Vindo
logo depois de Corpo de baile, completou a impressão
avassaladora de poderosa originalidade e grandeza isolada do autor,
confirmando-lhe a posição excepcional dentro da ficção brasileira
e mesmo universal. A leitura destas maciças páginas sem índice nem
capítulos, nem sequer espaços claros entre os blocos compactos de
preto no branco, exige esforço não pequeno, mas “raras vezes um
esforço de leitura terá melhor compensação” (Oscar Lopes).
Sai-se do livro com a impressão de se ter participado não só da
vida aventurosa do herói, mas também da alegria criadora do autor.
Era
preciso advertir o leitor para que não se deixasse vencer pelas
dificuldades iniciais da abordagem. Ressaltam as da linguagem,
condensada, elíptica, tipicamente regional e profundamente pessoal,
frequentemente enigmática; é substancialmente a de Corpo de
baile, só que desta vez concorre também para construir a
personalidade de um único herói, contador de sua própria história,
e assim torna-se fator primordial da composição.
Vários
exegetas repararam nessa predominância da linguagem que transcende a
importância instrumental para virar matéria-prima. “Ele redimiu o
estilo do romance, e conseguiu com que a sua prosa não fosse apenas
o gaguejar de uma narração: mas ela própria realidade, ela própria
autenticidade, ela própria uma parte fundamental e inseparável da
realidade romanesca”, afirmou a esse respeito o crítico Adolfo
Casais Monteiro. Outros comentaristas chegaram a conclusão idêntica.
“Nunca entre nós… ofereceu uma obra tamanha virtuosidade e um
tão fértil terreno linguístico – uma tão completa e minuciosa
exploração do discurso em todas as suas múltiplas facetas. Por
isso – e embora o Sr. Guimarães Rosa não se afaste um só momento
do sertão – a sua realidade pode dizer-se que é a linguagem”,
afirma Olívia Krähenbühl. E nove anos depois de Grande sertão:
veredas, numa das poucas entrevistas extensas que concedeu a um
jornalista, Rosa afirmou ao alemão Günter W. Lorenz: “Só se pode
renovar o mundo renovando a língua”.
Mas
também o processo narrativo, sinuosíssimo em vez de linear, requer
um período de adaptação. O narrador parece experimentar vários
rumos, marcar passo, voltar ao ponto inicial, partir de novo por
outro atalho. “Temos uma narrativa em vaivém, em ziguezague”,
nota José Carlos Garbuglio, “que se estabelece pelo fluxo
incontrolável da memória onde um fato aciona a alavanca de outro
que aflora por uma ordem de importância interior”. Para outro
intérprete da obra “o seu fim está no começo e o começo no fim
e ambos poderiam ser encontrados em qualquer parte do livro”
(Milton Vargas). De repente, após uma travessia do rio São
Francisco, o autor nos faz desembocar numa estrada real, de horizonte
dilatado, por onde a história se desenrola ampla, épica,
irresistível, levando de roldão qualquer estranheza ou resistência.
Daí
em diante, os mistérios do princípio elucidam-se progressivamente,
as digressões revelam-se começos de rotas convergentes, episódios
que pareciam deslocados se reatam ao tronco da narração, alusões
obscuras ganham caráter de antecipação e presságio. Descobrir
tais entrelaçamentos é um dos altos prazeres da leitura.
O
romance é, à primeira vista, a história da luta sangrenta entre
dois bandos de jagunços no Sul de Minas. “Porém, não se trata de
livro nem realista nem pitoresco, embora pitoresco e realismo nele se
encontrem a cada passo; mas de um livro carregado de valores
simbólicos, onde os dados da realidade física e social constituem
ponto de partida”, escreve com acerto Antonio Candido. O mesmo
autor chama a atenção para o fato de os jagunços do livro não
serem meros salteadores, mas revestirem as feições de paladinos
medievais.
A
significação do título se aclara sucessivamente por diversos
trechos do romance, onde encontramos o narrador empenhado em definir
o termo “grande sertão” que, além de conteúdo geográfico bem
nítido, para ele tem ainda outros conteúdos vagos e amplos. Essas
definições vão do estritamente mesológico ao simbólico: nelas a
narrativa sai mais de uma vez do tom reprodutivo, e o narrador cede a
palavra ao romancista. Para quem nele nasceu e viveu e com ele se
identificou, o “sertão” acaba sendo toda a confusa e tumultuosa
massa do mundo sensível, caos ilimitado de que só uma parte ínfima
nos é dado conhecer, precisamente a que se avista ao longo das
“veredas”, tênues canais de penetração e comunicação. Assim
o sinal – : – entre os dois elementos do título teria valor
adversativo, estabelecendo a oposição entre a imensa realidade
inabrangível e suas mínimas parcelas acessíveis, ou, noutras
palavras, entre o intuível e o conhecível; e também, segundo me
confirmou certa vez o próprio autor, entre o inconsciente e o
consciente.
A
forma do romance – uma única narrativa, do fim ao começo, feita
pelo fazendeiro Riobaldo, ex-jagunço, a um forasteiro – não é
casual, mas está organicamente ligada ao próprio assunto. Uma
história dessas só pode ser contada pelo protagonista e em primeira
pessoa. A indecisão do começo, em que lembranças fragmentadas se
sucedem ao sabor das associações, corresponde à hesitação do
narrador, que só depõe as reservas depois de ver fixo o interesse
do ouvinte, o qual não somente desiste da intenção de prosseguir
viagem no mesmo dia, mas anota a relação em sua caderneta.
