Capítulo 151 | Filosofia dos Epitáfios

Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios.
E, aliás, gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos.

Machado de Assis, em Memórias Póstuma de Brás Cubas

o resumo

nas manhãs de segunda-feira no hotel, enjoados, nenhuma
renda à vista, e famintos, famintos há meses, a
próxima garrafa era tudo a que nos aferrávamos, era
o ápice, era Deus.

eu arrumava um emprego por um ou dois ou até mesmo três ou quatro
dias
mas chegaria a manhã em que não conseguiria ir
ao trabalho
e vez ou outra me pagavam os dias ali na hora
mas na maior parte do tempo havia uma terrível espera,
tínhamos que enrolar o gerente do hotel, aquele mesmo
gerente que telefonava para nossos quartos duas ou três vezes à
noite
pedindo que por favor parássemos
a cantoria os palavrões os gritos os sons
de coisas quebrando

mas as manhãs de segunda-feira sempre pareciam ser nosso tempo
nossa folga
e por volta das 11h30 eu me levantava e descia e
olhava nas lixeiras e apanhava os dois jornais
dominicais
e os trazia de volta comigo
e então os líamos juntos
na cama: as curiosidades, as notícias do mundo, as
seções de viagem e variedades, tudo menos
os classificados, a seção de
empregos…
creio que encorajávamos um ao outro –
ela afetava não dar bola
para nada e eu seguia pelo mesmo
caminho.

depois dos jornais matutinos batíamos perna pela rua,
ah, que par!: ela tossindo em torno do
cigarro, eu com o cabelo desgrenhado, perdido em alguma
vastidão
interior ou exterior.

encontrávamos portas: havia a Russa Louca, às vezes
a sorte estava com ela; havia também Lily Banguela
que vivia com uma modelo em fim de carreira que de quando
em quando arrumava um trampo – por vezes eram boas parceiras
de bebida; ou havia Eddie, o advogado
cassado.

sempre havia bebida em algum lugar; sempre alguém
com sorte, e assim como íamos atrás deles
eles vinham atrás de nós
eles nos encontravam
e o que quer que tivéssemos para beber dividíamos
com eles.
e sempre havia histórias, principalmente sobre
entrar e sair da prisão ou sobre aqueles que tinham
morrido: “lembram aquele cara com uma marca de queimadura no
rosto que sempre sentava no banco perto da entrada
e fumava aqueles mata-ratos? bem, ele se...”

sentados calmamente falando em algum lugar, de hábito
nessas manhãs de segunda-feira:
Marty esteve
fora por três dias e noites seguidos e quando abriu a
porta lá estava Edna sentada na cadeira, dura feito
pedra, devia estar morta há uns dois
dias...”

não sei, me parecia um tempo bem decente, o sol
brilhava constante e forte e firme e
as noites eram melhores, escuras e interessantes noites
porque então as bebidas estavam no comando e
o mundo quase parecia um lugar
aceitável.

ainda assim, é curioso, me lembro bem das segundas,
era quando os outros começavam suas semanas de
trabalho, aferrados ao sonho da indústria, uma indústria
que os cuspiria fora
quando não fossem mais
necessários.

nós mesmos já tínhamos nos cuspido fora, incapazes de
acreditar em nada daquilo, tínhamos nos livrado das ameaças
dos sombrios soberanos, estávamos bem próximos da
liberdade, éramos milionários das segundas-feiras e
jamais poderíamos perder
isso.

sentados naquelas peças minúsculas
rindo, falando, engasgando, bebendo, nós
os ferrados
ali –
quase perfeitos, quase sábios mas
não de todo, isso teria estragado
tudo – quase mais loucos do que os que haviam
nos criado –
fizemos o que
fizemos.

