quinta-feira, 9 de maio de 2024

Parte IV | 3.


Como disse Wang Fígado daquela vez, depois de aprender com as próprias dores: o amor é uma doença. Pelo que deixava transparecer durante todo aquele tempo em que foi apaixonado por Leoazinha, não dava mesmo para imaginar que continuaria a viver depois que ela se casou comigo. Do mesmo modo, a cisma de Qin He por minha tia também é uma espécie de doença. Depois que ela se casou com Hao Mão Grande, ele não se jogou no rio nem se enforcou. Em vez disso, transformou sua dor em arte, e assim surgiu um brilhante artesão, como se tivesse renascido pelo barro.
Fígado não nos evitou, ele até mesmo falou, por conta própria, de sua antiga obsessão por Leoazinha, e conversando e rindo, parecia falar de outra pessoa. Sua atitude despertou em mim muita gratidão. Dissolveu o remorso guardado há tantos anos e produziu certa proximidade e respeito por ele.
Talvez não acreditem no que vou contar”, disse Fígado, “mas quando Leoazinha andava descalça na beira do rio, ela deixava pegadas, e eu ficava igual a um cachorro, de quatro na beira do rio, farejando aquele rastro, as lágrimas pingando, pa-tá, pa-tá.”
Você inventou isso agora”, disse Leoazinha, corando.
É a mais pura verdade”, garantiu Fígado, “se houver uma vírgula de mentira, quero ter furúnculo na ponta do cabelo!”
Veja só”, me disse Leoazinha, “furúnculo no cabelo! Que tal deixar sua sombra pegar gripe?”
Esse é um detalhe interessante”, falei, “quero escrever sobre você no roteiro da peça.”
Obrigado”, disse Fígado, “você deve mesmo escrever sobre todas as asneiras feitas por aquele idiota chamado Wang Fígado, material tenho de sobra.”
Se você se atrever a escrever isso, eu queimo seu manuscrito”, disse Leoazinha.
O fogo pode destruir o papel, mas não destrói a poesia em minha alma.”
Bancando o literato de novo!”, disse Leoazinha. “Wang Fígado, agora me ocorreu que era melhor ter casado com você do que com Corre Corre. Você pelo menos chorava sobre minhas pegadas.”
Cunhada, não exagere na piada, vocês formam um casal perfeito.”
Casal perfeito, pois sim”, retrucou Leoazinha, “não geramos nem o fio de cabelo de uma criança, isso é que é perfeição, não é?”
Muito bem, não vamos falar de nós, vamos falar de você: não conheceu ninguém nesses anos todos?”
Depois que sarei da minha doença, descobri que na verdade não gosto de mulher.”
Então você gosta de homem?”, provocou Leoazinha.
Não gosto de homem nem de mulher”, respondeu Fígado, “só gosto é de mim mesmo. Gosto do meu braço, da minha perna, da minha mão, da minha cabeça, das minhas feições, dos meus órgãos, das minhas vísceras, e até da minha sombra, muitas vezes converso com minha sombra.”
Acho que agora você já está com outra doença”, disse Leoazinha.
Para gostar de outra pessoa, há um preço a se pagar, mas para gostar de si mesmo, não precisa de nada. Posso me amar do jeito que eu quiser, ser dono de mim mesmo…”
Fígado nos levou para conhecer o lugar onde estava morando com Qin He. Na entrada tinha uma placa com os dizeres: ATELIÊ DO MESTRE.
No tempo da comuna, esse lugar era um estábulo aonde eu sempre vinha brincar. Lembro-me que cheirava a esterco dia e noite, no pátio tinha um poço com uma tina do lado. Todo dia, de manhãzinha, o Velho Fang levava os animais um por um até a tina para dar de beber. O Jovem Du ficava junto do poço tirando água e despejando na tina. O estábulo era grande e bem iluminado, lá dentro se enfileiravam vinte e poucos cochos de pedra. Os dois primeiros cochos, mais altos, eram para as mulas e os cavalos, e os outros, mais baixos, para os bois.
Assim que entramos, vi que ainda havia, no pátio, dezenas de estacas de amarrar os animais e, nas paredes, ainda se podiam distinguir, esmaecidas, as palavras de ordem daquele tempo. Nem mesmo o cheiro daquela época tinha se dissipado por completo.
