No
trapiche de tábuas podres, entulhado de redes, balaios, tralhas,
canoas velhas e pescadores modorrentos, sob um bafo opressivo de
peixe morto, Pablo coçava o cavanhaque, olhando para longe, mochila
às costas. No horizonte despontava um pequeno morro — a Ilha da
Paixão. É para lá que eu vou. Para aquele inferno. Todo ano é
a mesma coisa. E a úlcera me comendo o estômago.
— Vai
pra ilha?
Desviou
os olhos para o pescador sujo que sorria sem dentes, pés na água.
Soltou a mochila das costas e suspirou. A simples ideia de atravessar
o canal já o irritava, uma antecipação ansiosa de desgraças. O
preço que iriam cobrar pelo aluguel da canoa. A chegada na ilha.
Aquela invencível estranheza dos amigos, dos só conhecidos e dos
desconhecidos — tudo igual. Os dois meses pagando os pecados.
Talvez... O homem insistiu:
— Vai
pra ilha?
Não:
não tem mais recuo.
— Vou.
— Eu
posso alugar minha canoa.
Pablo
preparava-se, já sentindo a sombra da pontada no estômago: uma luta
desagradável de acerto de preço, como todas as vezes.
— Esse
caco velho aí?
— Caco
nada! Coisa firme.
— Sei.
Pago quinhentos cruzeiros. E se quiser.
— Por
dia?
— Ah
sim, era só o que faltava. Por dois meses.
— Não.
Assim não dá.
Começou
a se irritar com a aproximação lenta, mas sólida, dos outros
pescadores. Parecem abutres. Pensam que sou rico, que sou turista.
O ano todo juntando dinheiro pra jogar fora em um minuto. Uma
outra voz:
— O
senhor quer por dois meses?
— É.
— Eu
posso levar o senhor lá.
— Não.
No ano passado quase me matei pra conseguir carona de volta.
Desta
vez não dependeria de ninguém: um ligeiro conforto.
— Eu
alugo a minha por dois mil — ofereceu outro pescador.
— Qual
é a sua?
— Aquela
uma.
A
canoa tinha um palmo de água no fundo.
— Dois
mil por essa tralha?!
— Mas
aguenta firme! Vai junto o remo e a lata pra tirar água.
Pablo
coçava o cavanhaque. Fosse rico, alugava um barco a motor no
trapiche dos grã-finos. Chegaria lá espirrando água. Pechinchou:
— Pago
mil e quinhentos.
O
homem vacilava, rosto retalhado de rugas, orelhas grandes, cansaço.
Parecia fazer contas:— O senhor garante que traz de volta?— É
claro. Vou voltar como? A nado? Só não volto se afundar.— Afunda
não. Faz um pouco d’água, mas não afunda.
— Assim
espero. E então?
O
homem não se decidia, Pablo perdeu a paciência, aquela droga de
canoa não valia nada:
— Mil
e seiscentos e pronto!
— Tá
bem.
Correu
um burburinho de aprovação. Pablo tirou o dinheiro do bolso —
eles vão ficar me olhando? — e pagou o homem, nota a nota.
Sobrou quase nada. Agarrou a mochila, uma satisfação momentânea
pela independência que o aluguel representava, pegou o cabo que
prendia a canoa — e jogou-se nela. A canoa empinou, e água suja de
camarão e peixe, acumulada no fundo, se concentrou nos seus pés,
encharcando-lhe os sapatos, meias adentro, enquanto ele inteiro
ameaçava desabar para a frente.
— Porra!
Conseguiu
se equilibrar, ouvindo as gargalhadas do trapiche. Duas remadas
desesperadas, queria estar logo longe dali — o remo enterrando-se
no lodo e a canoa dançando nervosa — e caiu sentado no fundo, a
mochila e ele se enchendo d’água.
— Merda.
Conformava-se:
arregaçou as calças, tirou os sapatos, meias, camisa, atafulhando
tudo na proa, junto aos restos de peixe e camarão, e começou a
esvaziar a canoa em latadas frenéticas. Finalmente, sentando-se no
fundo, pernas estendidas, passou a remar com todas as forças. Ainda
ouvia as risadas prolongadas do trapiche — a ilha longe, teria a
manhã toda a remar.
— PABLO!
Fingiu
não ouvir o grito: boa notícia não seria.
— PABLO!
PAAA... BLOOOÔ!…
Irritado,
olhou para trás. Da ponta do trapiche alguém gritava, mãos em
concha na boca.
— PABLOOOÔ!…
— É
o Miro. É o porra do Miro.
— PABLO!
DÁ UMA CARONA! TÔ SEM DINHEIRO!