Charles Bukowski, em Miscelânea septuagenária: contos & poemas

Titilayo


Na manhã seguinte, quando uma filha chegou para substituí-la, a dona da barraca disse que podíamos ficar com ela e a família até encontrarmos um lugar só nosso. Ela se chamava “a felicidade eterna”, Titilayo, e morava em uma casa perto do mercado, onde ajeitamos as nossas coisas em um comprido corredor ao lado da porta dos fundos, o que para nós também era novidade, pois a nossa casa não tinha divisão alguma e apenas uma porta. Eu e a Taiwo estranhamos o quintal, que era cercado e muito pequeno, se comparado ao nosso em Savalu, e não abrigaria nem a sombra do iroco. Mas a casa, apesar de simples, nos pareceu bastante grande. Era dividida em três cômodos, todos quartos, separados quase até o teto por grossas divisórias de palha misturada com barro. No primeiro deles, perto da porta que dava para a rua, ficava a esteira da Titilayo e a da sua filha Nilaja com os dois filhos, um menino e uma menina. A filha da Nilaja era quase do mesmo tamanho que eu e a Taiwo e se chamava Aina, pois tinha nascido com o cordão do umbigo enrolado em volta do pescoço. O menino, Akin, era um pouco mais velho e, pelo nome, estava destinado a se tornar um grande guerreiro quando crescesse. Eu me lembrei do Kokumo e do Babatunde, e contei para o Akin que o meu irmão também teria sido um grande guerreiro se não tivesse virado rio. O Akin disse que as pessoas não viram rio e perguntou se eu e a Taiwo já tínhamos visto o mar, que era o maior rio do mundo. Como dissemos que não, ele quase nos arrastou até lá, tamanha era a ansiedade em nos mostrar o que chamava de a grande maravilha de Olorum.
Demoramos bastante para chegar até o mar, a pé ou de boleia com um canoeiro conhecido do Akin, através de uma confusa mas bonita mistura de canais, lagoas, pequenas ilhas e bancos de areia. Eu achei que o mar era da cor do pano de Iemanjá que a minha avó tinha em Savalu, só que mais brilhante e mais macio. Tocado pelo vento, o mar ia de um lado para outro, fingia que ia e voltava. A Taiwo sorriu, eu sorri e fiquei com vontade de que a minha avó estivesse junto para sorrir também, se ainda soubesse. Desde a casa, tínhamos passado pela terra vermelha das ruas de Uidá, depois pelo verde do mato baixo e ralo que dava chão para as palmeiras, pelos diversos tons dos rios, das lagoas e das ilhotas, e, por fim, pela brancura da areia. Eu já estava bastante admirada com todas aquelas cores vivas e contrastantes e com o grande movimento de canoas e outras pequenas embarcações, mas nunca poderia imaginar a beleza do mar. Areia eu já tinha visto, é claro, no fundo dos rios de Savalu, como contei para a Aina e o Akin. Disse também que se alguém juntasse todos os rios de Savalu, e todo o rio de Savalu até Uidá, também dava um mar. Mas depois fiquei em dúvida, porque vi que o mar corria para todos os lados, a perder de vista. Meus novos amigos apenas sorriram, porque não conheciam o rio de Savalu, que de maneira alguma era mais bonito que o mar. Mas quanto a isto eu me calei, não querendo admitir que eles conheciam mais maravilhas do que eu e a Taiwo, que, de início, ficamos com um pouco de medo de entrar na água. Mas ao vermos como a Aina e o Akin estavam se divertindo, não resistimos e percebemos que a água do mar era mais quente que a água do rio. Agora, quando me recordo, sou capaz de reviver cada uma daquelas sensações.
Quando voltamos para casa, a minha avó estava brava, mas a Titilayo sorriu e disse que era bom para uma pessoa ser apresentada ao mar o quanto antes, pois era uma visita à morada de Iemanjá. A minha avó quis argumentar, mas não deu tempo, pois logo em seguida chegou a Nourbesse com a Hanna amarrada às costas. Elas eram a nora e a neta da Titilayo, esposa e filha do Ayodele, filho dela que trabalhava em plantações de algodão distantes de Uidá e só voltava para casa de vez em quando, nos intervalos entre plantação e colheita. Eles dormiam no quarto do meio, e, no outro, dormiam a Meni, a Sanja e a Anele, as três filhas solteiras da Titilayo. Em seu quarto, a Titilayo tinha uma Oxum com uma racha enorme, um Xangô com seu machado de duas pontas e um Ogum que parecia vigiar, com seus olhos atentos de caçador, uma coleção de ferramentas bem pequenas. Comentei que eram muito bonitas e o Akin disse que tinham sido feitas pelo pai dele antes de ir embora. Lembro-me de que naquele momento invejei bastante o Akin e a Aina, por terem nascido em Uidá e por terem conhecido o pai, que tinha deixado para eles aquelas lindas lembranças. A minha mãe não gostava de falar sobre o nosso pai, meu e da Taiwo; dizia que nem se lembrava mais dele, e eu não tinha coragem de perguntar para a minha avó.
Todos nos receberam muito bem, e na nossa primeira noite na casa teve festa com carne fresca assada na fogueira e muito aluá, que a Titilayo vendia no mercado para acompanhar os acarás. Todo mundo dançou, menos a minha avó, que disse estar cansada e foi se deitar. Depois que ela saiu, eu e a Taiwo também dançamos, uma olhando nos olhos da outra, testa contra testa. A Aina e o Akin acharam engraçado e dançaram assim também, enquanto todos sorriam e cantavam, e eu pensei que assim estava bem melhor. A Titilayo era viúva e os filhos dela não tinham mais pai, assim como eu e a Taiwo nunca tivemos pai e também não tínhamos mais mãe, e mesmo assim eles não perderam a vontade de cantar, dedançar e de sorrir. A Anele era a mais bonita das filhas, a Sanja era a mais bem-vestida e usava sempre uma roupa azul que ia do pescoço até os pés, e a Meni dançava quase tão bem quanto a minha mãe. Era estranho, mas eu me sentia muito à vontade entre eles, como se estivesse na minha casa. Quando eu e a Taiwo fomos nos deitar, a Titilayo colocou uma esteira nova para nós duas, maior do que a que tínhamos em Savalu. A minha avó ainda estava acordada, de joelhos em frente a um altar montado com pedras cobertas por um pano branco, sobre o qual estavam Xangô, Nanã e os Ibêjis. Ela olhava para eles como se não estivessem ali, e também não nos ouviu quando pedimos a bênção.
No dia seguinte, a minha avó começou a trabalhar no mercado, ajudando na barraca da Titilayo, enquanto eu e a Taiwo fomos levadas para conhecer a cidade. As lojas e as casas nos pareceram os palácios descritos pela minha avó, os de Abomé. Eu me lembro de que achei interessantes as lojas, pequenos mercados dentro das casas, que vendiam de tudo um pouco, coisas de comer e de beber, panos, fitas, miniaturas como as que o pai do Akin tinha feito, enfeites, estátuas e muitos outros produtos que o nosso amigo disse serem de um lugar que se chamava estrangeiro e ficava muito longe, depois do mar. Durante muitos dias eu fiquei pensando no mar e, principalmente, no estrangeiro, fazendo planos para conhecê-lo e saber se era mais bonito que Uidá.
Já estávamos em Uidá havia quase duas semanas quando comecei a perceber como o Akin era esperto e inteligente. Ele conhecia quase todos os donos das lojas, pois de vez em quando fazia alguns trabalhos para eles, como limpar o chão, levar recados ou entregar encomendas. Foi dele a ideia de andar comigo e com a Taiwo pelas lojas e pedir presentes em nome dos Ibêjis, qualquer coisa, desde que não fizesse falta, e o único que não deu foi um muçurumim, dono de uma loja de tecidos, que usava um chapéu que eu achei muito estranho. Em Savalu, quase toda gente usava chapéu, principalmente nos dias de festa no mercado, e alguns eram muito bonitos, enfeitados com papéis coloridos e fitas. Quando voltamos para casa, foi porque não conseguíamos mais carregar todos os presentes que ganhamos, e a minha avó novamente ficou brava, mas, no fundo, acho que gostou. A Titilayo riu e disse que éramos mais espertos do que ela imaginava, mas que não devíamos fazer aquilo novamente porque os tempos estavam difíceis e as pessoas poderiam não ter o que dar. Como ninguém gostava de recusar presentes aos Ibêjis, acabavam gastando o que não podiam ou se desfazendo do que precisavam, sem contar que ainda tinham que economizar dinheiro para quando começasse a época das chuvas, em que quase não havia movimento no mercado, nem o quevender ou colher, e faltava trabalho para muita gente. Os rios e lagoas transbordavam, engolindo as terras e os caminhos e dificultando os negócios. O Akin disse que então só pediríamos nas casas dos ricos, dos comerciantes que vendiam gente e moravam do outro lado da cidade. O Ayodele, que tinha voltado dos campos de algodão, avisou que não era para irmos lá de jeito nenhum, pois eles nos colocariam dentro de um navio e nos mandariam como carneiros para o estrangeiro. Eu perguntei o que era navio e ele respondeu que era uma canoa muito grande, bem maior do que a que tinha nos levado de Savalu para Uidá.
Naqueles dias, com tantas descobertas, eu me sentia como se tivesse nascido de novo, em uma outra época, em um lugar muito diferente de tudo que eu pensava existir. O Ayodele conhecia Savalu, pois já tinha ido e voltado de Natitingou, que ficava muitos dias de viagem depois da minha terra, para onde tinha levado alguns estrangeiros que queriam comprar fazendas. Eu gostava do Ayodele, que tinha um nome que significava “a alegria vem para o lar”, e ele era assim mesmo, como a mãe, distribuindo alegria a todos quando estava em casa. Principalmente à Nourbesse, que, como ele afirmava, seria sua única esposa. Eu pensei que também ia querer um marido só para mim, ou então ser a primeira esposa. A Titilayo tinha sido a primeira esposa e, quando o marido morreu, ficou com a casa só para ela, pondo as outras mulheres na rua. Ela contava essa história e ria muito, o que em si já era engraçado porque, sendo gorda, a barriga dela não parava de balançar, fazendo todo mundo rir junto, menos a minha avó. A Titilayo dizia que eu e a Taiwo éramos abençoadas e que fazia muito gosto em nos receber em sua casa.
Alguns dias mais tarde, a minha avó foi ver o mar. Ela se sentou em um matinho perto da areia e ficou olhando durante um longo tempo. Com muito cuidado, eu e as outras crianças entramos na água, a Hanna também, amarrada às costas da Aina. Ela já gostava do mar, a abençoada Hanna que tinha nascido perto daquela beleza toda. Tenho certeza de que o Kokumo também teria gostado demais, pois ele já adorava o rio, que era muito menor e mais feio. Eu também pensava na minha mãe, que poderia ganhar mais dinheiro dançando no mercado de Uidá, frequentado por mais gente. Muitos brancos iam ao mercado de Uidá, brancos iguais aos que eu tinha visto uma única vez em Savalu. Os brancos de Uidá não eram apenas viajantes; a maioria morava na cidade ou nas vizinhanças e tinha bastante dinheiro. Era uma grande confusão quando iam às compras, pois todos queriam vender para eles, que não se importavam de pagar o preço pedido, sem negociar. Não andavam sozinhos, levavam sempre alguns pretos carregadores que, mais cedo ou mais tarde, segundo o Akin, virariam carneiros no estrangeiro. Eu olhava para eles e achava que não eram diferentes de nós, que não se pareciam com carneiros, mas o Akin confirmou que, de algum modo que não sabia como, os pretos que iam para o estrangeiro se transformavam em carneiros sim, e eram assados e comidos como carneiros, carne que os brancos muito apreciavam. Estranhei aquela informação e fiquei tentando me lembrar de que cor era Xangô, já que ele também gostava de carneiros, como os que a minha avó sacrificava. Mas eram carneiros que já tinham nascido assim, como eu mesma tinha visto, e não gente que virava carneiro. O Akin disse que algumas pessoas não viravam, tanto que ele conhecia quem já tinha ido até o estrangeiro e voltado, contando como era longe. Perguntei se havia guerreiros no estrangeiro e ele respondeu que não, nem imagino o porquê, mas me recordo que na hora pensei como teria sido melhor para a minha mãe e para o Kokumo terem vivido no estrangeiro, longe dos guerreiros do Adandozan e onde talvez nem fossem abikus. O Akin perguntou se eu e a Taiwo queríamos ser esposas dele e nós dissemos que sim, e como a Taiwo tinha nascido primeiro, ela seria a primeira esposa. Eu, que queria um marido só para mim, não me importei de ser a segunda esposa, desde que fosse por ela, talvez por causa daquilo que já falei, de pensar em nós duas como se fôssemos uma só. A Aina disse que se o Kokumo não tivesse morrido, ela ia querer ser esposa dele, e então poderíamos morar todos juntos, na mesma casa. Tenho boas recordações daquele tempo, quando tudo era novo, todos os momentos eram felizes e eu nem sequer imaginava o que ainda estava para acontecer.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