Em princípio, era para ser demolido”, contou Fígado, “mas dizem que, numa visita de inspeção, as autoridades falaram que era preciso manter uma vila do tempo da comuna para servir de atração turística, e por isso não demoliram.”
Então será que ainda vão criar gado aqui?”, perguntou Leoazinha.
Acho que não. Velho Qin!”, gritou Fígado. “Mestre Qin! Temos visita!”
Não se ouvia um ruído dentro do galpão. Entramos atrás de Wang Fígado. Vimos que os cochos de pedra e as estacas de amarrar gado ainda estavam ali, assim como as marcas de coice e a bosta de vaca seca nas paredes. Ainda estavam ali o tacho de ferro onde cozinhavam a ração do gado e também o kang onde dormiam todos os seis filhos da família Fang. Eu mesmo passei umas noites nesse kang enorme, foi no mês mais frio do inverno, quando qualquer pingo d’água vira gelo. Os Fang eram pobres, nem cobertor tinham. Para se proteger do frio, o velho Fang ficava colocando palha no fogão até o kang se tornar praticamente uma chapa quente. Os filhos estavam tão acostumados com o calor que dormiam como pedras, enquanto eu me revirava sem conseguir pegar no sono. Agora havia ali dois conjuntos de roupa de cama. Na parede da cabeceira, estavam coladas gravuras de Ano-Novo, uma com a imagem de um qilin que traz os bebês e outra com o desfile do primeiro colocado no concurso imperial. Vimos também uma grossa tábua de madeira apoiada sobre dois cochos. Em cima da tábua havia argila e ferramentas. No banco atrás da bancada estava sentado o nosso velho conhecido Qin He. Ele vestia uma túnica azul, com manchas coloridas nas mangas e no peito. Seus cabelos já estavam brancos, mas ainda divididos no meio. Seu rosto parecia o de um potro, dois grandes olhos melancólicos e profundos. Quando entramos na sala, ele levantou a cabeça, olhou para a gente, mexeu os lábios ensaiando um cumprimento. Depois disso, retomou sua pose: o queixo apoiado nas mãos, os olhos fixos na parede, como se meditasse.
Prendemos a respiração involuntariamente, não ousávamos falar alto, andávamos na ponta dos pés com medo de fazer qualquer barulho que pudesse interromper o pensamento do mestre.
Conduzidos por Fígado, fomos ver as obras do mestre. As peças semiacabadas secavam nos cochos. As já secas e prontas para receber a pintura ficavam enfileiradas em longas prateleiras na parede norte. As criancinhas, de todas as poses e expressões, nos cumprimentavam de dentro dos cochos, pareciam cheias de vida mesmo antes de serem pintadas.
Fígado nos segredou que o mestre fica sentado assim quase todos os dias, às vezes passa noites em claro. Mas, como se fosse uma máquina, na hora marcada ele amassa o barro na bancada para mantê-lo homogêneo e macio. Às vezes passa o dia inteiro sentado sem moldar um só boneco, mas quando se põe a trabalhar a velocidade é impressionante. “No momento, sou seu vendedor e mordomo”, disse Fígado, “consegui afinal encontrar o trabalho que mais me convém, assim como o mestre encontrou afinal sua vocação.
O mestre não faz questão de muita coisa, come o que for servido. Claro que sempre compro para ele os alimentos mais nutritivos e benéficos para a saúde. Ele é o orgulho da nossa aldeia e de toda a região.
