Opinião

Relembre-se que mudar sua opinião, e acompanhar quem o corrigiu, condiz com a liberdade tanto quanto insistir no seu erro. Essa atividade depende de você e é exercida segundo seu próprio impulso, seu julgamento e sua inteligência.

Marco Aurélio, em Meditações

O Astro

Sempre enfrentei problemas com a televisão. O primeiro foi que a gente tinha trauma de tevê desde o tempo de Sergipe, porque apareciam fotografias na revista O Cruzeiro, de pessoas assistindo à tevê no Rio de Janeiro, e a gente morria de inveja. Quando nos mudamos para a Bahia, também ainda não havia televisão por aqui, de forma que, assim que ela apareceu, eu já com 17 anos, meu pai comprou logo um aparelho e botou na sala. Tinha uma imagem-padrão e uma musiquinha, a gente assistia bastante.
A imagem-padrão era a silhueta de um índio, no meio do que parecia ser um alvo. “Se esse índio se mexer”, dizia meu pai quando ia lá dentro, “você me chame logo!”. Mas demorou muito para se mexer, o pessoal em casa até ficou meio desestimulado e quase que a gente nem ia mais à sala ver a imagem-padrão, só passávamos umas quatro ou cinco horas por noite espiando. Meu pai não se deixou abater. Boa música, boa música, dizia ele, alisando o aparelho.
Finalmente, os programas começaram. Tinha garota-propaganda (tudo falando carioca e alisando fogões e liquidificadores, era uma coisa emocionante; havia torcidas: eu, por exemplo, gostava mais da moça das lojas Florensilva, mas meu pai se mexia na cadeira quando surgia a moça da loja Duas Américas e dizia “muito bom esse liquidificador, um excelente liquidificador”) e apresentadores de paletó e gravata. Vinha gente de fora, também falando carioca e dizendo que o baiano era muito carinhoso e ma-ra-vi-lho-so e a imagem de nossa tevê era a melhor do Brasil e então ficávamos orgulhosíssimos e dizíamos “viu você, viu você?”.
O primeiro programa para que me convidaram era um jogo em que as pessoas tentavam adivinhar a profissão de outras pessoas. Cheguei lá de camisa esporte, recebi uma reprimenda: volte para casa e vista roupa de televisão, isto aqui é coisa séria. Voltei, vesti a roupa de televisão, e me dei mal, a começar pelo cumprimento, que tinha de ser “boa noite, senhores telespectadores” e eu não acertei a dizer telespectadores.
Boa noite, senhores tepelespectadores — disse eu finalmente, tendo suores frios.
Minha equipe perdeu, eu enterrei o time. Só me vinha na cabeça “tratorista”. “O senhor é tratorista?”, perguntava eu. “Não”, dizia o entrevistado. “Oh”, dizia eu. Mas minha mãe ficou muito orgulhosa e discutiu com uma vizinha que me achou um tanto burro. Ele não é burro, disse minha mãe, ele é somente meio bobo, é muito diferente.
Depois me chamaram para escrever para a Globo, me deram uma passagem e eu vim ao Rio, carregando uma maletinha de pau-de-arara. Fui para o Jardim Botânico, com a maletinha, às sete e meia da manhã. Achei que impressionaria bem se eu chegasse cedo, e ninguém tinha explicado que o pessoal só acordava depois das duas da tarde. Demorou bastante para me atenderem. Comi um sanduíche no boteco defronte, cortei o cabelo e dei informações a passantes. Às duas horas, mais ou menos, me levaram lá para dentro e me mandaram para o teatro onde gravavam um programa chamado Satiricon. Fiz grande sucesso. De vez em quando saía um cara lá de dentro e dizia: “Tudo bem aí, baiano?” Acabei encostando na sala da técnica e Bibi Vogel veio ver uma cena em que ela aparecia. “Você achou que saiu bem?”, perguntou ela. “Sim, sim”, respondi. “Brigadinho”, disse ela, passando a mão na minha cabeça. Jô Soares fez um quadro e me perguntou: “Achou bom, baiano?” Ah, uma beleza, disse eu, e ele falou “olhe aí, ô Vanucci, o baiano achou bom”. Durante algum tempo pensei que eles iam me contratar para ficar botando o polegar para cima e dizendo que tinha sido ótimo, mas até hoje não tenho certeza quanto a isto. Por volta das dez horas, voltei para o hotel e, no dia seguinte, para a Bahia. Até hoje guardo gratas recordações desse meu tempo de colaboração com a Globo.
Finalmente, excetuando algumas aparições com Glauber, em que, quando eu vi, tudo já tinha sido gravado, surgi no vídeo em companhia de Marília Gabriela, em São Paulo. Cheguei calmíssimo, com a suéter vestida ao contrário e a barba feita de um lado só, porque o motorista que foi me buscar no hotel estava com pressa. Marília apareceu de repente, coisa que não se faz.
Como vai? — disse ela, sorrindo.
Ah, da-da — respondi brilhantemente. — É... sim, ha-ha. Hu... Sim, como não, ha-ha, não? Ho-ho.
Eu já li seus livros — disse ela, me olhando como quem fala “eu compreendo”.
Felizmente, a mão que tremia estava do lado oposto ao da câmera e até que aquela suéter (é de minha mulher) ao contrário dá um certo charme. “Leve ele direitinho”, disse Marília ao motorista depois da entrevista, com um ar de preocupação no olhar.
Mas agora não, agora já estou acostumado. Por exemplo, todo mundo viu que eu fui entrevistado outro dia (aqui na Pituba, pelo menos, todo mundo viu) e me saí muito bem. É tudo uma questão de o sujeito estar na terra dele e todo mundo já saber como deve fazer as coisas. Meus agradecimentos à equipe médica da TV-Aratu, aos quatro câmeras e às 18 entrevistadoras, principalmente à que não desistiu. Um dia — é o que sempre digo a meu pai, quando ele pergunta o que é que eu quero da vida — eu ainda saio na capa de Amiga.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

O garoto que saiu do forno


Não acredito no que estou vendo. Achei que você só fosse dar uma adiantada no serviço.
Foi o que Michael Dunbar disse sobre a vala gigantesca cavada por um único garoto em menos de uma semana. Não deveria ficar surpreso.
Mas como diabos você fez isso? Cavou dia e noite sem parar?
Clay olhou para baixo.
Dormi um pouco também.
Com a pá do lado?
O Assassino viu as mãos dele, e o garoto levantou a cabeça.
Jesus... — disse o homem.
Quando Clay me contou essa façanha, focou mais no resultado do que no processo em si. Ele estava louco para visitar a rua Archer, e as Cercanias, mas não podia, claro; por dois motivos.
Em primeiro lugar, não estava em condições de me encarar.
Segundo, voltar e não me encarar seria covardia da parte dele.
Não; depois do cemitério, Clay pegou o trem de volta para a estação Silver e passou alguns dias se recuperando. Não havia um pedaço dele que não estivesse doendo. No entanto, as mãos cheias de bolhas eram a pior parte, e ele dormia, passava noites em claro, e esperava.

