizer). A breve autobiografia publicada sob seu nome num momento posterior da vida, quando Trieste se tornara parte da Itália e a Itália se tornara fascista, é bastante vaga quanto a seus antecedentes judaicos e não italianos. As memórias que sua mulher Livia publicou a seu respeito — com uma certa tendência hagiográfica, embora plenamente legíveis — são igualmente discretas na matéria.1 Em seus escritos, não se encontram personagens ou temas abertamente judaicos.
O pai de Svevo — uma influência dominante em sua vida — mandou os filhos para um colégo interno de comércio na Alemanha, onde em suas horas vagas Svevo mergulhou nos românticos alemães. Não obstante as vantagens que seu aprendizado alemão podia trazer a seus negócios no Império Austro-Húngaro, acabaram por privá-lo de uma formação literária italiana.
De volta a Trieste, Svevo matriculou-se aos dezessete anos no Instituto Superiore Commerciale. Seus sonhos de tornar-se ator tiveram fim quando foi recusado num teste devido à sua elocução defeituosa do italiano.
Em 1880, Schmitz pai sofreu reveses financeiros e seu filho precisou interromper os estudos. Obteve um emprego na filial em Trieste do Unionbank de Viena e, pelos dezenove anos seguintes, trabalhou no banco. Fora do expediente, lia os clássicos italianos e a vanguarda europeia em geral. Zola tornou-se o seu ídolo. Frequentava salons artísticos e escrevia para um jornal simpático ao nacionalismo italiano.
Entre os trinta e os quarenta anos, tendo experimentado o sabor de publicar um romance (Una vita, 1892 [Uma vida]) por conta própria e vê-lo ignorado pelos críticos, e prestes a repetir a experiência com Senilidade (1898), Svevo casou-se com uma representante da proeminente família Veneziani, proprietários de um estabelecimento que revestia cascos de navios com uma substância patenteada que retardava a corrosão e impedia o crescimento de cracas. Svevo foi admitido na empresa, onde era encarregado da preparação da tinta a partir de uma fórmula secreta e supervisionava os demais funcionários.
Os Veneziani já eram contratados por várias forças navais de todo o mundo. Quando o Almirantado Britânico assinalou seu interesse, apressaram-se em abrir uma representação em Londres, gerenciada por Svevo. Para aperfeiçoar seu inglês, Svevo teve aulas com um irlandês chamado James Joyce, que lecionava no curso Berlitz de Trieste. Depois do fracasso de Senilidade, desistira de escrever a sério. Agora, porém, no novo professor, encontrou alguém que gostava dos seus livros e entendia as suas intenções. Animado, retomou o que chamava de suas garatujas, embora só voltasse a publicar alguma coisa na década de 1920.

Predominantemente italiana em sua cultura, a Trieste dos tempos de Svevo ainda assim fazia parte do império dos Habsburgo. Era uma cidade próspera, o principal porto marítimo de Viena, onde uma classe média esclarecida tocava uma economia baseada na navegação, nos seguros e nas finanças. A imigração levara para lá gregos, alemães e judeus; o trabalho braçal era feito por eslovenos e croatas. Em sua heterogeneidade, Trieste era um microcosmo de um império etnicamente variado em que eram cada vez maiores as dificuldades para manter sob controle inúmeros ressentimentos interétnicos. Quando esses ódios explodiram, em 1914, o império mergulhou na guerra, arrastando a Europa consigo.
Embora acompanhassem Florença nas questões culturais, os intelectuais triestinos tendiam a mostrar-se mais abertos às correntes do norte que seus equivalentes da Itália. No caso de Svevo, primeiro Schopenhauer e Darwin, e mais tarde Freud, destacam-se como as principais influências filosóficas.