Uma vez, no meio da madrugada”, continuou, “descobri que o mestre não estava no kang. Acendi a luz às pressas e fui procurá-lo. Não estava na bancada de trabalho, nem no pátio — aonde teria ido? Suei frio de tanta aflição. Se acontecesse alguma coisa com o mestre, seria uma grande perda para a nossa aldeia. O chefe do distrito já veio aqui três vezes junto com os secretários da Cultura e do Turismo. Sabem quem é o chefe do distrito agora? É o filho de Yang Lin, lembram dele? Aquele ex-secretário-geral do Partido que sofreu muito no Nordeste de Gaomi e teve uma relação meio indefinível com sua tia. O rapaz se chama Yang Xiong, é talentoso, tem um olhar elétrico, dentes brancos, e um cheiro de tabaco fino. Dizem que estudou na Alemanha. Da primeira vez que veio, decidiu não demolir este estábulo; da segunda vez, convidou o mestre para um banquete no município, mas o mestre agarrou-se à estaca de amarrar cavalos e não quis ir de jeito nenhum, como aqueles homens que preferiam morrer a fazer vasectomia; na terceira vez, o chefe do distrito trouxe ao mestre uma placa e o certificado de mestre artesão.” Fígado retirou de um cocho de boi a placa de cobre banhada a ouro e o certificado encapado em camurça azul e nos mostrou. “Naturalmente, Hao Mão Grande também ganhou uma placa e um certificado iguais. O chefe do distrito também o convidou para o banquete, e é claro que Mão Grande não compareceu. Ele só iria a um banquete desses se Hao Mão Grande não fosse. Mas é exatamente por isso que o jovem chefe do distrito nutre uma admiração especial pelos dois talentos locais.” Fígado tirou do bolso um maço de cartões de visita, separou três e disse: “Olhem, ele me deu um cartão cada vez que veio aqui. Ele me disse assim: ‘O Nordeste de Gaomi é uma terra de muitos talentos, e você também, velho Wang, é um deles!’. Daí eu respondi que minha existência tinha sido um fracasso, uma sucessão de erros, e que, fora a minha malfadada história de amor, que todo mundo conhece, não há mais nada digno de nota em minha vida. Agora meu único ganha-pão é usar do meu palavreado para vender esses bonecos de barro. Mas sabem o que ele falou? ‘Alguém capaz de dedicar metade da vida a um amor já é uma lenda em si. Tantos personagens excêntricos e extraordinários já surgiram neste Nordeste de Gaomi, para mim você é um deles.’ Esse cara é, sem dúvida, um novo modelo de funcionário público, não tem nada a ver com aquilo que se vê por aí. Na próxima vez em que ele vier, vou apresentá-lo a vocês. Ele me incumbiu de cuidar bem do mestre e garantir sua segurança. Por isso, quando descobri que o mestre desapareceu no meio da noite, fiquei empapado de suor. Se algo acontecesse com o mestre, o que eu diria ao chefe do distrito? Sentei-me na frente do fogão, paralisado, vendo o luar escorrer como água para dentro do cômodo. Na sombra atrás do fogão, dois grilos estridentes davam o tom de desolação. Nisso ouvi uma risadinha que vinha de dentro do cocho. Levantei-me num pulo e dei uma espiada, ali estava o mestre deitado de barriga para cima. Como o cocho era curto demais, ele cruzou as pernas à maneira dos iogues e deixou as duas mãos sobrepostas no peito. Tinha uma expressão serena e sorridente, olhei com mais atenção e vi que ele estava em sono profundo, rindo no sonho. Vocês devem saber que os gênios da nossa terra sofrem de insônia severa. Eu, Wang Fígado, apesar de ser só meio gênio, também padeço desse mal! Não sei se vocês dois também têm insônia.”
Leoazinha e eu trocamos um olhar e balançamos a cabeça. “Não temos problemas para dormir, mal encostamos no travesseiro e já estamos ressonando. Não somos gênios, portanto.”
Nem todo insone é gênio, mas quase todo gênio é insone”, disse Fígado. “A insônia de sua tia já é famosa em toda região. Altas horas da noite, quando reina o mais completo silêncio, muitas vezes se ouve ao longe um canto rouco, é a tia cantando. Enquanto ela faz seu passeio noturno, Hao Mão Grande molda seus bonecos. A insônia dos dois é cíclica, oscila conforme as fases da lua. Quanto mais brilhante a lua, maior a insônia, quando o brilho diminui, conseguem pegar no sono. Por isso o letrado e talentoso chefinho do distrito batizou os bonecos de Hao Mão Grande de ‘filhos do luar’. E até mandou uma equipe de televisão filmar o homem moldando os bonecos numa noite enluarada. Já viram esse programa? Ainda não? Não se preocupem. A série é uma iniciativa do próprio prefeitinho, se chama Personagens singulares do Nordeste de Gaomi. O episódio de abertura é sobre os ‘Filhos do luar’ do mestre Hao; o segundo episódio é ‘O mestre no cocho’; o terceiro, ‘O bem-falante’; o quarto, ‘Cantando com um coro de rãs’. Se vocês quiserem assistir, é só eu telefonar para a TV que eles mandam entregar os DVDs — versão original sem cortes —, inclusive vou sugerir à TV que faça um episódio sobre vocês, até já pensei no título: ‘O regresso dos desterrados’.”
