segunda-feira, 10 de junho de 2024

O Caso do Papagaio Zé Augusto

Eu já contei esse caso do papagaio Zé Augusto algumas vezes, mas ninguém acredita. Felizmente, tenho testemunhas. Não somente a família toda é testemunha, como alguns amigos, que tiveram a oportunidade de ver Zé Augusto depois que ele chegou aos paroxismos do vício, por assim dizer. É uma história triste.
Lá em casa, sempre tivemos bichos doidos. Uma vez, por exemplo, quando a gente morava perto de Cotinguiba, em Sergipe, meu pai pegou um torrão de barro pequeno e o jogou num pinto já meio frangote, que estava ciscando uma plantinha de estimação. Aconteceu que o torrão pegou na cabeça do bicho e ele ficou maluco, deu muito trabalho depois. Para comer era uma dificuldade, porque ele partia para a comida de marcha a ré e considerava necessário fazer umas piruetas antes de bicar o milho. E ele sempre errava de milho, era uma produção muito grande dar comida a esse frango. Mas cresceu, ficou um belo galo e se dava muito bem com toda a família. Todo mundo gostava dele, apesar do problema que ele tinha na idéia. Até com as galinhas ele se dava bem, embora errasse bastante (meu pai dizia que não era erro, era porque o bicho era inovador) e tivesse sido, provavelmente, responsável por vários escândalos naquele galinheiro. Morreu de velho. Segundo minha mãe, muito feliz, porque não sabia que ia morrer e até a última hora ficou dançando aquelas dancinhas dele, ninguém dizia que já estava nas últimas.
Desta forma, não se estranhou Zé Augusto. Zé Augusto era um papagaio azul que deram de presente a meu pai e que só falava “Zé Augusto”. A gente mostrava esse papagaio a todo mundo que aparecia, porque ele tinha um ar muito inteligente e, quando se perguntava como era o nome dele, ele respondia “Zé Augusto”. Mas depois não dizia mais nada e a pessoa ficava decepcionada. Minha irmã hoje acha que era um problema de temperamento difícil mais do que propriamente limitação de recursos, embora não se possa ter certeza, a esta altura.
O fato é que Zé Augusto vivia ali, na dele, num poleiro instalado junto do tanque de lavar roupa, onde havia uma tomada para máquina de lavar roupa, sem máquina de lavar roupa. Não incomodava ninguém, passava o dia inteiro comendo as comidinhas dele e balançando a cabeça. Na realidade, ele balançava tanto a cabeça que só podia ser de desgosto ou de desilusão, hoje é que a pessoa entende. Mas, um dia, minha irmã anunciou à mesa:
Minha mãe, Zé Augusto está tomando choque. Já peguei uma ou duas vezes.
Minha mãe pediu esclarecimentos. Aconteceu que o papagaio roeu a tomada e agora, assim umas três ou quatro vezes por dia, olhava para um lado, olhava para o outro, e enfiava a língua no fio descoberto, para tomar choque. O choque devia ser um grande barato, porque ele ficava arrepiado, se tremia todo, largava o fio e passava os próximos cinco minutos agitadíssimo, percorrendo nervosamente o poleiro de ponta a ponta. No começo, minha mãe teve uma certa tolerância. Houve pelo menos uma vez em que eu quis levar uns amigos para mostrar o truque do “como é seu nome”, e ela mandou que eu esperasse.
Espere mais uns quinze minutos, eu acho que está na hora do choque dele.
E, de fato, ele ficava acanhado, no começo, em tomar o choque na frente de visitas, ou mesmo de alguém da família que estivesse observando muito de perto. Só quando a pessoa não desistia mesmo é que ele acabava não agüentando e tomava o choque de qualquer jeito, mas ficava de péssimo humor, ameaçava bicar quem estivesse por perto e dava até uns gritos, coisa que, justiça seja feita, ele só fazia quando o chateavam demais.
O problema, entretanto, surgiu quando ele passou a tomar um número cada vez maior de choques. Nos últimos dias, era praticamente um choque de cinco em cinco minutos, uma coisa triste de se ver. As penas começaram a cair, nem mesmo “Zé Augusto” ele falava mais, comia pouco, suspirava, interrompia qualquer tentativa de aproximação com um novo choque, e assim por diante. Minha mãe tentou recuperá-lo, conversava com ele, tinha paciência, mas nada adiantava. Quando a gente tentou cobrir o fio com fita isolante, ele só faltou botar a casa abaixo com a gritaria que fez, além de ter reduzido a picadinho a pouca fita isolante que conseguimos botar. Era um caso perdido. Num belo domingo, lembro como se fosse hoje, minha mãe comunicou à hora do almoço que ia dar Zé Augusto, já tinha encontrado quem quisesse e essa pessoa já sabia do problema dele.
Eu, particularmente — disse minha mãe —, acredito que não adianta afastar Zé Augusto dos choques muito repentinamente. Ele pode ter um trauma. Então eu expliquei que devem fazer a coisa com cuidado, gradualmente. Mas o que eu não posso é ter um animal viciado em casa, é um péssimo exemplo para as crianças.
Principalmente porque não fala nada — disse meu pai, e nunca mais nós vimos Zé Augusto.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

Nenhum comentário:

Postar um comentário