***

Quando o Assassino voltou, estacionou o carro do outro lado do rio, entre as árvores.
Desceu a margem e parou no fundo do fosso cavado.
Dos dois lados, havia ondas gigantescas de pedregulhos e de terra.
Ele observou a vala e balançou a cabeça, incrédulo, então se voltou para a casa. Lá dentro, procurou Clay e o fuzilou com o olhar; suspirou, relaxou os ombros e balançou a cabeça mais uma vez, entre o choque e a decepção. E finalmente pensou em algo para dizer:
Tenho que admitir, garoto... Você tem coragem.
Clay não se conteve.
Aquelas palavras.
Elas iam e vinham sem parar, e agora Rory estava na cozinha, como se tivesse saído do forno, direto do parque Bernborough, da lendária marca dos trezentos metros:
Tenho que admitir, garoto...
Exatamente as mesmas palavras que Rory dissera a ele.
E Clay não conseguiu se conter.
Disparou pelo corredor e irrompeu no banheiro, batendo a porta e se jogando no chão, e...
Clay? Clay, tá tudo bem?
A pergunta foi como um eco, como se ouvisse aqueles berros debaixo d’água; ele veio à tona para respirar.

Markus Zusak, em O construtor de pontes

O reflexo

Tudo no mundo está dividido em duas partes, das quais uma é visível, e a outra invisível. Aquela que é visível, nada mais é do que o reflexo da invisível.

Zohan, I, 39, em Livro de Sonhos, de Jorge Luís Borges

O Guardador de Rebanhos | II

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

Conto (não conto)


Aqui, um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma cobra, talvez, insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação. Mas o que é uma cobra quando não há nenhum homem por perto? Ela pode apenas cravar seus dentes numa folha, de onde escorre um líquido leitoso. Do alto desta folha, um inseto alça voo, solta zumbidos, talvez de medo da cobra. Mas o que são os zumbidos se não há ninguém para escutá-los? São nada. Ou tudo. Talvez não se possa separá-los do silêncio ao seu redor. E o que é também o silêncio se não existem ouvidos? Perguntem, por exemplo, a esses arbustos. Mas arbustos não respondem. E como poderiam responder? Com o silêncio, lógico, ou um imperceptível bater de suas folhas. Mas onde, como, foi feita essa divisão entre som e silêncio, se não com os ouvidos?
Mas suponhamos que existissem, um dia, esses ouvidos. Um homem que passasse, por exemplo, com uma carroça e um cavalo. Podemos imaginá-los. O cavalo que passa um dia e depois outro e depois outro, cumprindo sua missão de cavalo: passar puxando uma carroça. Até que um dia veio a cobra e zás: o sangue escorrendo da carne do cavalo. O cavalo propriamente dito — isto é, o cérebro do cavalo — sabe que algo já não vai tão bem quanto antes. Onde estariam certos ruídos, o eco de suas patas atrás de um morro, o correr do riacho muito longe, o cheiro de bosta, essas coisas que dão segurança a um cavalo? Onde está tudo isso, digam-me?
O carroeiro olha tristemente para o cavalo: somos apenas nós dois aqui neste espaço, mas o cavalo morre. Relincha, geme, sem entender. Ou entendendo tudo, com seu cérebro de cavalo. Diga-me, cavalinho: o que sente um cavalo diante da morte?
Diga-me mais, cavalinho: o que é a dor de um homem quando não há ninguém por perto? Um homem, por exemplo, que caiu num buraco muito fundo e quebrou as duas pernas. Talvez essa dor devore a si mesma, como uma cobra se engolindo pelo rabo.
Mas tudo isso é nada. Não se param as coisas por causa de um cavalo. Não se param as coisas nem mesmo por causa de um homem. Esse homem que enterrou o cavalo, não sem antes cortar um pedaço da sua carne, para comer mais tarde. E agora o homem tinha que puxar ele mesmo a carroça. E logo afastou do pensamento a dor por causa de seu cavalinho querido. O homem agora tinha até raiva do cavalo, por ele ter morrido. O homem estava com vergonha de que o vissem — ele, um ser humano — puxando uma carroça. Mas por que seria indigno de um ser humano puxar uma carroça? Por que não seria indigno também de um cavalo? Ora, um cavalo não liga para essas coisas, vocês respondem. No que têm toda a razão.
E, afinal, não podemos saber se o viram ou não, o homem puxando sua carroça, pois nos ocupamos apenas do que se passa aqui, neste espaço, onde nada se passa. Mas de uma coisa temos certeza: esse homem também encontrou um dia sua hora. E talvez — porque não tinha mãe, nem pai, nem mulher, nem filhos ou amigos — ele haja se lembrado, na hora da morte, de seu cavalo. O homem pensou, talvez, que agora iria encontrar-se com o cavalo, do outro lado. Sim, do outro lado: de onde vêm os ecos e o vento e onde se encontram para sempre homens e cavalos.
Para esse outro lado há uma linha tênue, que às vezes se atravessa — uma fronteira. Essa linha, você atravessa, retorna; atravessa outra vez, retorna, recua de medo. Até que um dia vai e não volta mais.
Aquele homem, no tempo em que atravessava este espaço aqui, beirando a fronteira do outro lado, gritava para escutar o eco e sorria para o cavalo. O homem tinha certeza de que o cavalo sorria de volta, com seus enormes dentes amarelos. O homem era louco. Mas o que é a loucura num espaço onde só existem um homem e um cavalo? E talvez o cavalo sorrisse mesmo, de verdade, sabendo que ali não poderiam acusá-lo de animal maluco e chicoteá-lo por causa disso.
Depois foram embora o homem e o cavalo. O cavalo, para debaixo da terra, alimentar os vermes que também ocupam este espaço, apesar de invisíveis. Principalmente porque não há olhos para vê-los. Já o homem foi morrer mais longe. E ficou de novo este território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Não sabemos por quanto tempo, pois não existe tempo quando não existem coisas, homens, movimentando-se no espaço.
Mas, subitamente, eis que este território é de novo invadido. Vieram outros homens e máquinas, acenderam fogo, montaram barracas, coisas desse tipo, que os homens fazem. Tudo isso, imaginem, para estender fios em postes de madeira. (Fios telegráficos, explicamos, embora aqui se desconheçam tais nomes e engenhos.) Então o silêncio das noites e dias era quebrado por um tipo diferente de zumbidos. Mas para quem esses zumbidos, se aqui ninguém escuta, a não ser insetos? E de que valem novos zumbidos para os insetos, que já os produzem tão bem? Sim, vocês estão certos: os zumbidos destinavam-se a pessoas mais distantes, talvez no lugar onde morreu o dono do cavalo. O que não nos interessa, pois só cuidamos daqui, deste espaço.
Mas, de qualquer modo, todos eles (insetos, cobras, animaizinhos cujo nome não se conhece, sem nos esquecermos dos vermes, que haviam engordado com a carne do cavalo) sentiram-se melhor quando vieram outros homens — bandidos, com certeza — e roubaram os postes, fios e zumbidos. Agora tudo estava novamente como antes, tudo era normal: um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma pequena cobra, talvez, insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação — e a cravar seus dentes numa folha.
Às vezes, porém, aqui é tão monótono que se imagina ver um vulto que se move por detrás dos arbustos. Alguém que passa, agachado? Um fantasma? Mas como, se há soluços? Por acaso soluçam os fantasmas? Mas o fato é que, de repente, escutam-se (ou se acredita escutar) esses lamentos, uma angústia quase silenciosa.
Ah, já sei: um menino perdido, a chorar de medo. Ou talvez um macaquinho perdido, a chorar de medo. Ah, apenas um macaquinho, vocês respiram aliviados. Mas quem disse que a dor de um macaquinho é mais justa que a dor de um menino?
Mas o que estão a imaginar? Isso aqui é apenas um menino — ou macaquinho — de papel e tinta. E, depois, se fosse de verdade, o menino poderia morrer mordido pela cobra. Ou então matar a cobra e tornar-se um homem. No caso do macaquinho, tornar-se um macacão. Um desses gorilas que batem no peito cabeludo, ameaçando a todos. Talvez porque se recordasse do medo que sentiu da cobra. Mas não se esqueçam, são todos de papel e tinta: o menino, o macaquinho, a cobra, o homem, o macacão, seus urros e os socos que dá no próprio peito cabeludo. Cabelos de papel, naturalmente. E, portanto, não há motivos para sustos.
Pois aqui é somente um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Quase um deserto, onde até os pássaros voam muito alto. Porque depois, em certa ocasião, houve uma aridez tão terrível que os arbustos se queimaram e a cobra foi embora, desiludida. No princípio, os insetos sentiram-se muito aliviados, mas logo perceberam como é vazia de emoções a vida dos insetos quando não existe uma cobra a persegui-los. E também se mandaram, no que logo foram seguidos subterraneamente pelos vermes, que já estavam emagrecendo na ausência de cadáveres.
Então aqui ficou um território ainda mais vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Nem mesmo uma cobra a insinuar-se pelas pedras e pela vegetação. Pois não há vegetação e, muito menos, cobras.
Mas digam-me: se não há ninguém, como pode alguém contar esta história? Mas isto não é uma história, amigos. Não existe história onde nada acontece. E uma coisa que não é uma história talvez não precise de alguém para contá-la. Talvez ela se conte sozinha.
Mas contar o que, se não há o que contar? Então está certo: se não há o que contar, não se conta. Ou então se conta o que não há para contar.

