quarta-feira, 21 de agosto de 2024

As línguas que não aprendi


São duas mil, três mil ou mais? De qualquer maneira o seu número é exatamente igual ao das que nunca hei de aprender. Confissão triste e humilhante para quem desde menino sente pelos idiomas uma espécie de paixão e que, ainda hoje, cada vez que na rua ouve pessoas falarem uma língua desconhecida, tem estremecimentos de inveja.
Quando, pela primeira vez em minha vida, vi uma cédula graúda – podia ter meus sete anos – provavelmente experimentei o desejo de possuí-la, como qualquer um. Se o tive, esqueci-o. Mas lembro-me nitidamente da inquieta curiosidade com que me pus a decifrar as duas palavras – CEM COROAS – que aquela nota ostentava nas oito línguas da desde então finada Monarquia austro-húngara.
Adolescente, alimentei em segredo a esperança de assenhorear-me, com o tempo, do maior número possível de idiomas: vinte, trinta, talvez ainda mais. Um de meus professores assegurava-me que só os quinze primeiros eram difíceis. E nos meus passeios pelos sebos da Europa, ia apanhando cada livro esquisito para dele fazer uso depois, em lazeres que não poderiam deixar de vir: uma gramática ladina ou reto-romana com a chave da pronúncia; o malgaxe em vinte lições; um livro de leitura para o segundo ano primário das escolas de La Valetta, Malta, sem uma única vogal no título; um manual da língua sueca para italianos… verdadeiro bazar de alfarrábios disparatados que os livreiros viam envelhecer na última prateleira e me empurravam quase de graça.
Mas o tempo passou, os lazeres não vieram, a minha biblioteca dispersou-se definitivamente no assédio a Budapeste e todos aqueles idiomas continuam intactos, não revelados, a troçar de mim. Outro terá aprendido, em meu lugar, o malgaxe em vinte lições. E limito-me a sonhar com as oportunidades maravilhosas que perdi.
Num livro islandês teria talvez encontrado resposta às minhas dúvidas; o poeta que melhor exprimiu as minhas angústias, talvez o tivesse feito em haicais japoneses. Mas não nos encontraremos nunca, como se eles não existissem ou eu mesmo não existisse.
O que mais me atormenta são as línguas que principiei a estudar e depois abandonei por falta de tempo, de entusiasmo, de perseverança.
Não me consolo de não haver aprendido o hebraico, que me ensinaram durante alguns anos. Ler os profetas, o Cântico dos Cânticos no original! Mas os meus professores não tinham a menor perícia pedagógica: cortavam o texto em pedacinhos de quatro ou cinco palavras e ditavam a correspondente tradução, literal, estúpida. A gente decorava aquilo e depois recitava-o, soletrando penosamente o original – e era o bastante para inspirar à criança uma aversão insuperável por aqueles caracteres hieráticos, que de início a atraíam tanto.
Outra língua que perdi, já adulto, foi o finês. Em virtude de um pálido, longínquo parentesco com o magiar, os candidatos a professor de húngaro tinham de estudá-lo. Eu era um deles. A gramática finesa ensinou-me muita coisa: por exemplo, que a minha língua materna tinha declinações com mais de uma dúzia de casos e que, até então, usava às mil maravilhas sem suspeitar-lhes a existência. Invejei os finlandeses por possuírem um verbo de negação que permite negar de um modo vago, sem especificação do que se nega – verbo ótimo para senhoras; e lamentei-os por faltarem na sua língua exatamente a letra f e o som correspondente. Nada disso, porém, interessava ao meu examinador; ele só queria saber de mim o desenvolvimento das labiodentais no finês, estoniano, vogul, ostíaco e zurieno. Passei no exame, mas nunca mais pus os pés na aula desse famoso linguista, que em apenas cinquenta anos de ensino conseguiu tirar a um país inteiro a vontade de conhecer outro.
Caso parecido foi o do sânscrito, pelo qual entrei a sentir um começo de paixão. Infelizmente, para o meu mestre o santo idioma da Índia não tinha palavras: era uma coleção de meros radicais. A pedra enchia-se de flechas, traços e símbolos matemáticos que ligavam à raiz sânscrita a flor grega ou o fruto latino que dela brotaram. Só anos depois descobri que o sânscrito também possuía palavras completas e até frases inteiras; mas já era tarde.
Um terceiro professor, a quem só vi uma vez, postou-se à porta do dinamarquês para impedir-me a entrada. Era na primeira aula de um curso da Sorbonne. Havia, além de mim, mais cinco estudantes, todos suecos. O professor passou todo o tempo a corrigir-lhes a pronúncia, eivada de influência sueca. Como a minha pronúncia não estivesse eivada de coisa alguma, não compareci nem à segunda aula nem às outras.
Mais desculpável, acho eu, é a minha ignorância do etrusco. Bem que havia na Universidade de Perugia um curso de etruscologia. Para nos dar o gosto de disciplina, o professor levou-nos a ver um famoso túmulo etrusco nos arredores da velha cidade. Mas os etruscos do túmulo estavam demasiado mortos, em contraste com uma loura estudante norueguesa, chamada Solveig. Desisti do etrusco.