Acerca das naturezas

Toda natureza se contenta consigo mesma quando segue bem seu caminho. A natureza racional caminha bem quando não consente com falsidades ou incertezas; quando dirige seus impulsos unicamente para o bem social; quando restringe desejos e repulsões ao que depende dela; quando se satisfaz com o que lhe é atribuído pela natureza comum.
As naturezas particulares compõem a natureza universal, assim como a da folha pertence à da planta. A diferença é que a natureza da folha é parte de uma que é desprovida de percepção ou razão e está sujeita a impedimentos. A natureza do homem, por outro lado, participa de uma que não pode ser impedida e que é inteligente e justa por atribuir a tudo porções equivalentes e proporcionais ao seu valor, ao seu tempo, à sua substância, à sua causa, à sua atividade e ao seu incidente.
Não examine para descobrir que qualquer coisa comparada com outra é idêntica em todos os aspectos. Analise juntando as partes de uma e comparando-as com as partes juntas de outra.

Marco Aurélio, em Meditações

Carmo Emilio Gadda, o pasticciaccio



O Que Carlo Emilio Gadda tinha em mente, pondo-se a escrever, em 1946, Quer pasticciaccio brutto de via Merulana, era um romance policial mas também um romance filosófico. O enredo policial era inspirado num crime que ocorrera recentemente em Roma. O romance filosófico se baseava numa concepção enunciada desde as primeiras páginas: não se pode explicar nada se nos limitarmos a buscar uma causa para cada efeito, pois cada efeito é determinado por uma multiplicidade de causas, sendo que cada uma delas tem várias outras por trás; portanto, todo fato (um crime, por exemplo) é como um redemoinho em que convergem diversas correntes, cada uma movida por impulsos heterogêneos, nenhuma das quais pode ser negligenciada na busca da verdade.
Uma visão do mundo como “sistema de sistemas” estava exposta num caderno filosófico encontrado entre os papéis de Gadda após sua morte (Meditazione milanese). O escritor, partindo de seus filósofos preferidos, Spinoza, Leibniz, Kant, construíra um “discurso do método” pessoal. Cada elemento de um sistema é sistema por sua vez; cada sistema singular se liga a uma genealogia de sistemas; toda mudança de um elemento implica a deformação do sistema inteiro.
Mas aquilo que mais conta é como essa filosofia do conhecimento está refletida no estilo de Gadda: na linguagem, que é um denso amálgama de expressões populares e doutas, de monólogo interior e de prosa de arte, de dialetos diferentes e de citações literárias; e na composição narrativa, em que os mínimos detalhes se agigantam e acabam por ocupar todo o quadro e por esconder ou cancelar o desenho geral. Assim sucede nesse romance, em que o enredo policial pouco a pouco é esquecido: talvez estejamos justamente a ponto de descobrir quem matou e por que, mas a descrição de uma galinha e dos excrementos que esta galinha deposita no chão se torna mais importante do que a solução do mistério.
É o caldeirão fervente da vida, é a estratificação infinita da realidade; é o emaranhado inextricável do conhecimento que Gadda quer representar. Quando essa imagem de complicação universal que se reflete em cada mínimo objeto ou evento chega ao paroxismo extremo, é inútil perguntar-nos se o romance está destinado a ficar inacabado ou se poderia continuar até o infinito, abrindo novos turbilhões no interior de cada episódio. A verdadeira coisa que Gadda tinha a dizer é a superabundância congestionada dessas páginas por meio da qual toma forma um único e complexo objeto, organismo e símbolo que é a cidade de Roma.
Pois é bom dizer logo que este não quer ser apenas um romance policial e um romance filosófico, mas também um romance sobre Roma. A Cidade Eterna é a verdadeira protagonista do livro, em suas classes sociais da média burguesia aos marginais, nas vozes de sua fala dialetal (e dos vários dialetos, sobretudo meridionais, que afloram em seu melting-pot), na sua extroversão e em seu inconsciente mais turvo, uma Roma em que o presente se mistura ao passado mítico, em que Hermes ou Circe são evocados a propósito das histórias mais plebeias, em que personagens de domésticas ou de ladrúnculos se chamam Eneias, Diomedes, Ascânio, Camila, Lavínia, como os heróis e as heroínas de Virgílio. A Roma andrajosa e esganiçada do cinema neorrealista (que justamente naqueles anos vivia sua idade de ouro) adquire no livro de Gadda uma espessura cultural, histórica, mítica que o neorrealismo ignorava. E também a Roma da história da arte entra em jogo, com referências à pintura renascentista e barroca (como a página sobre os pés desnudos dos santos, de enormes hálux).
O romance de Roma, escrito por alguém que não é de Roma. De fato, Gadda era milanês e se identificava profundamente com a burguesia de sua cidade natal, cujos valores (concretude prática, eficiência técnica, princípios morais) sentia atropelados pela predominância de uma outra Itália, trapalhona, barulhenta e sem escrúpulos. Mas, mesmo se os seus contos e o romance mais autobiográfico (La cognizione del dolore) deitam raízes na sociedade e na fala dialetal de Milão, o livro que o colocou em contato com o grande público foi esse romance escrito em grande parte em dialeto romanesco, em que Roma é vista e entendida com uma participação quase fisiológica mesmo em seus aspectos infernais, de sabá diabólico. (Contudo, no período em que escreveu o Pasticciaccio, Gadda conhecia Roma só por ter vivido lá apenas alguns anos, na década de 30, quando encontrara emprego nas instalações termoelétricas do Vaticano.)
Gadda era o homem das contradições. Engenheiro eletrotécnico (exercera a profissão durante cerca de dez anos, sobretudo no exterior), buscava dominar com uma mentalidade científica e racional o seu temperamento hipersensível e ansioso, mas só fazia exasperá-lo; e desforrava na escrita sua irritabilidade, suas fobias, os paroxismos misantrópicos que na vida reprimia sob a máscara de uma urbanidade cerimoniosa de gentil-homem de outros tempos.
Considerado pela crítica como um revolucionário da forma narrativa e da linguagem, um expressionista ou um sequaz de Joyce (fama que ele teve desde o começo nos ambientes literários mais exclusivos e que se renovou quando os jovens da nova vanguarda dos anos 60 o reconheceram como seu mestre direto), era, quanto aos gostos literários pessoais, afeiçoado aos clássicos e à tradição (seu autor favorito era o calmo e sábio Manzoni); e os seus modelos na arte do romance eram Balzac e Zola. (Do realismo e naturalismo do Oitocentos possuía alguns dos dons fundamentais, como a construção das personagens e ambientes e situações por meio da fisicidade corpórea, as sensações materiais, como a degustação de um copo de vinho no almoço com que se abre esse livro.)
Ferozmente satírico em relação à sociedade de seu tempo, animado por um ódio que chegava a ser visceral por Mussolini (conforme prova o sarcasmo com que nesse livro é evocada a queixada do Duce), em política Gadda era alheio a qualquer radicalismo, um moderado homem da ordem, respeitador das leis, nostálgico da boa administração de antigamente, um bom patriota cuja experiência fundamental fora a Primeira Guerra Mundial combatida e sofrida como oficial escrupuloso, com a indignação que jamais lhe faltara contra o mal que pode ser provocado pela improvisação, pela incompetência, pelo voluntarismo. No Pasticciaccio, cuja ação se presume desenvolvida em 1927, no início da ditadura de Mussolini, Gadda não se limita a uma caricatura fácil do fascismo: analisa capilarmente que efeitos provoca sobre a administração cotidiana da justiça a falta de respeito pela divisão dos três poderes teorizada por Montesquieu (e o apelo ao autor do Esprit des lois é feito explicitamente).