Não
ia dar carona. Não vou mesmo! Vou então me matar pra levar esse
pintor de bosta nas minhas costas?! Ele que vá nadando! Com
maior fúria, deu cinco remadas seguidas — e parou. A voz
esganiçada:
— PAA...
BLOÔ!
— Sujeitinho
explorador. Artista de bosta. Levar pra quê? Pra afundar o barco?
Qualquer um vê que não cabem dois aqui. Depois, ele não vai fazer
falta nenhuma.
Mas
não voltou a remar. Devia deixar ele aí. Que se dane. Por que
não arrumou dinheiro, como eu? Ele que alugue o barco dele.
— PABLOOÔ!
PABLOÔ!
— Já
ouvi, idiota.
Mordido
por uma raiva crescente, viu-se fazendo a volta e remando em direção
ao trapiche. Só pra me incomodar. Por que não chegou mais tarde,
que não me encontrava mais? Sou sempre eu que tenho de ajudar os
outros?
Miro
— cabelão encaracolado em volta da cabeça pequena — esperava-o
de braços abertos:
— Pablo,
que bom que você me ouviu! Que legal, cara! Te ver aqui de novo, pra
outra Paixão! Vamos nessa!
Pablo
quieto, Miro falando:
— Gastei
meu último tostão no ônibus pra cá. Se não te encontro, tava
fodido. Pega a mochila pra mim.
Nas
mãos de Pablo a mochila pesou duas toneladas:
— Pô,
a canoa não aguenta.
— Guenta
sim, cara. E aí, tudo bem? Me ajuda aqui.
— O
que é isso?
— Meus
últimos quadros, quer dizer, só esboço. Vou terminar na ilha. Mas,
bah, cara, agora sim, acertei na cor. Depois te mostro.
Os
quadros de Miro — dois metros por um e meio — estavam empacotados
em jornal e papelão, amarrados com pedaços de corda e fita
isolante, num todo frouxo e desengonçado. Pablo transbordava:
— Porra,
Miro. Assim não dá! Pra que trazer esse troço?
Miro
deu uma risada gostosa:
— Pablo,
ah, Pablo, sempre puto da vida! A gente dá um jeitinho de levar.
Segura aí.
A
muito custo — sob o olhar curioso e divertido dos pescadores —
puseram a coisa atravessada na proa. Miro preocupava-se:
— Será
que não vai molhar?
— Eu
quero que afunde. Vambora.
Miro
tentava se ajeitar no pouco espaço restante.
— Pablo,
essa canoa tá toda molhada.
— É
claro. — Jogou a lata: — Comece a secar o barco enquanto eu remo.
— Mas
não tinha uma canoa melhor pra pegar?
— Se
eu soubesse que você viria, alugava um iate.
E
lá foram eles, Pablo na popa remando, Miro no meio tirando água e
segurando os quadros da proa. As risadas dos pescadores se
distanciavam, e uma hora depois ouvia-se apenas o remo ritmado de
Pablo, a respiração funda e a lata de Miro raspando o casco. Mar
calmo, sol alto. Miro suspirou:
— Cansei.
Pablo
remava, bufando. Miro tocava o mar com a mão livre, olhava a
paisagem, o continente longe, uma emoção gostosa:
— É
o maior barato isso aqui. Passei o ano pensando na ilha e na Paixão.
Pablo, se você soubesse o bem que isso me faz!... Minha pintura
cresceu, descobri formas, cores incríveis…
Pablo
remava.
— Eu
era muito bloqueado, sabe? E isso se refletia nos quadros. Não me
soltava. Depois, aquele encontro com a Aninha... Pô, cara, parece
que eu nasci de novo. Você vai ver nos meus quadros. O ruim é que
eu nunca sei quando está pronto, quando é hora de assinar o bruto.
Estraguei muita tela por não saber parar. Nunca te aconteceu?
Estragar alguma coisa porque a gente não sabe parar? Parece que
sempre falta alguma coisa.
Pablo
remava.
— Mas
agora eu já sei o que fazer. Vou me entocar na ilha. Nada de
agitação, de farra. Chego lá, pego uma gruta das rochas do sul
(Você já foi lá? É do caralho!) e fico pintando. Apareço no dia
da representação, só no dia. Faço papel de homem do povo, é
barbada, nem precisa ensaio. Além dessas telas, trouxe outras
enroladas na mochila, ainda sem armação.
Pablo
remava. Essa canoa não vai aguentar. Se der vento…
— E
mudei meus temas também. Aquela crise de cidade, prédios, ruas sem
saída, placas, rodas, emparedamentos, isso não me interessa mais.
Agora quero coisa visceral, sabe? Lá do fundo da gente. E figuras
humanas: alma, corpo, físico, músculos, olhos. Finalmente aprendi a
pintar olhos. O olhar da Aninha... Foi a primeira vez que descobri o
olhar na pintura. Você vai ver os esboços. Quando chegar te mostro.