Como qualquer bom burguês do seu tempo, Svevo preocupava-se muito com sua saúde: o que constituiria a boa saúde, de que modo podia ser adquirida, e como mantê-la? Em sua obra, a saúde acabou assumindo uma ampla gama de sentidos, indo do físico e do psíquico ao social e ético. De onde vem a sensação insatisfeita, própria da humanidade, que nos diz que não estamos bem e de que tanto desejaríamos ver-nos curados? E essa cura, será possível? E se nos obrigar a nos conformarmos com a maneira como as coisas são, será essa cura necessariamente uma coisa boa?
Aos olhos de Svevo, Schopenhauer foi o primeiro filósofo a tratar as pessoas acometidas do mal do pensamento reflexivo como uma espécie à parte, coexistindo às turras com os tipos saudáveis e irreflexivos que poderiam ser definidos como os “mais aptos” do jargão darwiniano. Com Darwin — lido através de uma lente schopenhaueriana — Svevo manteve uma teimosa implicância a vida inteira. Seu primeiro romance pretendia trazer no título uma alusão a Darwin: Un inetto, “um inepto”, ou “mal-adaptado”. Mas seu editor foi contrário, e ele acabou escolhendo o bem mais inexpressivo Una vita. Num estilo exemplarmente naturalista, o livro acompanha a história de um jovem bancário que, quando finalmente se vê obrigado a admitir que sua vida é desprovida de qualquer desejo ou ambição, toma a providência correta do ponto de vista evolucionário, e se suicida.
Num ensaio posterior, intitulado “O homem e a teoria darwiniana”, Svevo mostra Darwin por um viés mais otimista, que acaba conduzindo às páginas de Zeno. Nossa sensação de nunca estarmos à vontade no mundo, sugere ele, resulta de um certo inacabamento da evolução humana. Para fugir a essa triste condição, há os que tentam adaptar-se a seu meio. Outros preferem o contrário. De fora, os inadaptados podem parecer formas rejeitadas pela natureza, mas, paradoxalmente, podem mostrar-se mais aptos que seus vizinhos bem-adaptados para enfrentar o que o futuro imprevisível possa nos trazer.
A língua de casa de Svevo era o triestino, uma variante do dialeto veneziano. Para tornar-se escritor, ele precisava dominar o italiano literário, baseado no dialeto toscano. Mas jamais alcançou o domínio que almejava. Para aumentar suas dificuldades, tinha pouca sensibilidade para as qualidades estéticas da linguagem, e especialmente nenhum ouvido para a poesia. Arreliava seu amigo, o jovem poeta Eugenio Montale, dizendo que lhe parecia um desperdício usar apenas uma parte da página em branco quando pagara por toda ela. P. N. Furbank, um dos melhores tradutores de Svevo [para o inglês], rotula sua prosa de “uma espécie de italiano ‘comercial’, quase um esperanto — uma linguagem bastarda e desgraciosa, totalmente desprovida de poesia ou ressonância”. Logo depois do seu lançamento, Una vita foi criticado por seus erros gramaticais, por seu uso indiscriminado do dialeto e pela pobreza geral da sua prosa. E muito foi dito na mesma linha sobre Senilidade. Quando Svevo ficou famoso, e Senilidade foi, pois, reeditado, ele concordou em reler o texto e corrigir seu italiano, mas sem aplicar muito esforço à tarefa. De si para si, parecia duvidar de que meras alterações editoriais pudessem produzir algum efeito.
Até certo ponto, a controvérsia quanto ao domínio do italiano por Svevo pode ser ignorada como uma questão que só interessa aos italianos, irrelevante para estrangeiros que o leem em tradução. Para o tradutor, porém, o italiano de Svevo coloca uma substancial questão de princípio. Será que seus defeitos, numa gama que vai do uso de preposições erradas ao emprego de um fraseado arcaico ou livresco e a um estilo em geral laborioso, devem ser reproduzidos ou corrigidos em silêncio? Ou, para formular a questão na forma inversa, como é que, sem lançar mão de uma prosa deliberadamente truncada, o tradutor poderá transmitir uma ideia do que Montale chama de “esclerose” do mundo de Svevo, impregnada em sua própria linguagem?