Essa necessidade contínua de concretude, de individuação, esse apetite de realidade são tão fortes a ponto de criar na escritura de Gadda congestão, hipertensão, engarrafamentos. As vozes das personagens, seus pensamentos, suas sensações, os sonhos do inconsciente se misturam com a onipresença do autor, com suas explosões de sofrimento, seus sarcasmos e a densa rede de alusões culturais; como na performance de um ventríloquo, todas essas vozes se sobrepõem no mesmo discurso, às vezes na mesma frase, com mudanças de tom, modulações, falsetes. A estrutura do romance se deforma por dentro, pela excessiva riqueza da matéria representada e pela excessiva intensidade com que o autor a carrega. As dramaticidades existencial e intelectual desse processo são totalmente implícitas: a comédia, o humor, a transfiguração grotesca são os modos de expressão naturais desse homem que viveu sempre extremamente infeliz, atormentado por neuroses, pela dificuldade da relação com os outros, pela angústia da morte.
Seus projetos não contemplavam inovações formais para pôr em xeque a estrutura do romance; sonhava em construir romances sólidos com todas as regras, mas não conseguia jamais levá-los a cabo. Mantinha-os em suspenso durante anos, e se decidia a publicá-los só quando havia perdido a esperança de concluí-los. Dir-se-ia que à Cognizione del dolore e ao Pasticciaccio teriam bastado poucas páginas para chegar à conclusão do enredo. Outros romances foram desmembrados por ele em contos e não é impossível reconstruí-los juntando as várias partes.
O Pasticciaccio relata uma dupla investigação da polícia para dois fatos criminosos, um banal e o outro atroz, ocorridos no mesmo edifício no centro de Roma com poucos dias de intervalo: um roubo de joias a uma viúva em busca de consolo e o assassinato a facadas de uma senhora casada, inconsolável porque não podia ter filhos. Essa obsessão da maternidade malograda é muito importante no romance: a senhora Liliana Balducci se circundava de moças que tratava como filhas adotivas, até que por alguma razão terminava por separar-se delas. A figura de Liliana, dominante também enquanto vítima, e a atmosfera de gineceu que se estende ao redor dela abrem uma espécie de perspectiva de sombras sobre a feminilidade, misteriosa força da natureza perante a qual Gadda exprime sua perturbação em páginas cujas considerações sobre a fisiologia da mulher se ligam a metáforas geográfico-genéticas e à lenda da origem de Roma que, mediante o rapto das Sabinas, assegura a própria continuidade. O tradicional antifeminismo que reduz a mulher à função procriadora é expresso com muita crueza: por registro flaubertiano das “idées reçues” ou porque o autor também pensa assim? Para definir melhor o problema é preciso ter presentes duas circunstâncias, uma histórica e a outra psicológica, subjetiva do autor. No tempo de Mussolini, o primeiro dever dos italianos, inculcado pela propaganda oficial marteladora, era o de dar filhos à pátria; só os pais e as mães prolíficos eram considerados dignos de respeito. Em meio a essa apoteose da procriação, Gadda, solteirão oprimido por uma timidez paralisante perante qualquer presença feminina, sentia-se excluído e sofria com um sentimento ambivalente de atração e repulsa.
Atração e repulsa animam a descrição do cadáver da mulher horrendamente degolado, numa das páginas mais preciosas do livro, como um quadro do martírio de uma santa. O comissário Francesco (Ciccio) Ingravallo dedica à investigação uma participação especial, por dois motivos: primeiro, porque conhecia (e desejava) a vítima; segundo, porque é um meridional nutrido de filosofia e animado por paixão científica e sensibilidade por tudo aquilo que é humano. É ele quem teoriza a multiplicidade das causas que concorrem para determinar um efeito, e dentre tais causas (dado que suas leituras sempre incluem também Freud) compreende sempre Eros, em alguma de suas formas.
Se o comissário Ingravallo é o porta-voz filosófico do autor, existe também uma outra personagem com que Gadda se identifica em nível psicológico e poético, e é um dos inquilinos do prédio, o funcionário aposentado Angeloni, que pelo embaraço com que responde aos interrogatórios torna-se logo suspeito, não obstante seja a pessoa mais inofensiva do mundo. Angeloni, solteirão introvertido e melancólico, passeador solitário pelas ruas da velha Roma, submetido às tentações da gula e talvez também de outro gênero, tem o hábito de encomendar às salsicharias presuntos e queijos que lhe são entregues a domicílio por rapazes de calças curtas. A polícia procura um deles, provável cúmplice do furto e talvez também do assassinato. Angeloni, que evidentemente vive com medo de que lhe atribuam tendências homossexuais, cioso como é de sua respeitabilidade e de sua privacy, embrulha-se em reticências e contradições e acaba sendo preso.
Suspeitas mais graves concentram-se numa sobrinha da vítima, que deve explicar a posse de um pingente de ouro com uma pedra preciosa, um jaspe que foi substituído por uma opala, mas esta tem todo o jeito de ser uma pista falsa. Ao contrário, as investigações sobre o furto parecem reunir dados mais promissores deslocando-se da capital para as cidadezinhas dos Colli Albani (e passando à competência dos carabineiros em detrimento da polícia) à procura de um eletricista gigolô, Diomede Lanciani, que frequentara a inquieta viúva das muitas joias. Nesse ambiente provinciano voltamos a encontrar as pistas de várias moças a quem a senhora Liliana havia oferecido seus cuidados maternos. E é lá que os carabineiros encontram, escondidas num penico, as joias roubadas à viúva, além de uma que pertencera à assassinada. As descrições das joias (como já antes do pingente de ouro e de seu jaspe ou da opala) não são apenas performances de um virtuoso da escrita, mas acrescentam à realidade representada um outro nível ainda — além daquele linguístico, fonético, psicológico, fisiológico, histórico, mítico, gastronômico etc. —, um nível mineral, plutônico, de tesouros ocultos, envolvendo a história geológica e as forças da matéria inanimada na história esquálida de um crime. E é ao redor da posse das pedras preciosas que se cerram os nós da psicologia ou psicopatologia das personagens: a violenta inveja dos pobres bem como aquela que Gadda define a “psicose típica das insatisfeitas” que leva a desventurada Liliana a encher de presentes as suas protegidas.
À solução do mistério nos teria aproximado um capítulo que na primeira versão do romance (publicado em série na revista mensal Letteratura de Florença em 1946) figurava como o IV, se o autor não o tivesse eliminado para publicação em livro (edições Garzanti, 1957) justamente porque não queria revelar muito cedo suas cartas. O comissário interrogava o marido de Liliana sobre a relação que ele tivera com Virginia, uma das aspirantes a filha adotiva, e a personagem da moça ali aparecia caracterizada por tendências lésbicas (a atmosfera sáfica em torno da senhora Liliana e seu gineceu era acentuada), amoralidade, avidez por dinheiro e ambição social (tornara-se amante dessa espécie de pai adotivo para depois chantageá-lo), por rompantes de ódio violento (proferia ameaças obscuras ao cortar o assado com a faca de cozinha).
Portanto, é Virginia a assassina? Qualquer dúvida a respeito é eliminada lendo-se um inédito encontrado e publicado recentemente (Il palazzo degli ori, Turim, Einaudi, 1983). Trata-se do treatment de um filme que Gadda escreveu contemporaneamente — parece, pouco antes ou pouco depois — à primeira versão do romance, e no qual a trama inteira é desenvolvida e esclarecida em todos os detalhes. (Ficamos sabendo também que o autor do furto não é Diomede Lanciani mas Enea Retalli, que para não se deixar prender dispara contra os carabineiros e é morto.) O treatment (que não tem nada a ver com o filme que Pietro Germi extraiu do romance em 1959 e com o qual Gadda não colaborou) nunca foi tomado em consideração por produtores e diretores, e não há razão para espanto: Gadda tinha uma ideia bastante ingênua da escritura cinematográfica, à base de dissolvências contínuas para revelar os pensamentos e os bastidores. Para nós é uma leitura muito interessante como rascunho do romance, mas não produz uma verdadeira tensão nem como ação nem como psicologia.
Em suma, o problema não está no “Who’s done it?”: já nas primeiras páginas do romance está dito que o que determina o crime é o “campo de forças” que se estabelece ao redor da vítima; é a “coação ao destino” que emana da vítima, de sua situação em relação às situações dos outros, o que tece a rede de eventos; “aquele sistema de forças e de probabilidades que circunda toda criatura humana e que se costuma chamar de destino”.

