III
Por
modo de nossa vivência ponho por caso Bernardo.
Bernardo
nem sabia que houvera recebido o privilégio
do
abandono.
Ele
fazia parte da natureza como um rio faz, como
um
sapo faz, como o ocaso faz.
E
achava uma coisa cândida conversar com as águas,
com
as árvores, com as rãs.
(Eis
um caso que há de perguntar: é preciso estudar
ignorâncias
para falar com as águas?)
Ele
falava coisinhas seráficas com as águas;
Bernardo
morava em seu casebre na beira do rio —
moda
um ermitão.
De
manhã, bem cedo, ele pegava de seu regador e ia
regar
o rio.
Regava
o rio, regava o rio.
Depois
ele falava para nós que os peixes também
precisam
de água para sobreviver.
Perto
havia um brejo canoro de rãs.
O
rio encostava as margens na sua voz.
Seu
olhar dava flor no cisco.
Sua
maior alegria era de ver uma garça descoberta no
alto
do rio.
Ele
queria ser sonhado pelas garças.
Bernardo
tinha visões como esta — eu via a manhã
pousada
sobre uma lata que nem um passarinho no
abandono
de uma casa.
Era
uma visão que destampava a natureza de seu olhar.
Bernardo
não sabia nem o nome das letras de uma
palavra.
Mas
soletrava rãs melhor que mim.
Pelo
som dos gorjeios de uma ave ele sabia sua cor.
A
manhã fazia glória sobre ele.
Quando
eu conheci Bernardo o ermo já fazia
exuberância
nele.
Manoel de Barros, em Menino do mato
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