Svevo não era indiferente ao problema. Sua recomendação ao tradutor de Zeno para o alemão foi traduzir seu italiano por um alemão gramaticalmente correto, mas sem embelezar ou melhorar seu texto.
Svevo costumava definir o triestino, em tom de desprezo, como um dialettaccio, um dialeto menor, ou uma linguetta, uma sublíngua, mas não estava sendo sincero. Muito mais convincente é Zeno quando deplora que os estrangeiros “não sabem o que representa para aqueles de nós que falam dialeto [il dialetto] escrever em italiano. [...] Com cada palavra toscana que empregamos, nós mentimos!”. Aqui, Svevo trata a passagem de um dialeto a outro, do triestino em que foi alfabetizado ao italiano em que escrevia, como inerentemente traiçoeira (traditore traduttore). Só em triestino ele podia dizer a verdade. A questão que tanto os não italianos quanto os italianos devem ponderar é se existiriam de fato verdades triestinas que Svevo sentia jamais conseguir traçar na página em italiano.

A origem de Senilidade foi um caso amoroso que Svevo manteve em 1891-2 com uma jovem, como diz delicadamente um dos seus críticos, de profissão indeterminada, que mais tarde se transformaria em equestrienne de circo. No livro, ela se chama Angiolina. Emilio Brentani, o protagonista, vê Angiolina como uma inocente que ele irá instruir nos aspectos mais sutis da vida enquanto ela, em contrapartida, irá dedicar-se ao seu bem-estar. Mas é Angiolina quem, na prática, dá as lições; e a iniciação que ela proporciona a Emilio nas evasões e nas baixezas da vida erótica bem valeria o dinheiro que ela o faz gastar a rodo, não estivesse ele envolvido demais no autoengano da sua fantasia para absorvê-la devidamente. Anos depois de Angiolina ter fugido com um escriturário de banco, Emilio irá relembrar o tempo que passou com ela filtrando-o por uma névoa rosada (Joyce sabia de cor as maravilhosas últimas páginas do livro, banhadas em clichês românticos e ironia impiedosa, e chegou a recitá-las para Svevo). A verdade é que esse caso amoroso fora senil desde o início, no sentido único que Svevo dá à palavra: nada tinha de juvenil ou vital, mas antes subsistindo desde o início graças à mentira egoísta.
Em Senilidade, o autoengano é um estado da existência deliberado mas não reconhecido. A ficção que Emilio constrói para si mesmo quanto a quem ele é, quanto a quem é Angiolina e quanto ao que os dois fazem juntos é ameaçada pelo fato de Angiolina dormir promiscuamente com outros homens e mostrar-se incompetente, indiferente ou maliciosa demais para escondê-lo. Ao lado de A sonata Kreutzer e No caminho de Swann, Senilidade é um dos grandes romances do ciúme sexual masculino, explorando o repertório técnico legado por Flaubert a seus sucessores para entrar e sair da consciência de uma personagem com um mínimo de incômodo e emitir juízos sem parecer fazê-lo. A maneira como Svevo mostra as relações entre Emilio e seus rivais é especialmente perceptiva. Emilio quer e ao mesmo tempo não quer que seus amigos cortejem sua amante; quanto mais claramente consegue visualizar Angiolina com outro homem, mais intensamente ele a deseja, a ponto de chegar a desejá-la porque ela esteve com outro homem. (A presença de correntes homossexuais no triângulo do ciúme foi evidentemente assinalada por Freud, mas só anos depois de Tolstói e Svevo.)
As traduções-padrão [para o inglês] de Senilidade e Zeno são até aqui as de Beryl de Zoete, uma britânica de ascendência holandesa e conectada ao grupo de Bloomsbury cuja faceta mais famosa é ter sido uma das pioneiras mundiais no estudo da dança balinesa. Na apresentação da sua nova tradução de Zeno, William Weaver discute as soluções de De Zoete e sugere, com a delicadeza possível, que bem pode ter chegado a hora de tirá-las de circulação.