Sérgio Sant’Anna, em Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século

Capítulo 156 | Orgulho da Servilidade

O Quincas Borba divergiu do alienista em relação ao meu criado. – Pode-se, por imagem, disse ele, atribuir ao teu criado a mania de ateniense; mas imagens não são ideias nem observações tomadas à natureza. O que o teu criado tem é um sentimento nobre e perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo: é o orgulho da servilidade. A intenção dele é mostrar que não é criado de qualquer. – Depois chamou a minha atenção para os cocheiros de casa-grande, mais impertigados que o amo, para os criados de hotel, cuja solicitude obedece às variações sociais da freguesia, etc. E concluiu que era tudo a expressão daquele sentimento delicado e nobre, – prova cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, é sublime.

Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas

Ela


Na cama não se fala de filosofia.
Peguei na mão dela, coloquei sobre meu coração, disse, meu coração é seu, depois pus sua mão sobre minha cabeça e disse, meus pensamentos são seus, moléculas do meu corpo estão impregnadas com moléculas do seu.
Depois botei a mão dela no meu pau, que estava duro, disse, é seu esse pau.
Ela nada disse, me chupou, depois chupei sua boceta, ela veio por cima, fodemos, ela ficou de joelhos, rosto no travesseiro, penetrei por trás, fodemos.
Fiquei deitado e ela de costas para mim sentou-se sobre o meu púbis, enfiou meu pau na boceta. Eu via meu pau entrando e saindo, via o cu rosado dela, que depois lambi. Fodemos, fodemos, fodemos. Gozei como um animal agonizando.
Ela disse, te amo, vamos viver juntos.
Perguntei, não está tão bom assim? Cada um no seu canto, nos encontramos para ir ao cinema, passear no Jardim Botânico, comer salada com salmão, ler poesia um para o outro, ver filmes, foder. Acordar todo dia, todo dia, todo dia juntos na mesma cama é mortal.
Ela respondeu que Nietzsche disse que a mesma palavra amor significa duas coisas diferentes para o homem e para a mulher.
Para a mulher, amor exprime renúncia, dádiva. Já o homem quer possuir a mulher, tomá-la, a fim de se enriquecer e reforçar seu poder de existir.
Respondi que Nietzsche era um maluco.
Mas aquela conversa foi o início do fim.
Na cama não se fala de filosofia.

Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética

A Contadora de Filmes | [29]


O homem vivia numa casa escura e silenciosa, na última rua do povoado, pelo poente. Era domingo quando fui contar o filme.
E estava nublado.
As ruas, como sempre na hora da sesta, pareciam solitárias. E mais ainda naquele dia em que no campo de futebol, nas vizinhanças do povoado, estava sendo disputada a final do campeonato local. O futebol era a outra coisa que salvava as pessoas do árido tédio do deserto.
Quando cheguei na casa dele, com meu irmão Manuel (que meu pai obrigou a sair do campo para me ajudar), o agiota apareceu na porta, me olhou fixo e perguntou para quê era aquele caixote. Quando expliquei, disse, lacônico:
Nada de disfarces.”
Manuel, contentíssimo, se mandou imediatamente com o caixote para casa, e de lá, a todo vapor, para o campo. Eu, no começo, pensei que o cavalheiro queria imaginar os personagens do jeito que bem entendesse. Até achei que estava certo. Mas em seguida pressenti um traço de malícia na sua atitude. Mesmo assim, não dei importância ao meu palpite. Achei que devia ser influência de tantos filmes que vi.
O agiota morava sozinho. A cortina da janela estava fechada e a casa parecia penumbrosa. O que me chamou a atenção foi como a sala estava atopetada, tantos móveis antigos e baús empoeirados. Minha casa podia até não ter móveis, mas era muito mais luminosa que aquela.
As prateleiras estavam cobertas de coisas que as pessoas iam empenhar: rádios, máquinas fotográficas, aparelhos de louça, cortes de casimira inglesa. Imaginei dentro dos baús centenas de relógios e anéis de ouro. No canto do aparador, atado com elástico de prender dinheiro, via-se o maço de carteiras de identidade que as pessoas empenhavam. O povoado inteiro sabia que o agiota era tão receoso que levava as carteiras com ele para todos os lados, inclusive para a guarita onde trabalhava, para o caso de algum peão receber dinheiro do céu e querer resgatar o documento.
O homem estava pronto para receber dinheiro as vinte e quatro horas do dia.
Dom Nolasco sentou-se num sofá. E, de pé na frente dele, comecei a contar o filme.
Ele havia pedido uma fita do John Wayne, uma que tinham passado no cinema fazia pouco. Pela primeira vez, senti que minhas pernas tremiam.
Pela primeira vez não encontrava as palavras para começar minha narração. E me arrependi de ter deixado meu irmão ir embora.
Sentia medo.
O homem era o homem mau do povoado.
Quando eu estava começando a narração ele me interrompeu de maneira dura para me dizer que não ouvia bem de um ouvido, que me aproximasse mais. Depois me disse que seria melhor contar o filme sentada em seus joelhos.
Falou num tom cortante, que não me atrevi a desobedecer.
Sentada nos ossos de seus joelhos, comecei de novo. O homem me olhava de um jeito esquisito. Então percebi que o filme não interessava nem um pouco. Mas era tarde demais.
Naquele momento o agiota começou a me fazer o que me fez. O medo transformou meu corpo em gelatina e não atinei a nada. O homem fez comigo o que quis, principalmente da cintura para baixo.
Embora eu tivesse feito alguma coisa com alguns amigos de meus irmãos, nos tempos em que os acompanhava até as salitreiras velhas, aquilo não havia passado de brincadeira de criança. Agora sentia que tinham me rasgado por dentro.
E saí dali como se estivesse aluada.
Enquanto caminhava de volta para casa, como se pisasse sobre esponjas, fui deixando cair, uma a uma, o punhado de moedas que o homem pôs à força em minha mão antes de me deixar ir embora. Uma infinita sensação de vergonha embaraçava meu espírito. Eu me sentia impura até mesmo para receber o ar que respirava.
Ao dobrar a esquina de minha viela avistei meu pai na porta e tratei de dissimular da melhor maneira que consegui. Não queria vê-lo sofrer mais do que já sofria. Meu pobre velho cochilava com a cabeça abatida sobre o peito. Meus irmãos o haviam deixado ali, acompanhado pela sua garrafa de vinho. Fiquei olhando para ele, afundado em sua poltrona de rodas – imprestável da cintura para baixo. Então, de repente, e de uma forma obscura, entendi a razão de fundo pela qual minha mãe o havia abandonado.
Recordei, além do mais, que quando ela foi-se embora o céu estava nublado.