Leoazinha e eu trocamos um sorriso, sabíamos que aquela conversa já tinha entrado no campo da criação artística, mas não era necessário acordá-lo, para que acordá-lo? Deixamos que ele continuasse falando.
Ele contou: “O mestre, acometido de insônia há tantos anos, conseguiu adormecer dentro do cocho, e dormiu profundamente, como um bebê inocente, aquele que, anos atrás, vinha boiando num cocho de madeira rio abaixo. Fiquei tão emocionado que meus olhos se encheram de lágrimas. Só os insones sabem o sofrimento que é não conseguir pegar no sono, e só os insones sabem a felicidade que é dormir. Eu fiquei velando ao lado do cocho, prendi a respiração com medo de fazer barulho e acordar o mestre. Aos poucos, minha vista ficou embaçada e senti que diante de mim aparecia uma trilha em meio a um capinzal denso, as flores do campo desabrochavam em uma variedade de cores e perfumes, borboletas esvoaçavam, abelhas zuniam. Ali na frente uma voz me chamava, era uma voz de mulher, muito anasalada, que soava meio abafada, mas parecia extremamente familiar. A voz me guiava para adiante, mas eu não conseguia ver a metade de cima do corpo dela, só a metade de baixo. Tinha nádegas cheias, roliças, pernas compridas e calcanhares escarlate, calcanhares escarlate que deixavam pegadas bem rasas no chão úmido. Nessas pegadas, de nitidez incomparável, dava para ver até as finas linhas deixadas pelas solas dos pés. Assim, eu fui atrás dela, e fui, e fui, e o caminho parecia que não acabava nunca… Pouco a pouco, senti que andava junto com o mestre. Mas não sei dizer desde quando, nem desde onde me acompanhava. Seguimos os calcanhares escarlate e chegamos a um pântano, o vento trazia do fundo do lodaçal um cheiro de lama e plantas em decomposição. Eu pisava em touceiras de juncos, lá longe cresciam caniços e cálamos, e muito mais flores e ervas cujos nomes desconhecíamos. Do fundo desse terreno alagado, vinham risos e algazarra de crianças. A mulher que só tinha visível a metade inferior do corpo gritou para o pântano com aquela voz carregada de magnetismo: ‘Pestes e pestinhas, robe de ouro, cinturão de jade, quem foi agraciado, que venha agradecer, quem é devedor, que venha pagar’. Mal terminou de pronunciar essas palavras e vi uma multidão de criancinhas vir correndo pelos charcos, vestiam apenas uma espécie de aventalzinho vermelho que cobria a barriga e deixava o traseiro de fora. Gritavam alegres em uníssono. Umas usavam uma trança espetada para cima, outras tinham a cabeça toda raspada e outras ainda deixavam crescer três tufos de cabelo, à maneira das pinturas tradicionais. Seus corpos, pelo visto, eram bem pesadinhos. Uma membrana elástica parecia ter se formado na superfície do pântano. Correndo ali em cima, as crianças ganhavam mais embalo a cada passo, pulavam como cangurus. Os meninos, e claro que também havia meninas, cercavam a mim e ao mestre; os meninos, e as meninas também, abraçavam nossas pernas, saltavam em nossos ombros, agarravam nossas orelhas, puxavam nossos cabelos, sopravam em nossos pescoços, cuspiam em nossos olhos. Nos jogaram no chão e pegaram punhados de barro para passar em nossos corpos e também nos deles… Depois, passado algum tempo, ficaram quietas de repente, formaram um semicírculo a nossa frente, uns de bruços, outros sentados, uns de joelhos, outros com o queixo apoiado nas mãos, uns roendo os dedos, outros de boca aberta… Em resumo, tinham expressões naturais e faziam poses diversas. Meu Deus, mas não são esses os modelos do mestre? Vi que o mestre já tinha começado a trabalhar fazia tempo. Ele fixava os olhos numa criança, pegava um punhado de barro, apertava aqui e ali, e produzia a imagem viva de uma criança. Quando terminava uma, olhava para outra, pegava mais um punhado de barro, apertava aqui e ali, e produzia a imagem viva de outra criança…