Italo Calvino, em Por que ler os clássicos

Recusa

Não entendo, não engulo este latim:
Perinde ac cadaver.
Você tem que obedecer como um cadáver.”

Cadáver obedece?
Tanto vale morrer como viver?
Para isso nos chamam, nos modelam?

Bem faz Padre Filippo:
cansado de obedecer, vai dar o fora
para viver no mundo largo
a fascinante experiência de só receber ordens
do seu tumultuoso coração.

Carlos Drummond de Andrade, em Boitempo – Esquecer para lembrar

Feito esquiadores no topo da montanha


Naquela primeira noite, na rua Pepper, no número 37, ficou combinado.
Ele a acompanhou de volta e disse que no sábado, às quatro da tarde, passaria na casa dela.
A rua estava escura e vazia.
Nada mais foi dito.
Quando o sábado chegou, ele apareceu de barba feita e com margaridas.
Demorou um pouco até ela tocar piano e, quando tocou, Michael ficou ao seu lado, o dedo pousado na última tecla da direita.
Ela assentiu, para que ele a apertasse.
Acontece que a nota mais alta de um piano é instável.
Se você não apertar forte o bastante, ou do jeito certo, não sai nada.
De novo — disse ela, e sorriu, nervosa, e ele sorriu também, nervoso, e dessa vez deu certo.
Como um tapinha na mão de Mozart.
Ou no pulso de Chopin ou Bach.
E dessa vez foi ela:
Havia hesitação e constrangimento, mas ela lhe deu um beijo na nuca, bem de leve, bem suave.
E então comeram os biscoitinhos amanteigados.
Até não sobrar nenhum.

