sábado, 27 de julho de 2024

Menino do mato

III

Por modo de nossa vivência ponho por caso Bernardo.
Bernardo nem sabia que houvera recebido o privilégio
do abandono.
Ele fazia parte da natureza como um rio faz, como
um sapo faz, como o ocaso faz.
E achava uma coisa cândida conversar com as águas,
com as árvores, com as rãs.
(Eis um caso que há de perguntar: é preciso estudar
ignorâncias para falar com as águas?)
Ele falava coisinhas seráficas com as águas;
Bernardo morava em seu casebre na beira do rio —
moda um ermitão.
De manhã, bem cedo, ele pegava de seu regador e ia
regar o rio.
Regava o rio, regava o rio.
Depois ele falava para nós que os peixes também
precisam de água para sobreviver.
Perto havia um brejo canoro de rãs.
O rio encostava as margens na sua voz.
Seu olhar dava flor no cisco.
Sua maior alegria era de ver uma garça descoberta no
alto do rio.
Ele queria ser sonhado pelas garças.
Bernardo tinha visões como esta — eu via a manhã
pousada sobre uma lata que nem um passarinho no
abandono de uma casa.
Era uma visão que destampava a natureza de seu olhar.
Bernardo não sabia nem o nome das letras de uma
palavra.
Mas soletrava rãs melhor que mim.
Pelo som dos gorjeios de uma ave ele sabia sua cor.
A manhã fazia glória sobre ele.
Quando eu conheci Bernardo o ermo já fazia
exuberância nele.

Manoel de Barros, em Menino do mato 

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