Um canto de galo me fez acordar num sobressalto. Percebi que tinha adormecido apoiado na borda do cocho. Minha baba empapava um bom pedaço da roupa sobre o peito do mestre. É só através da lembrança do sonho que o insone consegue saber se dormiu de fato. Era como se eu ainda estivesse vendo aquela cena, isso queria dizer que eu dormi mesmo. Wang Fígado, o insone crônico, conseguiu dormir debruçado na borda de um cocho, aí está uma felicidade digna de se comemorar com fogos de artifício! No entanto, felicidade ainda maior foi o mestre ter conseguido dormir. Ele espirrou, abriu os olhos lentamente e pulou do cocho como se de repente se lembrasse de algo importante. Era madrugada, a alvorada atravessava a janela, o mestre lançou-se à bancada de trabalho, abriu as camadas de filme plástico que embrulhavam a argila, arrancou um pedaço e foi amassando, e foi apertando até surgir na bancada um boneco de aventalzinho na barriga e trança erguida para o céu. Senti uma emoção enorme, aquela voz magnética parecia soar de novo em meus ouvidos. Quem seria a dona da voz? Quem mais poderia ser? Era a misericordiosa e benevolente Trazedora de Bebês!”.
Ao dizer isso, os olhos de Fígado cintilaram marejados, e vi os olhos de Leoazinha lançarem um brilho diferente. Ela, de fato, tinha embarcado na conversa dele.
Fígado continuou: “Fui buscar a câmera na ponta dos pés e, sem me atrever a usar o flash, fotografei discretamente o mestre mergulhado em seu processo de criação. Na verdade, acho que nem mesmo um tiro disparado rente ao seu ouvido poderia acordá-lo. Seu semblante mudava a toda hora: ora sereno e absorto, ora risonho, às vezes endiabrado, às vezes solitário e melancólico — logo descobri que a expressão do mestre correspondia à expressão do boneco que estava sendo moldado em suas mãos, ou seja, enquanto dava forma a uma criança, ele próprio se tornava aquela criança, criava uma ligação visceral com ela.
Na bancada diante do mestre, os bonecos aos poucos se multiplicavam, surgia um, e mais um, e agora outro. Os meninos, e as meninas também, formavam um semicírculo, todos voltados para o mestre, tal como eu tinha visto em meu sonho! Foi uma surpresa imensa! Uma emoção sem tamanho! Então duas pessoas podem sonhar o mesmo sonho. São ‘almas que se tocam’, como diziam os antigos. Com isso descreviam o vínculo entre um homem e uma mulher que se amam, mas também se aplica perfeitamente a mim e ao mestre. Não somos amantes, mas compartilhamos a mesma desdita! A essa altura vocês já devem entender por que, entre os tantos bonecos que o mestre faz, nenhum é igual a outro. Ele não vai buscar as imagens de crianças só na vida real, mas também no sonho. Embora minhas mãos careçam de técnica, minha alma possui uma imaginação farta e meus olhos têm o poder de uma câmera. Consigo transformar uma criança em dezenas, centenas ou até milhares, e também sintetizar milhares, centenas ou dezenas de crianças numa só. Através dos sonhos, transmito ao mestre as imagens de crianças guardadas na minha cabeça, e ele, com suas mãos, materializa essas imagens numa obra. Por isso digo que o mestre e eu somos parceiros espirituais. Pode-se dizer que essas obras são nossa criação conjunta. Com isso, não pretendo roubar o mérito dele. Depois daquela minha história de amor, já me desencantei das coisas mundanas. Fama e fortuna, para mim, são nuvens passageiras. Digo tudo isso só para ilustrar esse milagre, ilustrar a relação entre o sonho e a criação artística. Queria que vocês entendessem que o fim de um amor é um tesouro, sobretudo para quem se dedica à criação artística. Quem nunca passou pela têmpera dessa dor, jamais alcança as esferas mais altas da arte.”
Enquanto Wang Fígado nos dirigia sua caudalosa narrativa, o mestre mantinha o queixo apoiado nas mãos, quase imóvel, como se ele próprio tivesse se transformado numa estátua de barro.

Mo Yan, in As rãs

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