A tradução de Senilidade publicada por De Zoete em 1932, com o título As a Man Grows Older [Enquanto um homem envelhece], é particularmente datada. Senilidade fala muito de sexo; o sexo usado como arma na batalha entre os sexos, o sexo como mercadoria negociada. Embora sua linguagem nunca seja exatamente imprópria, Svevo tampouco pisa em ovos em torno da questão. A versão de De Zoete, porém, é de um decoro excessivo. Por exemplo, Emilio pensa nos feitos sexuais de Angiolina e imagina que ela deixa a cama do rico mas repulsivo Volponi, e, a fim de livrar-se da “infamia” (a desonra, mas também o horror) do toque desse homem, mergulha imediatamente na cama com outro. O texto de Svevo quase não é metafórico: com um segundo ato sexual Angiolina tentaria limpar-se (“nettarsi”) dos vestígios que Volpini deixara nela. De Zoete omite a limpeza: Angiolina “busca refugiar-se daquele enlace infame”.
Noutros pontos, De Zoete simplesmente elide ou sintetiza trechos que — com ou sem razão — julga não terem contribuição para o sentido do texto, ou serem coloquiais demais para funcionarem em inglês. Também acontece de superinterpretar, acrescentando o que ela acha estar acontecendo entre as personagens quando o próprio original se cala. As metáforas comerciais que caracterizam a relação entre Emilio e as mulheres às vezes se perdem. Numa ocasião, De Zoete interpreta o sentido de uma delas de maneira catastroficamente errada, atribuindo a Emilio a decisão de forçar Angiolina a uma relação sexual (“ele a possui”), quando o protagonista só pretendia esclarecer quem seria seu proprietário (“ele é seu possuidor”).
A nova tradução de Senilidade, de autoria de Beth Archer Brombert, constitui um avanço considerável. Invariavelmente, recupera as metáforas submersas que De Zoete prefere ignorar. Seu inglês, embora claramente datado do final do século XX, tem uma formalidade que reflete de certa forma uma era anterior. Se alguma crítica pode ser feita é que num esforço excessivo para mostrar-se atualizada ela emprega expressões que tendem a envelhecer em pouco tempo.
Os títulos de Svevo sempre representaram uma dor de cabeça para seus tradutores e editores. Como título, Una vita é simplesmente banal. Por recomendação de Joyce, Senilidade foi lançado em inglês com o título As a Man Grows Older, embora o romance nada tenha a ver com o envelhecimento. Beth Brombert reverte a um título de trabalho anterior, Emilio’s Carnival [A orgia de Emilio], apesar de na edição revista em italiano Svevo se ter recusado a abrir mão de Senilidade: “Eu teria a sensação de estar mutilando o livro... Esse título foi o meu guia, era ele que me orientava”.

A carreira literária de Svevo se estende por quatro décadas turbulentas da história de Trieste, mas ainda assim muitíssimo pouco dessa história se reflete, direta ou indiretamente, em sua obra ficcional. A partir do que contam os dois primeiros livros, ambientados na Trieste da década de 1890, jamais se poderia imaginar que àquela época a classe média italiana de Trieste vivia entregue a uma febre típica do Risorgimento, reivindicando a união com a pátria-mãe. E, embora as confissões de Zeno tenham sido supostamente escritas durante a guerra de 1914-8, o conflito só vai lançar alguma sombra sobre a obra em suas últimas páginas.
Graças aos contratos com o governo de Viena, a família Veneziani ganhou muito dinheiro com a guerra. Ao mesmo tempo, seus membros apresentavam-se em Trieste como irredentistas apaixonados, partidários da incorporação ao solo italiano de todos os territórios sob domínio estrangeiro. John Gatt-Rutter, biógrafo de Svevo, classifica essa atitude de “farsa hipócrita”, e acredita que o próprio Svevo foi no mínimo conivente com a encenação. Gatt-Rutter critica acerbamente as posições políticas de Svevo durante a guerra e depois da tomada do poder pelos fascistas em 1922. Como muitos triestinos da classe alta, os Veneziani apoiaram Mussolini. O próprio Svevo parece ter acatado o novo regime de um modo que Gatt-Rutter define como “de perfeita má-fé”, considerando o fascismo um mal menor que o bolchevismo. Em 1925, na pessoa de Ettore Schmitz, ele aceitou uma comenda menor do Estado pelos serviços que prestou à indústria nacional.