***

Quando penso nisso hoje, recapitulo tudo que me disseram, e especialmente tudo que disseram a Clay, e me pergunto o que é mais importante.
Imagino que tenha sido o seguinte:
Durante seis ou sete semanas, eles se viram, alternando pontos de encontro, pra lá e pra cá na rua Pepper. A todo instante, Michael Dunbar tinha a impressão de que algo estava brotando em meio à novidade e ao cabelo louro de Penélope. Quando a beijava, sentia o gosto da Europa, mas também o gosto da ausência de Abbey. Quando se levantava para ir embora e ela apertava suas mãos, Michael sentia o toque de um refugiado, e era ela, mas também ele.

***

Finalmente, ele contou a ela, nos degraus do número 37.
Era domingo de manhã, um dia cinza e ameno, e os degraus estavam frios — e ele já tinha sido casado, e se divorciado; o nome dela era Abbey Dunbar. Ele ficou prostrado no chão da garagem.
Passaram um carro e uma garota de bicicleta.
Ele contou que ficou arrasado, seguiu em frente, aguentou firme, sozinho. Contou que queria ter ido ao encontro dela muito antes. Queria, mas não foi capaz. Não poderia arriscar uma queda como aquela de novo, não mais.
É curioso ver como se desenrolam as confissões:
Admitimos quase tudo, e é o quase que conta.
No caso de Michael Dunbar, duas coisas foram deixadas de fora.
Em primeiro lugar, ele simplesmente não admitiu que também era capaz de produzir algo próximo à beleza — as pinturas.
Além disso, como extensão do primeiro item, ele não revelou que, no fundo, nos recônditos mais obscuros de sua alma, seu maior medo não era ser deixado novamente, mas condenar alguém a ser o segundo melhor, a ficar em uma posição inferior. Era assim que ele se sentia em relação a Abbey e à vida que um dia tivera e perdera.

***

Mas até aí, que escolha ele tinha?
Aquele era um mundo onde a lógica era desafiada por entregadores de piano briguentos e desajeitados. Onde o destino poderia bater à porta, ao mesmo tempo pálido e corado. Por Deus, até Stálin estava envolvido. Como ele poderia dizer não?
Há quem diga que não nos cabe tomar decisões. Talvez seja verdade.
Achamos que estamos no controle, mas não estamos.
Damos voltas na vizinhança.
Passamos por certa porta.
Quando apertamos uma tecla de piano e não sai nada, apertamos de novo, porque temos que apertar. Precisamos ouvir algo e esperamos que não seja um erro...
Para começo de conversa, não era nem para Penélope estar ali.
Não era para nosso pai ter se divorciado.
Mas lá estavam, seguindo em frente, dando o melhor de si rumo a uma linha de chegada. Esperaram a contagem regressiva, feito esquiadores no topo da montanha, e pressionaram a tecla na hora do . O resto é história.

Markus Zusak, em O construtor de pontes

Os sabores da educação

O educador é cozinheiro que deseja iniciar o seu discípulo nos sabores do mundo – sabores que podem ser a contemplação da simetria de uma teia de aranha, o conhecimento do movimento dos planetas, a habilidade para resolver um problema teórico ou prático, a beleza de As quatro estações. O objetivo final da educação, assim, não é a produção e transmissão de saberes. Esses são apenas meios necessários. É a criação de um corpo sábio, isto é, capaz de distinguir, discriminar, separar o digno de ser degustado, aprovado, do indigno de ser degustado, re-provado.

Rubem Alves, em Do universo à jabuticaba

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Carvalhos & margaridas

Há poetas, há certos poemas radioativos. São os que, sem querer, vêm operando as transmutações, as mutações humanas. Não eram cogumelos súbitos. Agitava-os o vento shakespeariano de todas as paixões, de todos os cuidados. Não sei se ficamos melhores ou piores: ficamos mais profundos. Mas há, neste mundo, os que sofrem a vertigem das profundezas ou das alturas. Para esses, inclinam-se à beira da estrada umas florinhas silvestres que sempre estão se oferecendo: colhe-me, colhe-nos! E os poetas da planície fazem buquês com elas! Alguns até belíssimos, mas sem perigo algum. Pudera! Eram flores de retórica.

Mário Quintana, em Porta giratória

Os Nascimentos | 1538 – São Domingos

O espelho

O sol do meio-dia arranca fumaça das pedras e relâmpagos dos metais. Alvoroço no porto: os galeões trouxeram de Sevilha a artilharia pesada para a fortaleza de São Domingos.
O prefeito, Fernández de Oviedo, dirige o transporte de colubrinas e canhões. A golpe de chibata, os negros arrastam a carga a todo vapor. Rangem os carros, sufocados pelo peso dos ferros e bronzes, e através do torvelhinho outros escravos vão e vêm jogando caldeirões de água contra o fogo que brota dos eixos aquecidos.
Em meio da zoeira e da gritaria, uma moça índia anda em busca de seu amo. Tem a pele coberta de bolhas. Cada passo é um triunfo e a pouca roupa que usa atormenta sua pele queimada. Durante a noite e meio dia, esta moça suportou, de alarido em alarido, os ardores do ácido. Ela mesma assou as raízes de guao e esfregou-as entre as mãos até convertê-las em pasta. Untou-se inteira de guao, da raiz dos cabelos até os dedos dos pés, porque o guao abrasa a pele e limpa a cor, e assim transforma as índias e negras em brancas damas de Castilha.
Me reconhece, senhor?
Oviedo afasta-a com um empurrão; mas a moça insiste, com seu fio de voz, agarrada ao amo como sombra, enquanto Oviedo corre gritando ordens aos capatazes.
Sabe quem sou?
A moça cai no chão e do chão continua perguntando:
Senhor, senhor, não sabe quem sou?