Hernán Rivera Letelier, em A Contadora de Filmes

Os Nascimentos | 1541 – Peñón de Nochistlán

Nunca

Tinham embargado até a sua mula. Os que agora comem em sua baixela de prata e pisam seus tapetes, tinham-no expulsado do México, com os tornozelos atados a grilhões.
Dez anos depois, eles, os funcionários, convocaram o guerreiro. Alvarado abandonou o governo da Guatemala e veio castigar índios nestas terras ingratas que ele tinha conquistado junto a Cortez. Ele queria continuar viagem para o norte, até as sete cidades de ouro do reino de Cíbola, mas nesta manhã, em plena batalha, um cavalo caiu em cima dele e despencou ladeira abaixo.
Pedro de Alvarado voltou ao México e no México jaz. Nenhum cavalo irá levá-lo para o norte nem a lugar nenhum. O elmo está pendurado em um galho e entre as sarças caiu sua espada. Não me embainhes sem honra, ainda se lê na folha de aço.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

― Mataram Joca Ramiro!...

Arte: Rodrigo Rosa

[…]
Segundo digo, o tempo que paramos na Guararavacã do Guiacuí regulou em dois meses. Bem ermo. De lá, a gente cruzou as vizinhanças todas, fizemos grande redondeza. Todo dia, trocávamos recado de avisos com o pessoal do Alaripe. Notícia, nenhumas. Nada não chegava em envio, do que fosse para chegar. Da outra banda do rio, se sucedeu a queima dos campos! quando o vento dava para trás, trazia as tristes fumaças. De noite, o morro se esclarecia, vermelho, asgrava em labaredas e brasas. Da banda de cá, num rumo, daí a obra de duas léguas, tinha uma lavourinha, de um sujeito ainda moço, que era amigo nosso.
Ah, se ele quisesse alugar a mulherzinha dele para a gente, bem caros prêços que eu pagava... ― assim o que dizia o Paspe, suspiroso. Mas quem vinha eram os meninos do lavrador, montados num cavalo magro, traziam feixes de cana, para vender para a gente. As vezes, vinham em dois cavalos magros, e eram cinco ou seis meninos, amontados, agarrados uns nos outros, uns mesmo não se sabia como podiam, de tão mindinhos. Esses meninozinhos, todos, queriam todo o tempo ver nossas armas, pediam que a gente desse tiros. Diadorim gostava deles, pegava um por cada mão, até carregava os menorzinhos, levava para mostrar a eles os pássaros das ilhas do rio. ― Olha, vigia! o manuelzinho-da-crôa já acabou de fazer a muda... Um dia, em que tínhamos caçado uma paca bem gorda, o Paspe pitou de sal um quarto dela, enrolou em folhas, e deu ao menino mais velho!
Pra tu leva de presente, dá à tua mãe, fala que quem mandou fui eu... ― ele recomendou. A gente ria. Os meninos receavam o gado! ali no meio tinha reses muito bravas, um dia uma vaca deu corrida em alguém, querendo bater. Mas, depois, com o secar, de magros e fracos os bois se atolavam no embrejado, até morrerem alguns. Os urubus espaceavam, quando o céu empoeirado. Pousavam no pindaibal do brejo. João Vaqueiro chamava a gente, ia desatolar os bois que podia. Uns eram mansos! por um punhado de sal, se chegavam, lambiam o chão nos pés da gente. João Vaqueiro sabia tudo. Chega passava a mão nas tetas de uma vaca ― capins tão bons, o senhor crê? ― algumas ainda guardavam leite naqueles peitos. ― A gente carecia era de dar um fogo, se sair por aí, por combate... ― sensato se dizia. Que jagunço amolece, quando não padece.
A quase meio-rumo de norte e nascente, a quatro léguas de demorado andamento, tinha uma venda de roça, no começo do cerradão. Vendiam licór de banana e de pequí, muito forte, geleia de mocotó, fumo bom, marmelada, toucinho. Sempre só um de nós era que ia lá ― para não desconfiarem. Ia o Jesualdo. A gente outorgava a ele o dinheiro, cada um encomendava o que queria. Diadorim mandou comprar um quilo grande de sabão de coco de macaúba, para se lavar corpo. O dono da venda tinha duas filhas, o Jesualdo cada vez que voltava carecia de explicar à gente, de dia e de noite, como elas eram, formosuramente. ― Ei, que quando vier o tempo, que de guerra se tiver licença, ah, e se esse vendeiro for contra nós, ah, eu vou lá, pego uma das duas, de mocinha faço ela virar mulher... ― oVove disse. ― O que tu não faz! Porque o que eu quero é o exato: que eu vou lá, prezado peço em casamento, e nóivo... ― o Triol contestou. E o Liduvino e o Admeto cantavam coisas de sentimento, cantavam pelo nariz. Ao que perguntei: e aquela canção de Siruiz? Mas eles não sabiam. ― Sei não, gosto não. Cantigas muito velhas... ― eles desqueriam.
Daí, deu um sutil trovão. Trovejou-se, outro. As tanajuras revoaram. Bateu o primeiro toró de chuva. Cortamos paus, folhagem de coqueiros, aumentamos o rancho. E vieram uns campeiros, rever o gado da Tapera Nhã, no renovame, levaram as novilhas em quadra de produzir. Esses eram homens tão simples, pensaram que a gente estava garimpando ouro. Os dias de chover cheio foram se emendando. Tudo igual ― às vezes é uma sem-gracez. Mas não se deve de tentar o tempo. As garças é que praziam de gritar, o garcêjo delas, e o socó-boi range cincêrros, e o socó latindo sucinto. Aí pelo mato das pindaíbas avante, tudo era um sapal. Coquexavam. De tão bobas tristezas, a gente se ria, no friinho de entrechuvas. Dada a primeira estiada, voltou aquele vaqueiro Bernabé, em seu cavalinho castanho! e vinha trazer requeijão, que se tinha incumbido a ele, e que por dinheirinho bom se pagou. ― A vida tem de mudar um dia para melhor ― a gente dizia. Requeijão é com café bem quente que é mais gostoso. Aquele vaqueiro Bernabé voltou, outras diversas vezes.
Ah, e, vai, um feio dia, lá ele apontou, na boca da estrada que saía do mato, o cavalinho castanho dava toda pressa de vinda, nem cabeceava. Achamos que fosse mesmo ele. Aí, não era. Era um brabo nosso, um cafuz pardo, de sonome o Gavião-Cujo, que de mais norte chegava. Ele tinha tomado muitas chuvas, que tudo era lamas, dos copos do freio à boca da bota, e pelos vazios do cavalo. Esbarrou e desapeou, num pronto ser, se via que estava ancho com muitas plenipotências. O que era? O Gavião-Cujo abriu os queixos, mas palavra logo não saíu, ele gaguejou ar e demorou ― decerto porque a notícia era urgente ou enorme. ― Aruê, então?! ― Titão Passos quis. ― Te rogaram alguma praga? O Gavião-Cujo levantou um braço, pedindo prazo. A fé, quase gritou!
Mataram Joca Ramiro!...
Aí estralasse tudo ― no meio ouvi um uivo dôido de Diadorim ―! todos os homens se encostavam nas armas. Aí, ei, feras! Que no céu, só vi tudo quieto, só um moído de nuvens. Se gritava ― o araral. As vertentes verdes do pindaibal avançassem feito gente pessoas. Titão Passos bramou as ordens. Diadorim tinha caído quase no chão, meio amparado a tempo por João Vaqueiro.
Caíu, tão pálido como cera do reino, feito um morto estava. Ele, todo apertado em seus couros e roupas, eu corri, para ajudar. A vez de ser um desespero. O Paspe pegou uma cuia dágua, que com os dedos espriçou nas faces do meu amigo. Mas eu nem pude dar auxílio: mal ia pondo a mão para desamarrar o colete-jaleco, e Diadorim voltou a seu si, num alerta, e me repeliu, muito feroz. Não quis apóio de ninguém, sozinho se sentou, se levantou. Recobrou as cores, e em mais vermelho o rosto, numa fúria, de pancada. Assaz que os belos olhos dele formavam lágrimas. Titão Passos mandava, o Gavião-Cujo falava. Assim os companheiros num estupor. Ao que não havia mais chão, nem razão, o mundo nas juntas se desgovernava.
Repete, Gavião!
Ai, chefe, ai, chefe: que mataram Joca Ramiro...
Quem? Adonde? Conta!
Arre, eu surpreendi eriço de tremor nos meus braços. Secou todo cuspe dentro do estreito de minha boca. Até atravessado, na barriga, me doeu. Antes mais, o pobre Diadorim. Alheio ele dava um bufo e soluço, orço que outros olhos, se suspendia nas sussurrosas ameaças. Tudo tinha vindo por cima de nós, feito um relâmpago em fato.
...Matou foi o Hermógenes...
Arraso, cão! Caracães! O cabrobó de cão! Demónio! Traição! Que me paga!... ― constante não havendo quem não exclamasse. O ódio da gente, ali, em verdade, armava um pojar para estouros. Joca Ramiro podia morrer? Como podiam ter matado? Aquilo era como fosse um touro preto, sozinho surdo nos ermos da Guararavacã, urrando no meio da tempestade. Assim Joca Ramiro tinha morrido. E a gente raivava alto, para retardar o surgir do medo ― e a tristeza em crú ― sem se saber por que, mas que era de todos, unidos malaventurados.
...O Hermógenes... Os homens do Ricardão... O Antenor... Muitos...
Mas, adonde onde!?