Embora nunca se tenha tornado um fascista de carteira, pertencia como industrial à Confederação Fascista das Indústrias. E sua mulher foi participante ativa do “Fascio das Mulheres”.
Se ficou moralmente comprometido devido à sua associação com os Veneziani, Svevo/Schmitz pelo menos não escondia isso de si mesmo, a julgar pelo que escrevia. Basta lembrar do velho do conto “La novella del buon vecchio e della bella fanciulla” [A história do bom velho e da moça bonita], escrito em 1926 mas ambientado durante a Primeira Guerra: “Todos os sinais da guerra lhe lembravam, dolorosamente, que, graças a ela, ele ganhava tanto dinheiro. A guerra lhe trouxera riqueza e humilhação... Já estava acostumado ao remorso causado por seu sucesso nos negócios, e continuava ganhando dinheiro a despeito do seu remorso”.
A atmosfera moral desse texto tardio pode ser mais sombria, e a autocrítica, mais corrosiva, do que encontramos no essencialmente cômico Zeno, mas isso é apenas uma questão de grau de sombra ou potencial de corrosão. De Sócrates a Freud, a filosofia ética do Ocidente subscreveu ao Conhece-ti a ti mesmo délfico. No entanto, de que serve conhecer a si mesmo se, seguidor do caminho apontado por Schopenhauer, um indivíduo acredita que o caráter se baseia num substrato de vontade, e duvida que a vontade queira mudar?

Zeno Cosini, o herói do terceiro romance de Svevo, sua obra-prima da maturidade, é um homem de meia-idade, confortavelmente casado, próspero, ocioso, vivendo de uma renda que recebe do negócio fundado por seu pai. Por um capricho, a fim de ver se consegue curar-se de seja lá qual for o seu problema, submete-se à psicanálise. Preliminarmente, seu terapeuta, o dr. S., pede-lhe que escreva suas memórias da maneira como lhe ocorrerem. Zeno obedece, produzindo cinco capítulos da extensão de um conto cada, cujos temas são: o fumo; a morte do seu pai; seu namoro; um dos seus casos amorosos; uma das suas sociedades comerciais.
Decepcionado com o dr. S., que considera obtuso e dogmático, Zeno para de manter suas notas sistemáticas. Visando indenizar-se pelos honorários perdidos, o dr. S. publica o manuscrito de Zeno. E eis o que constitui o livro que temos à nossa frente: as memórias de Zeno mais a narrativa que lhe serve de moldura, sobre como elas foram escritas, “uma autobiografia, mas não a minha”, como diz Svevo numa carta a Montale. E Svevo ainda explica como sonhava aventuras para Zeno, plantava-as em seu próprio passado e depois, ignorando deliberadamente a divisa entre a fantasia e a memória, “‘lembrava-se’ delas”.
Zeno é um fumante compulsivo que quer parar de fumar, embora sem força de vontade suficiente para consegui-lo de fato. Não duvida que fumar lhe faça mal, e sonha com os pulmões cheios de ar fresco — as três grandes cenas de morte em Svevo, uma em cada romance, mostram pessoas que morrem arquejando e lutando desesperadas para respirar —, mas ainda assim revolta-se contra a cura. Desistir do cigarro, sabe ele em algum nível instintivo, é reconhecer a primazia de pessoas como a sua mulher e o dr. S., que, com a melhor das intenções, gostariam de transformá-lo num cidadão comum e saudável, subtraindo-lhe assim os poderes que cultiva: o poder de pensar, o poder de escrever. Com um simbolismo tão grosseiro que nem mesmo Zeno consegue deixar de rir, o cigarro, a caneta e o falo acabam representando uns aos outros. O conto “La novella del buon vecchio e della bella fanciulla” termina com o velho morto em sua escrivaninha, uma caneta presa entre os dentes cerrados.
