Em
uma mistura de iorubá e achanti, uma das mulheres perguntou se
estávamos sozinhas, eu respondi que sim, e que morávamos em Uidá
mesmo. Ela então quis saber se tínhamos família e eu contei sobre
a minha avó. Quando soube que éramos apenas nós três, ela disse
que era melhor assim, pois deixaríamos uma só pessoa chorando por
nós, confirmando que seríamos mandadas para o estrangeiro, que
muitos deles já estavam ali havia vários dias, como ela, esperando
para embarcar. Todos os dias chegava mais gente capturada em muitos
lugares da África, falando línguas diferentes e dando várias
versões sobre o nosso destino. Perguntei onde ficava o estrangeiro e
ela não sabia, mas outra mulher que estava por perto disse que era
em Meca. Ela e alguns outros que nos mostrou, dizendo serem
muçurumins, estavam todos indo para Meca, e deveríamos nos alegrar
por Meca ser uma terra sagrada e feliz, para onde todos tinham que ir
pelo menos uma vez na vida, cumprindo as obrigações com Alá. Como
eu não sabia quem era Alá, ela disse que é o todo-poderoso, o que
tudo vê, o que tudo pode, o que tudo sabe, o que nunca se engana. A
muçurumim se chamava Aja e estava acompanhada da irmã, Jamila, e do
Issa, marido das duas, que estava no meio dos homens. Eles pareciam
felizes e tinham chegado ao forte no dia anterior. A Tanisha, a
mulher com quem eu tinha conversado primeiro, disse que não, que
havia um grande engano, que tinha sido aprisionada junto com o marido
e o filho, e estávamos todos sendo levados para o estrangeiro, que
até poderia ser Meca, pois não sabia onde ficava, mas era para
virarmos carneiros dos brancos, pois eles gostavam da nossa carne e
iam nos sacrificar.
As
duas mulheres iniciaram uma discussão e logo todas as outras já
estavam falando ao mesmo tempo. Não éramos muitas, um pouco mais
que os meus dedos e os da Taiwo, que era como eu sabia contar na
época. A grande maioria era de homens, quase todos jovens. A Tanisha
explicou que os lançados tinham matado todos os velhos e as
crianças, alguns pelo caminho e outros logo ao chegarem ao barracão,
e que a Aja ainda não tinha visto nada disso por ter chegado havia
pouco tempo. Disse também que, às vezes, alguns guardas batiam
muito em todos, talvez para amaciar a carne. Os brancos não gostavam
de carne de crianças e de velhos, e nós, eu e a Taiwo, só tínhamos
sido escolhidas porque éramos ibêjis e dávamos sorte. Eu e a Taiwo
estávamos bastante assustadas, e ela começou a chorar e a dizer que
queria a nossa avó, mas a Tanisha não se importou e continuou
falando coisas horríveis, parando apenas quando os muçurumins se
levantaram, viraram todos na mesma direção e começaram a rezar,
segurando um colar de contas. Depois de correrem os dedos por um
certo número de contas, eles se ajoelharam e inclinaram o corpo para
a frente, encostando a testa no chão, para depois se levantarem e
repetirem tudo muitas vezes. Só depois que eles terminaram foi que a
Aja e a Jamila começaram a fazer a mesma coisa, e então reparei nos
panos com que cobriam a cabeça e nos vestidos que iam até os pés.
Eram bonitos, e elas me disseram depois que era um traje de festa e
de grandes ocasiões, como visitar a terra sagrada.
Eu
queria que o Kokumo e a minha mãe estivessem por perto, porque
talvez eles soubessem o que fazer, ou pelo menos em quem acreditar,
já que eu não sabia. Tanto a Tanisha quanto a Aja pareciam ter
muita certeza do que diziam, mas, em qualquer das hipóteses, eu
estava muito preocupada com a minha avó, que não sabia onde
estávamos. Se soubesse, ela poderia falar com o Ayodele, que
conhecia muitos estrangeiros e talvez até conhecesse o Chachá, que
a Tanisha disse ter o poder de mandar prender e mandar soltar quem
bem entendesse. Não perguntei como ela sabia de tudo aquilo, mas
desconfio que tivesse ouvido nas conversas dos lançados, pois disse
também que o Chachá nos trocava por armas, fumo, pólvora e
bebidas, e que eu e a Taiwo, se não fôssemos ibêjis e para
presente, não seríamos trocadas porque éramos pequenas e valíamos
pouco. Por isso eles tinham deixado os outros filhos dela em Oyó, os
três menores, e pegado apenas o marido, Amari, e o filho mais velho,
que se chamava Daren porque tinha nascido à noite.