A desgraça foi num lugar, na Jerara, terras do Xanxerê, beira da Jerara ― lá onde o córrego da Jerara desce do morro do Voo e cai barra no Riachão... Riachão da Lapa... Diz-se que foi sido de repente, não se esperava. Aquilo foi à traição toda. Morreram os muitos, que estavam persistindo lealmente. Aí, mortos! João Frio, o Bicalho, Leôncio Fino, Luís Pajeú, o Cambó, Leite-de-Sapo, Zé Inocêncio... uns quinze. Até se deu um tiroteio terrível; mas o pessoal do Hermógenes e do Ricardão era demais numeroso... Dons bons, quem pôde, fugiram corretamente. Silvino Silva conseguiu fuga, com vinte e tantos companheiros...
Mas Titão Passos, de arrompe, atalhou a narração, ele agarrou o Gavião-Cujo pelos braços!
Hem, diá! Mas quem é que está pronto em armas, para rachar Ricardão e Hermógenes, e ajudar a gente na vingança agora, nas desafrontas? Se tem, e ondé então que estão?!
Ah, sim, chefe. Os todos os outros! João Goanhá, Sô Candelário, Clorindo Campêlo... João Goanhá pára com porçanheira de homens, na Serra dos Quatís. Aí foi ele quem me mandou trazer este aviso... Sô Candelário ainda está para o Norte, mas o grosso dos bandos dele se acha nos pertos da Lagoa-do-Boi, em Juramento... Já foi portador para lá. Sendo que se despachou um positivo também para dar parte a Medeiro Vaz, nos Gerais, no de lado de lá do Rio... Sei que o sertão pega em armas, mas Deus é grande!
Louvado. Ah, então! graças a Deus! Ao que, então, está bem... ― Titão Passos se cerrou.
E estava. Era a outra guerra. A gente ficávamos aliviados. Aquilo dava um sutil enorme.
Teremos de ir... Teremos de ir... ― falou Titão Passos, e todos responderam reluzentemente.Tínhamos de tocar, sem atraso, para a Serra dos Quatís, a um lugar dito o Amoipira, que é perto de Grão Mogol. Artes que o Gavião-Cujo ainda contava mais, as miúcias ― parecia que tinha medo de esbarrar de contar. Que o Hermógenes e o Ricardão de muito haviam ajustado entre si aquele crime, se sabia. O Hermógenes distanciou Joca Ramiro de Só Candelário, com falsos propósitos, conduziu Joca Ramiro no meio de quase só gente dele, Hermógenes, mais o pessoal do Ricardão. Aí, atiraram em Joca Ramiro, pelas costas, carga de balas de três revólveres... Joca Ramiro morreu sem sofrer. ― E enterraram o corpo? ― Diadorim perguntou, numa voz de mais dór, como saía ansiada. Que não sabia ― o Gavião-Cujo respondeu; mas que decerto teriam enterrado, conforme cristão, lá mesmo, na Jerara, por certo. Diadorim tanto empalidecesse; ele pediu cachaça. Tomou. Todos tomamos. Titão Passos não queria ter as lágrimas nos olhos. ― Um homem de tão alta bondade tinha mesmo de correr perigo de morte, mais cedo mais tarde, vivendo no meio de gente tão ruim...  ― ele me disse, dizendo num modo que parecia ele não fosse também jagunço, como era de se ser. Mas, agora, tudo principiava terminado, só restava a guerra. Mão do homem e suas armas. A gente ia com elas buscar doçura de vingança, como o rominhol no panelão de calda. Joca Ramiro morreu como o decreto de uma lei nova.
A daí, carecia fosse alguém do lado de lá do morro, pela gente do Alaripe. ― Pois vamos, Riobaldo! ― Diadorim se pós. Vi que ele fervia ali assim no pego do parado. Selamos os cavalos. Serra acima, fomos. Ao no galope, cada um engulia suas palavras. A mesmo estava o céu encoberto, e um mormaço. Mas, na descambada, Diadorim me reteve, me entregou a ponta do cabresto para segurar. ― De tudo nesta vida a gente esquece, Riobaldo. Você acha então que vão logo olvidar a honra dele? ― me perguntou. Devo que retardei muito em responder, com cara de não compreensão. Porque Diadorim completou! ― ...dele, a glória do finado. Do que se finou... E dizia aquilo com uma misturação de carinho e raiva, tanto desespero que nunca vi. Desamontou, foi andando sem governar os passos, tapado pelas môitas e árvores. Eu restei ficando tomando conta do cavalo. Pensei que ele tivesse ido a lá, por necessitar. Mas demorou tanto a volta, que eu resolvi tocar atrás, para o que havia ver, esporei e vim puxando o cavalo dele adestro. E aí o que vi foi Diadorim no chão, deitado debruços. Soluçava e mordia o capim do campo. A doideira. Me amargou, no cabo da língua. ― Diadorim! ― chamei. Ele, sem se aprumar, virou o rosto, apertou os olhos no choro. Falei, falei, meus consolos, e ele atendia, em querelenga, me pedindo que sozinho fosse, deixasse ele ali, até minha volta.
Joca Ramiro era seu parente, Diadorim? ― eu indaguei, com muita cordura. ― Ah, era, sim... ― ele me respondeu, com uma voz de pouco corpo. ― Seu tio, será? ― Que era... ― ele deu, em gesto. Entreguei a ele o cabresto do cavalo, e continuei ida. Em certa distância, para prevenir os alaripes, e evitar atraso, esbarrei e disparei tiros, para o ar, umas vezes. Cheguei lá, estavam todos reunidos, por meu feliz. E estava chovendo, de acordo com o mormaço. ― Trago notícia de grande morte! ― sem desapear eu declarei. Eles todos tiraram os chapéus, para me escutar. Então, eu gritei! ― Viva a fama do nosso Chefe Joca Ramiro... E, pela tristeza que estabeleceu minha voz, muito me entenderam. Ao que quase todos choraram. ― Mas, agora, temos de vingar a morte do falecido! ― eu ainda pronunciei. Se aprontaram num átimo, para comigo vir. ― Mano velho Tatarana, você sabe. Você tem sustância para ser um chefe, tem a bizarria... ― no caminho o Alaripe me disse. Desmenti. De ser chefe, mesmo, era o que eu tinha menos vontade.
Mas assim se deu que, no seguinte dia, no romper das barras, saímos tocando, Diadorim do meu lado, mudado triste, muito branco, os olhos pisados, a boca vencida. Deixamos para trás aquele lugar, que disse ao senhor, para mim tão célebre ― a Guararavacã do Guaicuí, do nunca mais.
Redeando, rumamos, em tralha e tórto, por aquele a-fora ― a gente ia investir o sertão, os mares de calor. Os córregos estavam sujos. Aí, depois, cada rio roncava cheio, as várzeas embrejavam, e tantas cordas de chuva esfriavam a cacunda daquelas serras. A terrível notícia tinha se espalhado assaz, em todas as partes o povo fazia questão de obsequiar à gente, e falavam muito bem do falecido. Mas nós passávamos, feito flecha, feito faca, feito fogo. Varamos todos esses distritos de gado. Assomando de dia por dentro de vilórios e arraiais, e ocupando a cheio todas as estradas, sem nenhum escondimento: a gente queria que todo o mundo visse a vingança! Alto do Amoipira, quando terminamos lá, os cavalos já afracavam. João Goanhá, em toda economizada estatura, foi ver a gente vindo e abriu seus bons braços. Ele estava com próprios trezentos guerreiros. E sempre outros chegavam. ― Meu irmão Titão Passos... Meu irmão Titão Passos... ― ele falou, crescente. ― E vocês todos, valentes cabras... Agora é que vai ser a grande briga! Disse que com três dias se saía em armas. João Goanhá ia na vaca e no boi: não estava com pororas. E Só Candelário, onde era que estava? Só Candelário, piorado doente, devia de estar um tempo desses nos Lençóis, para onde portador seguira, com pressa de chamado. Mesmo assim, João Goanhá desnecessitava de esperar por ele, para aos dois Judas traidores dar batalha. No que achamos bom conselho. E outros vinham chegando, oferecendo peito de ajuda, com prestança em ponta. Veio até quem não se imaginou! como aquele Nhão Virassaia, com seus trinta e cinco cacundeiros ― o que carregava nome de fama por todo o RioVerde-Grande. E o velho Ludujo Filgueiras, montesclarense, com vinte e dois atiradores. E o grande fazendeiro coronel Digno de Abreu, que mandou, seus, trinta e tantos capangas, também, por Luís de Abreuzinho comandados, que era dele filho-natural. E o gado em pé que se provia, para se abater e se comer, chegava a ser uma boiada. Com sacas de farinha, surrão de sal, e açúcar preto e café ― até em carro-de-bois os mantimentos de fubá e arroz e feijão entregados. Só em quantidades de munição era que a gente não produzia luxo, e Titão Passos se entristeceu de não poder ter trazido a nossa, na Guararavacã tão em vão esperada. Mas a lei de homem não é seus instrumentos. Saímos em guerra. Ahã, do norte, da Lagoa-do-Boi, com troca de avisos, sobrevinha também o bastante da rapaziada dos baianos, debaixo do comando de Alípio Mota, cunhado de Sô Candelário. A simples íamos cercar bonito os Judas, não tinham escape. Aindas que se escapassem para o poente, atravessassem o rio, ah, encontravam ferro e fogo! lá estava Medeiro Vaz ― o rei dos Gerais!
[...]

Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas

Dialética

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única emoção indizível
É claro que você acha linda
E em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz

Mas acontece que eu sou triste…

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

Sentimentalismos

Quando uma dessas vovozinhas me exibe umas fotografias coloridas e ainda por cima vai apontando e explicando:
Este aqui é o meu último netinho, o outro é o mais velhinho, a do meio, seu Mario, é a que está sentada na areia — Ah, vocês nem acreditariam, mas essa é a única chateação que eu suporto com gosto.

Mário Quintana, em Porta giratória

Trecho


Realmente nada aconteceu naquela tarde cinzenta de abril. Tudo, no entanto, prognosticava um grande dia. Ele lhe avisara que sua vinda constituiria o grande fato, o acontecimento máximo de suas vidas. Por isso ela entrou no bar da Avenida, sentou-se junto a uma das mesinhas da janela, para vê-lo, mal apontasse na esquina. O garçom limpou a mesa e perguntou-lhe o que desejava. Dessa vez justamente não precisava ficar tímida e ter medo de cometer uma gafe. Estava esperando alguém, respondeu. Ele olhou-a um momento. “Será que tenho um ar tão abandonado que não posso estar esperando alguém?” disse-lhe:
Espero um amigo.
E sabia agora que a voz sairia perfeita: calma e negligente. (Ora não era a primeira vez que esperava alguém.) Ele limpou uma nódoa inexistente no canto da mesinha de mármore e, após uma demora calculada, retrucou, sem ao menos olhá-la:
Sim, senhora.
Acomoda-se melhor na cadeira estreita. Cruza as pernas com certa elegância que, Cristiano mesmo dissera, é-lhe natural. Segura a bolsa com as duas mãos, suspira descansadamente. Pronto. É só esperar.
Flora gosta muito de viver. Muito mesmo. Nessa tarde, por exemplo, apesar do vestido apertar-lhe a cintura e ela esperar com horror o momento em que tiver que se levantar e atravessar o comprido recinto com a saia justa demais, apesar de tudo isto acha bom estar sentada ali, no meio de tanta gente, para tomar café com bolinhos, como todos. Tem a mesma sensação de quando era pequena e a mãe lhe dava as panelinhas “de verdade” para encher de comida e brincar de “dona de casa”.
Todas as mesinhas do café estão repletas. Os homens fumam grossos charutos e os rapazes, metidos em amplos jaquetões, se oferecem cigarros. As mulheres bebem refrescos e mordem doces com a delicadeza de roedores, para não espalhar o “batom”. Faz um calor muito forte e os ventiladores zumbem nas paredes. Se ela não estivesse de preto poderia se imaginar num café africano, em Dakar ou Cairo, entre ventarolas e homens morenos discutindo negócios ilícitos, por exemplo. Mesmo entre espiões, quem sabe? metidos naqueles lençóis árabes.
Naturalmente era meio absurdo estar brincando de pensar justamente nessa tarde. Justamente quando Cristiano lhe prometera o maior dia do mundo e justamente, oh! Justamente quando tinha medo que nada sucedesse... simplesmente pela ausência de Cristiano... Era absurdo, mas sempre que lhe aconteciam “coisas” ela intercalava essas coisas com pensamentos perfeitamente fúteis e despropositados. Quando Nenê ia nascer e ela estava no hospital, deitada, branca e morta de medo, acompanhou obstinadamente o voo de uma mosca em torno de uma xícara de chá e chegou a pensar, dum modo geral, na vida acidentada das moscas. E na verdade, concluíra, acerca desses pequeninos seres há grandes estudos a fazer. Por exemplo: por que é que possuindo um belo par de asas não voam mais alto? Serão impotentes essas asas ou sem ideal as moscas? Outra questão: qual a atitude mental das moscas em relação a nós? E em relação à xícara de chá, aquele grande lago adocicado e morno? Na verdade, aqueles problemas não eram indignos de atenção. Nós é que ainda não somos dignos deles.
Um casal entrou. O homem parou à porta, escolheu demoradamente o lugar, para lá encaminhou-se com a mulher debaixo do braço, o ar feroz de quem se prepara para defender um direito: “Eu pago tanto quanto os outros.” Sentou-se, circundou um olhar de desafio pela sala. A mocinha era tímida e sorriu para Flora, um sorriso de solidariedade de classe.
Bem, o tempo está correndo. Um garçom de bigode louro dirige-se a Flora, segurando acrobaticamente uma bandeja com refresco escuro no copo suado. Sem lhe perguntar nada, pousa a bandeja, aproxima o copo de suas mãos e se afasta. Mas quem pediu refresco, pensa ela angustiada. Fica quieta, sem se mover. Ah! Cristiano, venha logo. Todos contra mim... Eu não quero refresco, eu quero Cristiano! Tenho vontade de chorar, porque hoje é um grande dia, porque hoje é o maior dia de minha vida. Mas vou conter em algum cantinho escondido de mim (atrás da porta? que absurdo) tudo o que me atormentar até a chegada de Cristiano. Vou pensar em alguma coisa. Em quê? “Meus senhores, meus senhores! Eis-me aqui pronta para a vida! Meus senhores, ninguém me olha, ninguém nota que eu existo. Mas, meus senhores, eu existo, eu juro que existo! Muito, até. Olhem, vocês, que têm esse ar de vitória, olhem: eu sou capaz de vibrar, de vibrar como a corda esticada de uma harpa. Eu posso sofrer com mais intensidade do que todos os senhores. Eu sou superior. E sabem por quê? Porque sei que existo.” E se bebesse o refresco? Pelo menos aquela mulher que a olha como se ela não estivesse ali, como se ela fosse uma mesinha vazia, verá que ela faz alguma coisa.