Contudo,
o ouvinte permanece invisível do princípio ao fim, e sua presença
se percebe apenas pelas apóstrofes do narrador. Esse recurso fértil
confere à narração estilo oral e dramaticidade direta, e permite a
Riobaldo esmiuçar com toda meticulosidade suas lembranças mais
secretas. O ensaísta Dante Moreira Leite, que interpreta o monólogo
de Riobaldo como sessão psicanalítica, afirma que “o romance
somente adquire sentido diante do interlocutor”.
Espantado
com a própria comunicabilidade, Riobaldo tenta justificá-la muitas
vezes, e essas tentativas constituem outro leitmotiv, tão
importante como as definições de “sertão”. Segundo ele mesmo
afirma, narra a vida para no fim consultar o interlocutor: “Quero
armar o ponto num fato, para depois lhe pedir um conselho”. Esse
conselho, porém, não chega a ser pedido. Riobaldo pretende também
relatar o passado para que o forasteiro explique: “Conto ao senhor
é o que eu sei e que o senhor não sabe; mas principal quero contar
é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba”.
Mas não se dá oportunidade ao forasteiro para tal explicação e,
aliás, Riobaldo sabe que “a vida não é entendível”. Afinal de
contas, faz a confissão para si mesmo, querendo “decifrar as
coisas que são importantes” e preservá-las do esquecimento. “Não
gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase
igual a perder dinheiro”. Mas a vontade de lembrar, em Riobaldo, é
mais que simples saudade de velho. Desejando reconstituir o seu
passado, ele está movido pelo anelo confuso de reafirmar a unidade
do seu eu, de sentir que efetivamente desempenhou algum papel ativo
nas vicissitudes da própria existência.
Sim,
porque precisamente no tocante a isso é que é atormentado por
contínuas dúvidas. No cerne mesmo de sua vida há um segredo a que
faz alusões incessantes, mas que não se atreve a enfrentar de vez,
e do qual se acerca a meias palavras, criando no espírito do ouvinte
uma expectativa ansiosa. Suas contínuas indagações sobre a
existência do Diabo, a natureza e o poder dele, preparam-nos para
algum mistério espantoso. Quando afinal vem a revelação, embora
pressentida, não deixa de transtorná-lo, a ele e a nós. Tornam-se
então compreensíveis todas as especulações metafísicas do
ex-jagunço, à primeira vista descabidas: se na solidão de sua
velhice ele refez todas as suposições dos teólogos, todas as
teorias da demonologia – chegando a intuir no conceito do diabo a
mera concretização de um aspecto da alma humana – foi por tratar
de assunto seu familiar, intimamente pessoal. O mito atávico do
pacto com o demônio é revivido nele sob forma convincente, como
experiência possível dentro da nossa realidade.
Corolário
do pacto são os acontecimentos inesperados e favoráveis que lhe
corroboram a validade no espírito de Riobaldo. Chega a sentir-se
onipotente, dono do universo, e então entra a vacilar, a dar passos
em falso, a não saber o que fazer e a sentir uma terrível
insatisfação. O poder chega num momento em que de nada serve:
quando desaparecem os obstáculos à sua inconfessável paixão por
seu companheiro Diadorim – moça disfarçada em homem mas cuja
verdadeira identidade só lhe é revelada depois que ela morre –
desaparece também o objetivo dessa paixão.
Em
redor de um mito universal, Guimarães Rosa conseguiu edificar obra
de valor também universal com elementos locais. O seu Riobaldo, ente
inculto, mas dotado de imaginação e poesia, ao passar revista aos
acontecimentos de sua vida acidentada, enfrenta seguidamente todas as
contingências do ser – o amor, a alegria, a ambição, a
insatisfação, a solidão, a dor, o medo, a morte – e relata-as
com a surpresa, a reação fresca de quem as experimentasse pela
primeira vez no mundo, reinventando as explicações dos filósofos
numa formulação pitoresca e ingênua. Como Miguilim, Lélio ou o
velho Camilo, em Corpo de baile, o jagunço Riobaldo também é
trabalhado por inquietações que o fazem sentir a vida diversamente
(“Um sentir é do sentente, mas outro é do sentidor”), e, em sua
linguagem pitoresca de semianalfabeto, descerrar abismos de
psicologia e metafísica.
Mas
todas as audácias da construção, toda a riqueza do conteúdo
filosófico, seriam apenas jogos de inteligência se o sertão de
Guimarães Rosa não fosse também, além de símbolo, realidade viva
e concreta, com seus bichos, plantas, gentes e superstições
admiravelmente descritos; se a narração de Riobaldo não fosse,
além de uma teia engenhosamente urdida, um tecido de casos,
encontros, acontecimentos e cenas de insuspeita autenticidade porque
vistos de seu ângulo de jagunço; e se a intervenção do
sobrenatural não fosse tramada com arte das mais sutis, de modo que
nunca entra em choque com o realismo psicológico. A existência do
Diabo ou a crença na existência dele (“Não é, mas finge de
ser”) são explanações igualmente válidas para o destino de
Riobaldo.
Paulo Rónai, em Rosa & Rónai: O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador
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