Somente
quando entraram alguns guardas, distribuindo feijão, farinha, inhame
e tinas de água que passavam de mão em mão, foi que percebi como
estava com fome. Nem todos ganharam, como alguns homens que estavam
amarrados a um canto, de castigo por terem brigado. Primeiro,
brigaram entre si, e a Tanisha não soube dizer o motivo porque eles
falavam uma língua que ela não conhecia, e quando os guardas
tentaram separar a briga, avançaram em cima deles. Mesmo quem antes
estava quieto entrou na briga, e só não participaram os muito
cansados por terem chegado havia pouco tempo, às vezes caminhando
desde muito longe, e os que ainda não tinham sido desamarrados. E
nem as mulheres. Mas logo apareceram mais guardas, que conseguiram
controlar a briga e levar seus companheiros para fora, alguns bem
machucados, outros provavelmente mortos. Entre os pretos havia mortos
com certeza, pois lutaram com homens armados e deixaram no armazém o
cheiro que reconheci, cheiro de sangue, o mesmo do riozinho do Kokumo
e da minha mãe. O vestido novo da Taiwo estava sujo de terra e,
quando perguntei, ela disse que o meu também estava. Mesmo assim,
continuávamos as mais limpas entre todos os prisioneiros, muito mais
ainda do que os que estavam de castigo. Alguns deles estavam
amarrados por uma só corda que prendia os pulsos aos tornozelos, o
que fazia com que mantivessem as pernas dobradas e as cabeças
enfiadas entre os joelhos. A Tanisha disse que, desde a briga, três
deles haviam morrido e ainda não tinham sido retirados, estavam em
um canto, cobertos com uma antiga vela de navio, e que logo o cheiro
começaria a incomodar ainda mais. Como se já não incomodasse, como
se fosse possível respirar bem em um ambiente onde, sabe-se lá há
quanto tempo, acumulavam-se os cheiros de sangue, de urina e de
merda, que venciam facilmente a terra jogada por cima do buraco
cavado no chão quando precisávamos fazer as necessidades.
Era
noite, dava para perceber a falta de claridade por entre a palha do
teto, quando a porta se abriu e entraram mais capturados, todos
homens. Àquela altura, eu já achava que a Tanisha estava certa, que
éramos mesmo prisioneiros e seríamos trocados por mercadorias do
estrangeiro. Mercadorias vendidas nos mercados de Uidá e, quem sabe,
até no de Savalu, e que provavelmente nós mesmos já tínhamos
comprado quando outras pessoas foram trocadas. Os novos prisioneiros
chegaram amarrados uns aos outros pelos pés e pelo pescoço,
vigiados por guardas que carregavam lanças em uma das mãos e tochas
acesas na outra. O lugar já estava bastante cheio e quase não havia
espaço para eles, mesmo porque muitos estavam deitados, dormindo.
Para que se sentassem e dessem lugar para mais pessoas, foram
cutucados com lança e com fogo, e quando parecia que iam reagir por
causa do susto, foram contidos a pontapés e com ameaças de
queimadura de verdade. A lança, a Tanisha disse que só usariam em
último caso, para se defenderem, porque poderia matar e o Chachá
não gostava de perder mercadoria, o que significava perder dinheiro.
Alguns guardas tinham um pano amarrado por cima do nariz e gritaram
que éramos uns porcos, que merecíamos o destino que nos seria dado
pelos dois brancos que entraram logo em seguida, os mesmos que eu
tinha visto na praia. Eles mandaram que os guardas fossem na frente,
iluminando com as tochas, e seguiram passando os olhos sobre nossas
cabeças, como se estivessem contando. O que nos tinha escolhido não
nos reconheceu, e fiquei com medo de que não nos quisesse mais para
presente, que tivesse mudado de ideia e nós também virássemos
carneiros. Eu sentia muita vontade de chorar, mas não queria
amedrontar ou entristecer a Taiwo ainda mais.
Quando
os homens saíram, a Tanisha nos abraçou e disse que logo
partiríamos. Os muçurumins se alegraram e viraram todos na mesma
direção, repetindo juntos e inúmeras vezes uma única palavra, que
não consegui entender. A Tanisha chorava e, encostada no peito dela,
que era magro igual ao da minha avó, eu pensei em Xangô, em Nanã,
em Iemanjá e nos Ibêjis, pedindo que estivessem sempre conosco, e
mesmo quando fôssemos embora dali, que fossem junto. Acho que foi a
primeira vez que os senti. Abracei a Taiwo e coloquei a cabeça dela
sobre os peitos de Nanã, e fiquei com os de Iemanjá. Xangô
sentou-se ao nosso lado e passou a mão sobre nós, abençoando, e os
Ibêjis cantaram até que conseguíssemos dormir. Foi como cachaça,
não como felicidade, mas sentimos uma quentura por dentro do corpo
abrandando a tristeza. Era o que dava para sentir, porque, mesmo se
tivéssemos ayo20 em nossos nomes, como a Titilayo e o Ayodele, não
ficaríamos felizes pensando que nunca mais veríamos a nossa avó,
nem a esteira nova, nem a casa nova, nem a estátua dos Ibêjis, da
qual não era bom que eu e a Taiwo nos afastássemos, pois eles nos
protegiam.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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