sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Em direção ao caminho inverso

A despersonalização como a destituição do individual inútil – a perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser. Pouco a pouco tirar de si, com um esforço tão atento que não se sente a dor, tirar de si, como quem se livra da própria pele, as características. Tudo o que me caracteriza é apenas o modo como sou mais facilmente visível aos outros e como termino sendo superficialmente reconhecível por mim mesma. Assim como há um momento em que M. vê que a vaca é a vaca de todas as vacas, assim ele quer de si mesmo encontrar em si o homem de todos os homens. A despersonalização como a grande objetivação de si mesmo. A maior exteriorização a que se chega. Quem se atinge pela despersonalização reconhecerá o outro sob qualquer disfarce: o primeiro passo em relação ao outro é achar em si mesmo o homem de todos os homens. Toda mulher é a mulher de todas as mulheres, todo homem é o homem de todos os homens, e cada um deles poderia se apresentar onde quer que se julgue um homem. Mas apenas em imanência, porque só alguns atingem o ponto de, em nós, se reconhecerem. E pela simples presença da existência deles, revelarem a nossa.
Aquilo que se vive – e por não ter nome só a mudez pronuncia – é disso que me aproximo através da grande largueza de deixar de me ser. Não porque eu então encontre o nome do nome e torne concreto o impalpável – mas designo o impalpável como impalpável, e o sopro recrudesce como na chama de uma vela.
A gradual des-heroização é o verdadeiro trabalho que se labora sob o aparente trabalho, a vida é uma missão secreta. Tão secreta é a verdadeira vida que nem a mim, que morro dela, me pode ser confiada a senha, morro sem saber de quê. E o segredo é tal que somente se a missão chegar a se cumprir é que, por um relance, percebo que nasci incumbida – toda vida é uma missão secreta. A des-heroização de mim mesma está minando subterraneamente o meu edifício, cumprindo-se à minha revelia como uma vocação ignorada. Até que me seja enfim revelado que a vida em mim não tem o meu nome.
E eu também não tenho nome, e este é o meu nome. E porque eu me despersonalizo a ponto de não ter o meu nome, respondo cada vez que alguém disser: eu.
A des-heroização é o grande fracasso de uma vida. Nem todos chegam a fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a altura de poder cair – só posso alcançar a despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz. É exatamente através do malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a própria mudez e a dos outros, e aceitá-la como a possível linguagem. Só então minha natureza é aceita, aceita com o seu suplício espantado, onde a dor não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos. E é aceita a nossa condição como a única possível, já que ela é a que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição humana é a paixão de Cristo.
Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço da voz. Minha voz é o modo como vou buscar a realidade; a realidade, antes de minha linguagem, existe como um pensamento que não se pensa, e por fatalidade sou impelida a precisar saber o que o pensamento pensa. A realidade antecede a voz que a procura, mas como a terra antecede a árvore, mas como o mundo antecede o homem, mas como o mar antecede a visão do mar, a vida antecede o amor, a matéria do corpo antecede o corpo, e por sua vez a linguagem um dia terá antecedido a posse do silêncio. Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a palavra, é que obtenho o que ela não conseguiu.
E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crúcis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A ela só se chega quando se experimentou o poder da voz e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o próprio instante humano. E só esta, é a glória própria de minha condição.
A desistência é uma revelação.
Desisto, e terei sido a pessoa humana – é só no pior de minha condição que ela é assumida como meu destino. Existir exige de mim o grande sacrifício de não ter força, desisto, e eis que na mão fraca o mundo cabe. Desisto, e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter, a alegria humana. Sei e estremeço – viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono. Chego à altura de poder cair, escolho, estremeço e desisto, e finalmente me votando à minha queda, despessoal, sem voz própria, finalmente sem mim – eis que tudo o que não tenho é meu. Desisto e quanto menos sou mais vivo, quanto mais perco o meu nome mais me chamam, minha missão secreta é a minha condição, desisto e quanto mais ignoro a senha mais cumpro o meu segredo, quanto menos sei mais a doçura do abismo é o meu destino. E então eu adoro.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Nenhum comentário:

Postar um comentário