O turco, deixei-o escapar por causa de uma gramática onde havia poucas regras, menos leituras e nenhum exercício de conversação, mas um sem-número de provérbios. Uns bonitos até, como este “A morte é um camelo negro, ajoelha-se a todas as portas”. Eu teria preferido lições mais práticas e larguei o livro apesar de tanto gostar da lei da assimilação vocálica, de que resultam palavras de dez sílabas com outros tantos ii e uu. Talvez a coisa fosse outra, se no livro houvesse pelo menos uma daquelas longas histórias todas em gerúndio: “Um eremita, passando pela floresta, ouvindo o canto de um passarinho, detendo-se e deliciando-se com o canto…” com um único pretérito perfeito – no desfecho rápido e brutal: “… foi devorado por um tigre”.Mas isto só me contaram depois.
Houve também idiomas, não adianta negá-lo, que deixei de aprender por minha culpa. Foi uma leviandade, se não um crime, não ter estudado chinês com meu amigo Kan Woo em Paris, onde ele, por mais estranho que pareça, colhia materiais para um estudo sobre literatura húngara. Mas certas confidências suas me assustavam. Almoçávamos juntos, quase diariamente, no restaurante chinês da rua Victor Cousin, ele com varinhas, eu, por obséquio especial do garçom, de colher e garfo.
Como vai o ensaio, sr. Kan Woo? – perguntei-lhe um dia.— Zá está quase plonto – respondeu-me em sua linguagem frouxa, mas correta. – Só falta copial.
O estudo fora feito em dois meses. A cópia arrastava-se por um ano, e ainda não estava concluída. Quando manifestei a minha estranheza, o meu amigo explicou: o difícil não era escrever o estudo, mas sim caligrafá-lo.
O amigo sabe, estou ploculando intloduzil no meio alguns sinais de tlaçado muito complicado que não folam emplegados há mais de um século. Também nem semple é fácil encontlal telceila lima. E as alitelações, então!
Não quis acreditar que um simples ensaio exigisse rima, aliteração e sinais tão rebuscados, mas o meu amigo assegurou-me que aquilo era assim mesmo. E um ano depois chegou de Xangai a revista Ki ta wen hio yen tsi k’ouan – que até hoje guardo com carinho especial – em que Kan Woo mostrou o meu nome em caracteres latinos, ladeado de hieróglifos os mais esquisitos.
É uma dedicatólia que fiz pala o amigo – disse-me. — Tem duas letlas muito lalas.
Tivesse eu, pelo menos, estudado o sogdiano. Num dos milhares de “campos de trabalho” inventados pelos nazistas, onde passei cinco meses, topei um dia com um amigo querido, especialista, já famoso, em línguas orientais. Os dois nos defendíamos contra o desespero com a leitura nas horas que não levávamos a derrubar uma casa para construir outra, exatamente igual, cinco metros mais adiante. O meu amigo trazia no bolso um texto sogdiano. Era, se bem me lembro, a língua sagrada da antiga Pérsia, conhecida – explicava-me ele – por uns dez filólogos no mundo. E eu podia ser o décimo primeiro! Mas no estábulo onde nos recolhíamos para pernoitar, eu tinha como vizinho um astrólogo. Este me predisse que ia escapar do campo, chegar a uma terra longínqua, e iniciar uma carreira completamente nova. Pois em todas elas o sogdiano me era dispensável. (Viverá ainda o pobre astrólogo? E o meu sábio filólogo, tão desambientado naquela desumana realidade? Terá sobrevivido ao campo de concentração, à deportação, às matanças?).
Em outras línguas que apareceram ao meu alcance não podia mexer, por constituírem exclusividade de amigos. Tocar no catalão seria entrar nos domínios de um bom camarada que, anos após, ensinaria húngaro (a quem?) na Universidade de Barcelona. Outro rapaz de minhas relações apropriara-se do japonês. Mas sobretudo as línguas fino-úgricas, parentes pobres do húngaro, tinham cada uma o seu dono. Um amigo anexara o tcheremisso, e ninguém mais o tirara dali. Durante a Primeira Guerra Mundial desaninhou, entre milhares de prisioneiros russos, um tcheremisso analfabeto, e, com a anuência das autoridades, tomou conta dele, espremendo-lhe do cérebro volumes de contos populares, que saíram num alfabeto especialmente inventado para esse fim. (Um desses contos figura no primeiro volume de Mar de histórias.) Outro conhecido mostrara-me, entre as relíquias da família, uma alentada monografia do pai sobre os pronomes voguis. Ninguém devia bulir naquilo.
Mas que adianta responsabilizar homens, livros e circunstâncias? O que se tinha de aprender, aprendia-se mesmo. Há vinte anos, ao passar por um sebo de Paris, vi exposto na rua um enorme dicionário português por dez francos. Ia comprá-lo, mas a pessoa com quem estava dissuadiu-me:— Ora essa! Nunca você precisará de um dicionário português.
Mas, voltando pela mesma rua, sozinho, duas horas mais tarde, não resisti à tentação e fui procurar o meu dicionário. Tinham-no vendido, e eu julgava encerradas as minhas relações com a última flor do Lácio.
Talvez seja até melhor que tantas línguas me tenham ficado fechadas, recusando-se a entregar-me o seu mistério. Que decepção se verificasse que o armênio era também fecundo em lugares-comuns e a língua de Hafiz se prestava excelentemente aos chavões mais desmoralizados!
1948

Paulo Rónai, em Como aprendi o português e outras aventuras

Nenhum comentário:

Postar um comentário