Será que a Aninha vem esse ano?
Pablo
remava. Miro insistia:
— Você
acha que ela vem?
— Não
sei.
— Você
não gosta dela?
— Eu
acho ela um monte de bosta.
Miro
deu uma risada:
— Pablo,
você é um cara engraçado. Sempre muito na tua.
Pablo
parou de remar. Passou a mão no rosto, deu uma cuspida, suspirou.
Teria que suar sozinho. E remo não é pincel. Remo pesa.
— Vou
fumar, que não aguento mais.
— Uma
boa, Pablo. Me arruma um.
Estava
demorando pra pedir. Abriu a mochila encharcada, tirou dois
cigarros da carteira felizmente seca, a caixa de fósforos. Batia um
vento leve. Deram tragadas fundas, demoradas — Miro fechava os
olhos:
— Que
sensação gostosa... limpo, por dentro e por fora. Dois meses no
paraíso, boia garantida, Aninha... mato, passarinho, gruta, beira de
mar, sol…
— Mosquito,
comida ruim, mulherada fresca, um bando de chatos, dez horas de
ensaio por dia, carregar cruz para os outros…
Emendaram
uma gargalhada que se desdobrou no mar.
— É
isso aí, Pablo: a gente se encontra na risada.
Pablo
suspirou, tentando agarrar pela ponta uma sombra de felicidade:
— Miro,
desta vez eu vou gostar, vou me salvar... — Mas o susto: —
Vambora que vem vento!
— Que
vento?
— Olha
lá!
A
ilha próxima de repente se escondia numa imensa nuvem negra, e o
vento aumentava.
— Mas
que diabo é isso?
— E
esse barco não vai aguentar até o fim!
— Meus
quadros!
Ajoelhado,
Miro abraçava o pacote dos quadros. Pablo, agora sim, ria solto:
— É
hoje que essa merda vai pro fundo!
O
mar engrossando, Pablo remava com fúria:
— Eh,
desgraça de vento!
E
mais ventava, as ondas jogando a canoa sem rumo. De tempos em tempos,
Pablo gritava:
— Segura
firme, Miro!
— Meus
quadros vão voar!
Pablo
remava com força, enquanto a canoa se enchia de água. Começou a se
assustar com a tempestade inexplicável:
— Larga
esses quadros e esvazia a canoa!
— Vou
perder tudo!
— Essa
merda vai virar, seu filho da puta! Larga isso!
— Não
largo!
— Eu
te dou com o remo na cabeça!
— Tá
molhando todos meus quadros!
Não
havia tempo para nada, exceto remar — e Pablo cresceu com a
tempestade, digno ao vento como um conquistador, pressentindo agora
que não seria desta vez o fim, a canoa misteriosamente resistia,
como se planasse. Mas uma secreta sensação de derrota lhe devorava
a grandeza, pequenas misérias que somadas eram um painel medonho de
sofrimento. O que eu estou fazendo aqui, me danando com essa canoa
furada que paguei do meu bolso, carregando um inútil com uns quadros
vagabundos, pegando pneumonia no vento, com cãibras no braço de
tanto remar, para ir trabalhar de graça numa Paixão que ninguém
vai ver e provavelmente fazendo papel de soldado no meio de quarenta
idiotas?
— Aguenta
aí, Pablo, que eu seguro aqui na frente!
Por
que não morre afogado? De repente, a ilha apareceu inteira,
enorme diante deles:
— Estamos
chegando!
No
tempo exato: com três palmos de água, o velho casco foi ao fundo,
felizmente raso — estavam na praia do trapiche, uma pequena enseada
de areia branca e mar transparente.
— Pablo,
salvei meus quadros! — gritava Miro, arrastando a mochila na água
e equilibrando o pacote na cabeça.
— Me
ajuda a puxar o barco, desgraçado!
Pablo
suava. Depois de recolher camisa, meias e sapatos junto à mochila
pendurada dolorosamente nas costas, tentava arrastar a canoa para
terra firme, num esforço descomunal.
— Me
ajuda!…
Inútil
— Miro contemplava a ilha, de joelhos na areia firme, ante a
montanha verde cheia de caminhos, pedras e grutas, dunas e praias,
vento e pássaros. Beijou o chão:
— Terra
abençoada! Você vai ver como vou te pintar, te curtir, te amar…
O
céu se abriu num repente luminoso — e o sol banhou as extensões
da ilha, fazendo explodir a cantoria dos pássaros nas árvores
próximas. Na água, Pablo gemia:
— Me
ajuda!…
Cristovão Tezza, em Ensaio da Paixão
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