Dizer que Zeno é ambivalente sobre o fumo e, portanto, sobre a possibilidade de cura de sua doença indefinida não passa de um arranhão na superfície do ceticismo corrosivo porém engraçado de Svevo quanto à nossa capacidade de aprimoramento. Zeno tem dúvidas quanto aos poderes terapêuticos da psicanálise, assim como tem suas dúvidas diante da própria ideia da cura; no entanto, quem se atreveria a dizer que o paradoxo que acaba adotando ao final da sua história — de que a suposta doença é parte da condição humana, de que a verdadeira saúde consiste em aceitar quem você é (“ao contrário das outras moléstias... não existe cura para a vida”) — não instiga ele próprio uma interrogação cética e zenoniana?
A psicanálise era uma espécie de mania na Trieste da época em que Svevo trabalhava em Zeno. Gatt-Rutter cita um professor triestino: “Aderentes fanáticos à psicanálise [...] viviam trocando histórias, interpretações de sonhos e lapsos significativos, produzindo eles próprios seus diagnósticos amadores” (p. 306). O próprio Svevo colaborou numa tradução da Interpretação dos sonhos, de Freud. Apesar das aparências, não achava que Zeno fosse um ataque contra a psicanálise em si, só contra suas pretensões curativas. A seu ver, não era um seguidor de Freud mas um seu igual, dedicado também por seu lado a investigar o inconsciente e o domínio do inconsciente sobre a vida consciente; considerava seu livro fiel ao espírito cético da psicanálise da maneira como era praticada pelo próprio Freud, embora não por seus discípulos, e chegou a enviar um exemplar a Freud (que entretanto não acusou o recebimento). E de fato, visto de uma perspectiva mais ampla, Zeno é mais que uma simples aplicação da psicanálise a uma vida ficcional, ou que um mero questionamento cômico da psicanálise. É uma exploração das paixões, inclusive as mais mesquinhas, como a cobiça, a inveja e o ciúme, na tradição do romance europeu, paixões para as quais a psicanálise acaba sendo apenas um guia muito parcial. A doença da qual Zeno quer e não quer ser curado é, no fim das contas, não menos que o mal du siècle da própria Europa, uma crise da civilização a que tanto a teoria freudiana como A consciência de Zeno procuram responder.

* * *

A consciência de Zeno [La coscienza di Zeno] é mais um dos títulos difíceis de Svevo. “Coscienza” pode significar o que modernamente se chama de “consciência”; mas também pode significar o que em inglês se chama de “self-consciousness” [a “consciência de si mesmo” ou “o embaraço”], como na frase de Hamlet “A consciência nos converte a todos em covardes” [Conscience does make cowards of us all]. No livro, Svevo alterna o tempo todo entre os dois significados, de um modo que o inglês moderno não tem como imitar. Evitando o problema, De Zoete deu à sua tradução de 1930 o título de Confessions of Zeno. Em sua nova tradução, William Weaver capitula ante a ambiguidade e usa Zeno’s Conscience.
Weaver publicou traduções, entre outros escritores italianos, de Luigi Pirandello, Carlo Emilio Gadda, Elsa Morante, Italo Calvino e Umberto Eco. Sua tradução de Zeno numa prosa inglesa devidamente comedida e discreta é do melhor padrão. Num detalhe, porém, é a própria língua inglesa que trai o seu trabalho. Zeno costuma contrastar muito o malato immaginario com o sano immaginario, traduzidos por Weaver como “imaginary sick man” e “imaginary healthy man”. (pp. 171, 176; capítulo 6 do original) No entanto, “immaginario”, aqui, não corresponde estritamente ao inglês “imaginary”, mas a “self-imaginedly”, e um malato immaginario não é, no sentido próprio, um imaginário homem doente (“imaginary sick man”), mas um homem que se imagina doente (“a man who imagines himself sick”).