Escolhe com cuidado uma palhinha, desembrulha-a com gestos negligentes e chupa o primeiro gole. Ainda bem que Nenê não veio. O refresco é muito gelado e tudo que Nenê vê quer provar. Quando Cristiano vier, perguntará antes por ela ou por Nenê? Cristiano disse que ambas eram duas crianças, que no grupo ele era o único adulto. Mas isso não entristece muito Flora. Uma vez, logo no princípio, ele a deixou sentada a um canto do quarto e pôs-se a passear de um lado para outro, esfregando o queixo. Depois parou diante dela, olhou-a um tempo e disse: “Mas é uma menina!” No entanto, depois se acostumou e Flora sempre lhe agradava. Mesmo porque desde pequena sabia brincar de tudo. Com o Ruivo brincava de soldado que mata, com a vizinha debaixo era carroceiro, no colégio bancava a índia que tem muitos filhos, e ainda professora, dona de casa, vizinha má, mendiga, aleijada e quitandeira. Com o Ruivo brincava de soldado, obrigada pelas circunstâncias, porque precisava conquistar sua admiração.
Assim, não foi difícil brincar de amante de Cristiano. E brincou tão bem que ele, antes de partir, lhe disse:
Sabe, você, gurizinha, vale mais do que eu pensava. Não é uma menininha, não. É uma mulher cheia de senso e independência.”
Gostou do elogio de Cristiano como quando ele elogiara seu vestido novo. Ou quando o professor de francês lhe dissera: “Você serez ainde un bon poète!” Ou quando sua mãe dizia: “Quando isso crescer vai prender qualquer um!” Ora, naturalmente que ela sabia fazer diversas coisas e até muito bem-feitas. Mas ela não era nenhuma daquelas personalidades que encarnava para se divertir ou por necessidade. Flora era outra que ninguém descobrira ainda! Eis o mistério.
O refresco faz-lhe um mal horrível. O estômago se contrai em náuseas. Fecha os olhos um momento e vê o líquido escuro em ondas revoltas fluir e refluir, rugindo. E Cristiano não vem. Faz uma hora que está ali. Se Cristiano chegasse naquele momento mandaria buscar qualquer coisa amarga e as náuseas desapareceriam. Depois ele diria orgulhoso: “Nem sei mesmo o que você faria sozinha. Você arranja coisas justamente no momento impróprio.” E por que de repente esse gosto de café na boca? Acena para o garçom. “Água gelada”, pede. Depois do primeiro gole, anima-se:
De que era o refresco?
De café, senhorita.
Ah, de café. Uh, piorou. O garçom a encara com curiosidade e ironia:
Está melhor, mademoiselle?
Sem dúvida, eu não sentia coisa alguma.
Beba uma xícara de café quente que passa tudo, continuou ele irredutível.
Traga, por favor.
Cristiano, onde está você? Eu sou pequena, meus senhores, no fundo eu sou do tamanho de Nenê. Não sabem quem é Nenê? Pois ela é loura, tem os olhos pretos e Cristiano diz que não se surpreende ao ver sua carinha muito suja. Diz que no nosso quarto desarrumado, as flores frescas, o rostinho de Nenê e meu ar de ‘pobre querida’ são indivisíveis. Mas há uma coisa no meu estômago. E Cristiano não vem. Se Cristiano não vier? A dona da casa onde moramos, meus senhores, jura como é frequente o abandono de moças com filhos. Conhece até três casos. Que dizem? Oh, não fumem agora.”
O garçom vem com o café. Tem um lindo bigode louro.
Se eu fosse a senhora, procurava me livrar do refresco. Tem muita gente que enjoa com refresco de café. É só botar dois dedos no céu da boca. O toalete é à esquerda.
Flora volta de lá humilhada e não ousa encarar o bigode louro. Recosta-se na cadeira e sente-se miseravelmente bem.
Uma aragem fresca penetra pelas janelas. “Declarações de Mussolini. Suicídio no Leblon! Olhe a Noite!” Longínquos sons de buzina. Cristiano perdeu o trem ou me abandonou para sempre.
O café tornou-se familiar aos seus olhos. Os garçons são afinal uns homens bobos e muito ocupados. Estão ajeitando as cadeiras no estrado da orquestra, limpando o piano. Fregueses de outra classe, da classe dos que depois do banho e do jantar “precisam gozar a vida enquanto são moços; e para que se tem dinheiro?” instalam-se às mesinhas.
Quer dizer que eu estou perdida”, pensa Flora.
Ouve de início umas pancadinhas surdas, ritmadas, singulares e misteriosas, subindo do estrado da orquestra. Em efervescência crescente, como animaizinhos borbulhando em meio desconhecido, vai-se acentuando o ritmo. E de repente, do último negro da segunda fila, ergue-se um grito selvagem, prolongado, até morrer num queixume doce. O mulato da primeira fila contorce-se numa reviravolta, seu instrumento aponta para o ar e responde com um “bu-bu” rouco e infantil. As pancadinhas parecem homens e mulheres gingando num terreiro da África. Súbito, silêncio. O piano canta três notas soltas e sérias. Silêncio.
A orquestra, em movimentos suaves, quase imóvel, agachada, desliza um fox-blue pianíssimo, insinuante como uma fuga.
Alguns pares saíram enlaçados.
Estou aqui há tanto tempo, há tanto tempo! pensa Flora e sente que deve chorar. Quer dizer que estou perdida. Comprime a testa com as mãos. Que é que vem agora? O garçom tem pena e vem lhe dizer que pode esperar quanto quiser. Obrigada. Vê-se no espelho. Mas ela é esta que está ali? é essa, de cara de coelho assustado, quem está pensando e esperando? (De quem é essa boquinha? De quem são esses olhinhos? Seus, não me amole.) Se eu não procurar me salvar, afogo-me. Pois se o Cristiano não vier, quem dirá a toda essa gente que eu existo? E se eu, de repente, gritar pelo garçom, pedir papel e tinta e disser: Meus senhores, vou escrever uma poesia! Cristiano, querido! Juro que eu e Nenê somos suas.
Vejam só: Debussy era um músico-poeta, mas tão poeta que um só dos títulos de suas suítes fazem você se deitar na relva do jardim, os braços sob a cabeça, e sonhar. Vejam só: Sinos entre folhas. Perfumes da noite... Vejam só... gritou uma mulher magra na mesa vizinha, batendo com as costas das mãos na mesa, como se dissesse: “Eu lhe garanto, agora é noite. Não discuta.”
Tolice, Margarida, retrucou um dos homens friamente, tolice. Ora músico-poeta... Ora veja...
Flora pediria papel e escreveria:

Árvores silenciosas
perdidas na estrada.
Refúgio manso
de frescura e sombra.”

Cristiano não virá. Um homem se aproxima. Que há?
Hein?
Pergunto se deseja dançar, continua. Pisca os olhos míopes com um ar tolo e curioso.
Oh, não... Realmente, não... eu...
Ele continua a olhá-la.
Eu, francamente, não posso... Oh, talvez mais tarde... Espero um amigo.
Ele ainda parado. Que fazer com aquele entulho? Meu Deus, os meus olhos.
Eu não...
Por favor, madame, já entendi, diz o homem ofendido.
E se afasta. O que foi que aconteceu, afinal? Não sei, não sei. Se eu não abaixo o rosto, veem os meus olhos. Árvores silenciosas perdidas na estrada. Oh, com certeza eu não choro por causa do homem míope. Também não é por Cristiano que nunca mais virá. É por essa mulher suave, é porque Nenê é linda, linda, é porque essas flores têm um perfume longínquo. Refúgio manso de frescura e sombra. “Meus senhores, agora justamente que eu tinha tanto para dizer, não sei me exprimir. Sou uma mulher grave e séria, meus senhores. Tenho uma filha, meus senhores. Poderia ser um bom poeta. Poderia prender quem eu quisesse. Sei brincar de tudo, meus senhores. Poderia me levantar agora e fazer um discurso contra a humanidade, contra a vida. Pedir ao governo a criação de um departamento de mulheres abandonadas e tristes, que nunca mais terão o que fazer no mundo. Pedir qualquer reforma urgente. Mas não posso, meus senhores. E pela mesma razão nunca haverá reformas. É que em vez de gritar, de reclamar, só tenho vontade de chorar bem baixinho e ficar quieta, calada. Talvez não seja só por isso. Minha saia é curta e apertada. Eu não vou me levantar daqui. Em compensação tenho um lenço pequeno, de bolinhas vermelhas, e posso muito bem enxugar o nariz sem que os senhores, que nem sabem que eu existo, vejam.”
Na porta surge um homem grande, com jornais na mão. Olha para todos os lados procurando alguém. Vem esse homem exatamente na direção de Flora. Comprime sua mão, senta-se. Olha-a com olhos brilhantes e ela ouve confusamente palavras soltas. “Bichinha, coitadinha... o trem... Nenê... querida...”
Tolice Margarida, tolice, diz o homem na mesa vizinha.
Quer alguma coisa? pergunta Cristiano. Refresco?
Oh, não, desperta Flora. O garçom sorri.
Cristiano, completamente feliz, aperta-lhe levemente o joelho por baixo da mesa. E Flora resolve que nunca, nunca mais mesmo, há de perdoar Cristiano pela humilhação sofrida. E se ele não tivesse vindo? Ah, então toda essa espera teria desculpa, teria sentido. Mas, assim? Nunca, nunca. Revoltar-se, lutar, isso sim. É preciso que aquela Flora desconhecida de todos, apareça, afinal.
Flora, eu tive tanta, tanta saudade de você.
Meu bem..., diz Flora docemente, esquecendo a saia curta e apertada.

Clarice Lispector, em Todos os contos