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Menino do mato

VI

Desde o começo do mundo água e chão se amam
e se entram amorosamente
e se fecundam.
Nascem peixes para habitar os rios.
E nascem pássaros para habitar as árvores.
As águas ainda ajudam na formação dos caracóis e das
suas lesmas.
As águas são a epifania da criação.
Agora eu penso nas águas do Pantanal.
Penso nos rios infantis que ainda procuram declives
para escorrer.
Porque as águas deste lugar ainda são espraiadas para
alegria das garças.
Estes pequenos corixos ainda precisam de formar
barrancos para se comportarem em seus leitos.
Penso com humildade que fui convidado para o
banquete dessas águas.
Porque sou de bugre.
Porque sou de brejo.
Acho agora que estas águas que bem conhecem a
inocência de seus pássaros e de suas árvores.
Que elas pertencem também de nossas origens.
Louvo portanto esta fonte de todos os seres e de todas
as plantas.
Vez que todos somos devedores destas águas.
Louvo ainda as vozes dos habitantes deste lugar que
trazem para nós, na umidez de suas palavras, a boa
inocência de nossas origens.

Manoel de Barros, em Menino do mato 

Pelintração

CULTURAS FRESTEIRAS: aquelas que, jogando nas rachaduras dos muros institucionais – com a destreza e a arte do drible no vazio de Mané Garrincha e da ginga de Zé Pelintra –, inventam constantemente modos de vida que buscam a transgressão, o equilíbrio gingado, a terreirização do território, como estratégias de jogo e combate contra a mortandade produzida pelo desencanto do mundo.

Luiz Antonio Simas, em Crônicas exusíacas e estilhaços pelintras

Não Esquentemos a Cabeça

Meu saudoso amigo Luiz Cuiúba, quando provocado a falar sobre mim, citava sempre d. Madalena, nossa professora. “Ele é boa pessoa, não se vai negar”, afirmava Cuiúba. “Mas d. Madalena cansava de dizer que ele tem um problema na ideia, e quem conhece ele sabe que é verdade.” E, claro, amigo e professora de infância sempre têm razão quando opinam sobre a gente. Eu, lamentavelmente, padeço de um problema na ideia desde pequeno. Já desisti de consertá-lo, até porque ele é difícil de caracterizar, se disfarça muito.
Bem verdade que quem sai aos seus não degenera e meu avô materno, o combativo quão poderoso coronel Ubaldo, da mesma forma já mencionado aqui em outras ocasiões, também tinha, vamos admitir com franqueza, um problema na ideia. Tanto assim que, de vez em quando, a cabeça dele esquentava a tal ponto que ele intimava o primeiro infeliz que passasse por perto para abanar-lhe a careca enquanto durasse o surto de esquentamento. Ventilador, nem pensar, pois ele abominava toda e qualquer coisa que tivesse a ver com eletricidade e jamais tocou em nada elétrico na vida, nem interruptor de luz — ordenava a alguém que acendesse a luz.
E certamente devo chamar a atenção para a circunstância de que os leitores também já devem ter observado esse meu problema, embora só muito poucos tenham tido a oportunidade de testemunhar as fofas (pronuncia-se “fó-fa”, com o “o” aberto e, já que estamos perto de mudanças ortográficas, tomarei a liberdade de doravante grafar “fófa”) que, quando o esquentamento na cabeça não era superado, acometiam tanto meu avô quanto hoje a mim. A fófa consiste em cair prostrado na cama em decúbito ventral, revirar os olhos e bufar freneticamente com os lábios e o queixo tremendo. Para tratar meu avô, bastava um vidrinho de leite de magnésia de Phillips, a última novidade da medicina que aceitou, até morrer de velho. Mas não tomava o remédio nunca, apenas se acalmava aos poucos, olhando para o vidrinho azul. Minhas fófas, receio eu, já se globalizaram, mas a metodologia permanece a mesma. Me receitam bolinhas, eu leio as bulas, não tomo nada e acabo me desfofando.
É difícil, pelo menos para os fofistas que creio também haver entre vocês, ler um jornal ou assistir a um noticiário de televisão sem pelo menos esquentar a cabeça. Infelizmente, não conto com um pelotão de abanadores de careca como meu avô, mas, em compensação, não tenho medo de objetos movidos a eletricidade e sou homem de, em momentos mais sérios, quase enfiar a cabeça por um condicionador de ar adentro. Estou sem fófas desde o início do ano. Não sei se é porque o governo não começou ainda, e é possível que o presidente não tenha terminado de achar todos os que o desancaram para dar-lhes ministérios e assim desmascará-los, mas o fato é que, apesar de certos eventos, ainda não deu para uma fófa.
Mas para esquentar a cabeça, sim. Não é possível que as cabeças de vocês também não esquentem, com as notícias que a gente ouve e lê. Por exemplo, a economia vai mal ou bem? As notas, reportagens e até releases disfarçados por vezes se contradizem na mesma página de jornal, ou no mesmo noticiário de tevê. Estamos ameaçados de apagão ou não? Temos a infraestrutura para crescer economicamente ou não? Vai ser minorado o problema da violência ou não?
Pelo que se lê ou escuta, não dá para saber. Por exemplo, liguei a televisão e assisti a um senhor muito sério falar em aumento da oferta de empregos no Brasil. Sei que a estatística, como já se disse, é frequentemente a arte de mentir com precisão, mas, pelo que ele asseverou, estamos bem, estamos muito bem, estamos até atraindo mão-de-obra do exterior, vejam que beleza. E a cabeça pára de esquentar, mas, insensatamente, mudo de canal e pego mais gente falando sobre emprego. Nada disso, afirma logo outro noticiarista, desta feita um repórter conversando com desempregados em todo o Brasil, gente que procura trabalho há anos sem achar nada e ocupações que não existem em outras partes do mundo, como guardadores de lugar em filas, donatários de ruas, praças e calçadas para estacionamento e membros profissionais de partidos que deem emprego. A necessidade é a mãe da porcaria e por causa dela ficamos nesta situação, digamos, geradora de fófas.
Temeroso, decido desligar a tevê e vou olhar minha fornida e-mailspondência (desculpem, desculpem, não escrevo mais esta barbaridade), para esquecer realidade tão dura. Vejo logo a mensagem de um amigo americano com quem há muito tempo não falo. Vai tudo bem e Larry, o filho dele, está quase para se formar numa universidade. Nos períodos de folga, já encontrou diversos empregos temporários, dos muitos que uma pessoa empreendedora pode arrumar por lá. Vocês vão achar que estou mentindo e por isso, pelo menos num dos casos, mato a cobra e mostro o pau. Não sei o nome do professor que dirigiu o estudo de que Larry foi “freguês”, mas o fato é que, há dois verões, ele foi pago para dormir, numa pesquisa sobre o sono. No verão passado, sério mesmo, ele foi, digamos, piloto de provas de camisinhas e, a julgar pelo que me dizem do Larry, deve ter feito algum sucesso nessa condição. E, finalmente, este ano, vai trabalhar rindo profissionalmente, numa tal de Laughter Therapy Enterprises, ou seja, Empresas de Terapia pelo Riso, no Colorado. Quem sabe se, no futuro, ele não ganhará a vida na folgança, rindo durante o expediente e testando camisinhas nas horas vagas? Aqui, penso eu rancorosamente, só quem faz isso é o governo — e em cima da gente, às nossas custas. Alguém aí pode ceder um frasco de magnésia para eu espiar?