O malato immaginario de Zeno vem da mesma origem que o malade imaginaire de Molière, e é sem dúvida Molière que a mulher de Zeno tem em mente quando, depois de ouvi-lo falar durante horas sobre os seus males, explode numa risada e diz-lhe que ele não passa de um malato immaginario. Ao invocar Molière em vez de mais atualizados teóricos da psique, na verdade ela atribui os males do marido a uma predisposição de caráter. E essa sua intervenção leva Zeno e seus amigos a longas conversas de muitas páginas sobre o fenômeno do malato immaginario em contraposição ao malato reale ou malato vero: não pode uma doença provinda da imaginação ser mais grave que uma doença “verdadeira” ou “real”, embora não seja genuína? E Zeno leva a interrogação ainda mais além quando pergunta se, em nosso tempo, o mais doente de todos pode não ser o sano immaginario, o homem que se imagina são.
Toda a disquisição é conduzida com muito mais precisão e humor no italiano de Svevo do que seria possível num inglês circunlocutório. Aqui, De Zoete está um passo à frente de Weaver ao desistir do inglês e recorrer ao francês: “malade imaginaire” para “malato immaginario”.

Publicado às expensas do próprio Svevo em 1923, quando contava 62 anos de idade, Zeno foi resenhado em algumas publicações, mas nunca por algum dos líderes da opinião crítica. Um resenhista triestino declarou ter sido pressionado a ignorar o livro, posto que, fosse o que fosse, era um insulto evidente à cidade.
Em nome dos velhos tempos, Svevo enviou um exemplar para Joyce em Paris. Joyce mostrou o livro a Valéry Larbaud e outras figuras influentes da cena literária francesa. A reação foi de entusiasmo. Gallimard encomendou uma tradução, com a condição de serem feitos certos cortes; uma revista literária publicou todo um número sobre Svevo; o PEN clube organizou um banquete em homenagem a Svevo em Paris.
Em Milão, foi publicada uma nova apreciação positiva da obra de Svevo, assinada por Montale. Senilidade foi relançado em versão revista. Os italianos começaram a ler amplamente Svevo; uma nova geração de romancistas adotou-o como patrono. A direita reagiu com hostilidade. “Na vida real, Italo Svevo tem um nome semita — Ettore Schmitz”, escreveu La Sera, e sugeriu que toda aquela onda em torno de Svevo fazia parte de uma vasta conspiração judaica.
Envaidecido com o sucesso inesperado de Zeno, exultante com sua nova fama, Svevo pôs-se a trabalhar numa série de textos cujo tema comum era o envelhecimento e os apetites insaciados da velhice. Talvez pretendesse usá-los num quarto romance, uma continuação de Zeno. Em inglês, podem ser encontrados, em traduções de P. N. Furbank e outros, nos volumes 4 e 5 da edição uniformizada em cinco volumes das obras de Svevo publicada na década de 1960 pela University of California Press nos Estados Unidos e por Secker & Warburg na Grã-Bretanha, mas hoje fora de catálogo. Já é mais que tempo de uma reedição.
O volume 5 contém ainda uma tradução da peça teatral La Rigenerazione [Regeneração], obra tardia. Svevo nunca perdeu o interesse pelo teatro, e escreveu inúmeras peças ao longo dos anos, mesmo enquanto trabalhava para os Veneziani. Só uma delas, Terzetto spezzato [O triângulo partido], foi encenada durante a sua vida.
Svevo morreu em 1928 de complicações provocadas por um acidente automobilístico sem importância. Foi enterrado no cemitério católico de Trieste com o nome de Aron Hector Schmitz. Livia Veneziani Svevo, reclassificada como judia, passou os anos da guerra, juntamente com a filha do casal e o terceiro filho desta, escondida dos esquadrões de purificação. Esse terceiro filho foi morto pelos alemães por ocasião do levante triestino de 1945. A essa altura, seus dois irmãos mais velhos já tinham morrido na frente russa, lutando pela Itália e pelo Eixo.

J. M. Coetzee, em Mecanismos internos

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