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Diálogo familiar

Mas por que você não escreve umas coisas mais sérias?
Ora, tia Élida! Eu já não sou mais criança…

Mário Quintana, em Porta giratória

A Arte de Goya

La Maja Desnuda (1800), de Francisco de Goya

Partindo de Paumanok | 23

Desdobrar sem fim de palavras de épocas!
E minha uma palavra moderna, a palavra Em Massa.

Uma palavra da fé que nunca frustra,
Aqui ou doravante é tudo o mesmo para mim, aceito o Tempo absolutamente.

Só ele é sem furo, só ele rodeia e completa tudo,
Só essa mística e desconcertante maravilha completa tudo.

Aceito a Realidade e não ouso questioná-la,
Materialismo impregnando em conjunto.

Viva a ciência positiva! vida longa à demonstração exata!

Traga folha-da-fortuna mesclada com cedro e ramos de lilás,
Este é o lexicógrafo, este o químico, este fez uma gramática das velhas cártulas,
Estes marinheiros guiaram o navio por mares desconhecidos e perigosos,
Este é o geólogo, este trabalha com o escalpelo, e este é um matemático.

Senhores, a vós as primeiras honras sempre!
Vossos fatos são úteis, contudo eles não são minha morada,
Mal entro por eles numa área de minha morada.
Menos as lembranças de propriedades narraram minhas palavras,
E mais as lembranças da vida inarrada, e de liberdade e extricação,
E fazei pouco caso de neutros e capões, e favorecei homens e mulheres completamente equipados,
E batei o gongo da revolta, e parai com fugitivos e aqueles que tramam e conspiram.

Walt Whitman, em Folhas de Relva 

Insônia

Foi no tempo do terror, a ditadura. Eu não conseguia dormir. O medo era grande. Amigos já tinham sido mortos. Levantei-me, fui até a janela do prédio e olhei. A cidade dormia. O silêncio era quebrado apenas pelos apitos dos guardas noturnos, informando os ladrões da sua aproximação. Olhei para o céu estrelado. Pensei que ele tinha estado lá por bilhões de anos e continuaria a estar lá daqui a bilhões de anos. Lembrei-me do que um prisioneiro deixou escrito na cela de um campo de concentração nazista: “Daqui a cem anos tudo isso terá passado”. Com essas palavras na cabeça, voltei a dormir.

Rubem Alves, em Ostra feliz não faz pérola

Capítulo 150 | Rotação e Translação

Há em cada empresa, afeição ou idade um ciclo inteiro da vida humana. O primeiro número do meu jornal encheu-me a alma de uma vasta aurora, coroou-me de verduras, restituiu-me a lepidez da mocidade. Seis meses depois batia a hora da velhice, e daí a duas semanas a da morte, que foi clandestina, como a de Dona Plácida. No dia em que o jornal amanheceu morto, respirei como um homem que vem de longo caminho. De modo que, se eu disser que a vida humana nutre de si mesma outras vidas, mais ou menos efêmeras, como o corpo alimenta os seus parasitas, creio não dizer uma coisa inteiramente absurda. Mas, para não arriscar essa figura menos nítida e adequada, prefiro uma imagem astronômica: o homem executa à roda do grande mistério um movimento duplo de rotação e translação; tem os seus dias, desiguais como os de Júpiter, e deles compõe o seu ano mais ou menos longo.
No momento em que eu terminava o meu movimento de rotação, concluía Lobo Neves o seu movimento de translação.
Morria com o pé na escada ministerial. Correu, ao menos durante algumas semanas, que ele ia ser ministro; e pois que o boato me encheu de muita irritação e inveja, não é impossível que a notícia da morte me deixasse alguma tranquilidade, alívio, e um ou dois minutos de prazer. Prazer é muito, mas é verdade; juro aos séculos que é a pura verdade.
Fui ao enterro. Na sala mortuária achei Virgília, ao pé do féretro, a soluçar. Quando levantou a cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair o enterro, abraçou-se ao caixão, aflita; vieram tirá-la e levá-la para dentro. Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemitério; e, para dizer tudo, não tinha muita vontade de falar; levava uma pedra na garganta ou na consciência. No cemitério, principalmente quando deixei cair a pá de cal sobre o caixão, no fundo da cova, o baque surdo da cal deu-me um estremecimento passageiro, é certo, mas desagradável; e depois a tarde tinha o peso e a cor do chumbo; o cemitério, as roupas pretas…

Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas

Dos apóstatas


1.

Ah, já se encontra murcho e cinzento aquilo tudo que há pouco era verde e colorido nesse prado? E quanto mel de esperança levei daqui para minhas colmeias!
Todos esses jovens corações já se tornaram velhos — e nem sequer velhos! Apenas cansados, vulgares, cômodos: — “Tornamo-nos novamente devotos”, dizem eles.
Há bem pouco eu os vi saírem com pés valentes, de manhã cedo: mas seus pés do conhecimento se cansaram, e agora eles caluniam até mesmo sua valentia matinal!
Em verdade, alguns deles moviam as pernas como um dançarino, e o riso de minha sabedoria lhes acenou: — então refletiram. Acabo de vê-los curvados — arrastando-se para a cruz.
Um dia esvoaçavam em torno da luz e da liberdade, como as mariposas e os jovens poetas. Um tanto mais velhos, um tanto mais frios: e já ficam sentados junto à estufa, amigos da penumbra e dos sussurros.
Porventura seu coração se abateu porque a solidão me engoliu como uma baleia? Seus ouvidos esperaram em vão, longa e ardentemente, por mim e meus chamados de trombeta, de arauto?
Ah! Sempre são poucos aqueles cujo coração mantém a coragem e a exuberância; e neles também o espírito permanece paciente. Mas o resto é covarde.
O resto: é sempre a grande maioria, a banalidade, a profusão, os muitos e demais — esses todos são covardes! —
Quem é de minha espécie depara sempre com as vivências de minha espécie: de modo que seus primeiros companheiros serão cadáveres e palhaços.
Seus segundos companheiros, porém — se denominarão seus crentes: um enxame vivo, muito amor, muita tolice, muita veneração imberbe.
Não deve prender o coração a esses crentes aquele que é de minha espécie entre os homens; não deve crer nessas primaveras e prados coloridos aquele que conhece a fugaz e covarde espécie humana!
Se eles pudessem de outro modo, também quereriam de outro modo. Os meios-termos estragam tudo que é inteiro. O fato de as folhas murcharem — que há nisso a lamentar?
Deixa-as cair e partir, ó Zaratustra, e não lamentes! Melhor é soprares entre elas com ventos ciciantes, —
sopra entre essas folhas, ó Zaratustra: para que tudo emurchecido se afaste ainda mais rapidamente de ti! —

Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra