segunda-feira, 13 de maio de 2024

Parte Dois | Um ano mais tarde…



[…]

O problema é, o que eu faria com ela depois de conquistá-la? – é como ganhar um anjo no inferno e você tem é autorizado a descer com ela para onde é pior ou para onde talvez haja luz, alguma, lá embaixo, talvez eu esteja maluco –
Ela está pirando”, diz Bull, “essas bolas fazem isso com todo mundo, com você, qualquer pessoa.”
Na verdade, duas noites mais tarde o próprio Bull tomou demais e comprovou isso –
O problema dos viciados, abençoados os viciados em narcóticos, é conseguir a parada – Veem recusas por todos os lados, estão permanentemente infelizes – “Se o governo me desse morfina o suficiente todos os dias, eu seria totalmente feliz e teria a maior disposição de trabalhar como enfermeiro em um hospital Cheguei a mandar minhas ideias sobre o assunto para o governo, em uma carta em 1938 enviada de Lexington, na qual dizia que era possível resolver o problema dos narcóticos botando os viciados para trabalhar, com suas doses diárias, na limpeza do metrô, qualquer coisa, como qualquer outra pessoa doente – Como os alcoólatras, eles precisam de remédio –”
Não me lembro de tudo o que aconteceu exceto pela noite passada tão profética, tão horrível, tão triste e louca – Melhor fazer isso assim, por que ficar valorizando?

Tudo começou quando Bull ficou sem morfina. Estava mal e tomou umas bolas demais (secanol) para compensar a falta de morfina, por isso fica agindo como um bebê, desleixado, como se estivesse senil, não tão ruim quanto na noite em que dormiu em minha cama no telhado porque Tristessa tinha pirado e estava quebrando tudo no quarto dele e batendo nele e caindo de cabeça no chão. Ela tinha comprado as bolas em uma farmácia, Bull não dava mais para ela – As senhorias ansiosas estão gritando na porta, achando que nós a estamos espancando, mas é ela quem está nos dando uma surra –
As coisas que ela me disse, o que ela realmente pensava de mim, agora vieram à tona, um ano mais tarde, um ano tarde demais, e tudo o que eu devia ter feito era contar a ela que eu a amava – Ela me acusou de ser um maconheiro sujo, me expulsou do quarto de Bull, tentou me bater com uma garrafa, tentou pegar minha bolsa de tabaco e ficar com ela, precisei lutar com ela – Bull e eu escondemos a faca de pão embaixo do tapete – Ela fica ali sentada no chão como um bebê idiota, dizendo palavras sem sentido para os objetos – Ela me acusa de tentar fumar maconha tirada da minha bolsa de tabaco mas é apenas fumo Bull Durham para enrolar cigarros porque os cigarros comerciais têm um produto químico neles para mantê-los firmes que prejudicou minhas veias e artérias flebíticas sensíveis –
Então Bull está com medo que ela o mate à noite, não conseguimos tirá-la de lá, antes (há uma semana) ele tinha chamado a polícia e as ambulâncias e nem eles conseguiram tirá-la de lá, México – Então ele vai dormir na cama de meu quarto novo, com lençóis limpos, se esquece que já tomou duas bolas e manda mais duas e aí fica cego, não consegue achar os cigarros, tateia e derruba tudo, mija na cama, derruba o café que levo para ele, eu tenho que dormir no chão de pedra entre percevejos e baratas, eu, mal-humorado, o insulto a noite inteira: “Olhe só o que você fez com minha cama limpinha”.
Não posso evitar – preciso achar outra cápsula – Isto é uma cápsula?” Ele segura um palito de fósforos e acha que é uma cápsula de morfina. “Me dá sua colher” – Ele vai fervê-loe se picar – meu Deus – Ao amanhecer, na hora cinzenta, ele finalmente vai embora para seu quarto aos tropeções. Leva todas as suas coisas, incluindo uma Newsweek que ele nunca poderia ter lido – Derramo as latas de mijo na privada. Está totalmente azul, como o azul de Sir Joshua Reynolds. Penso: “MEU DEUS, ele deve estar morrendo!” mas depois descobri que eram latas de anil – Enquanto isso, Tristessa tinha dormido e estava se sentindo melhor e de alguma forma eles saíram e descolaram suas doses e no dia seguinte ela voltou batendo na janela de Bull, pálida e linda, já não era mais uma feiticeira asteca, pedindo desculpas com ternura –
Ela vai voltar a tomar bola de novo em uma semana”, diz Bull – “Mas eu não vou mais dar para ela” – ele engole uma –
Por que você toma?!” grito.
Porque eu sei como, eu sou viciado há quarenta anos.”
Então chegou a noite fatal –
Eu já tinha arranjado um táxi e uma vez na rua disse a Tristessa que a amo – “Yo te amo” – Sem resposta – Ela mente para Bull e conta a ele que eu fiz a proposta para ela dizendo “Você já dormiu com muitos homens, por que não dormir comigo?” – Eu jamais disse tal coisa, apenas “Yo te amo” – Porque eu a amo – Mas o que fazer com ela – Ela não costumava mentir antes das bolas – Na verdade costumava rezar e ir à igreja –
Desisti de Tristessa e esta tarde, com Bull passando mal, tomamos um táxi para ir até os cortiços encontrar El Indio (O Bastardo Negro como era conhecido em seu ramo), que sempre tem alguma coisa – Sempre foi meu pressentimento secreto que El Indio também ama Tristessa – Ele tem belas filhas crescidas, deita-se em um leito por trás de cortinas finas com a porta escancarada para o mundo, doidão de M, sua mulher mais velha está sentada ansiosa em uma cadeira, os ícones queimam, ocorrem discussões, gemidos, tudo sob os infinitos céus mexicanos – Chegamos até sua casa e a sua velha mulher nos diz que é sua esposa (não sabíamos) e que ele não está então sentamos nos degraus de pedra que davam para aquele terreno maluco cheio de crianças berrando e bêbados e mulheres com roupa para lavar e cascas de bananas, e você devia pensar e esperar aqui – Bull está passando tão mal que precisa ir para casa – Alto, encurvado, o mago quase cadáver ele segue, me deixando bêbado sentado na pedra desenhando as crianças em meu caderninho –
Então surge uma espécie de anfitrião, um homem amistoso e imponente, com um copo cheio de pulque, dois copos, ele insiste que a gente beba de vira-vira, eu topo, bam, para dentro, o suco de cactus escorrendo de nossos lábios, ele me ganha – Mulheres riem Há uma cozinha grande – Ele me traz mais – bebo e desenho as crianças – Ofereço dinheiro pelo pulque, mas ele não aceita – Começa a escurecer no quintal.
Já bebi quase um litro de vinho no caminho até ali, é um de meus dias de beber, tenho andado entediado e triste e perdido – também, por três dias tenho pintado e desenhado a lápis, giz de cera e aquarelas (minha primeira tentativa formal) e estou exausto Fiz um esboço de um artista mexicano pequeno e barbado no teto de sua cabana e ele arrancou o desenho do caderno grande para guardar com ele – bebemos tequila de manhã e fizemos desenhos um do outro – Ele fez uma espécie de esboço de turista de mim, que mostrava como eu era um americano bonito e jovem, não entendo (ele quer que eu compre?) – Eu fiz um terrível rosto negro apocalíptico dele, também seu corpo miúdo retorcido na beira do sofá. Os céus e a posteridade irão julgar toda essa arte, seja lá o que for – Então estou desenhando um menininho em especial que não para quieto e então começo a desenhar a Virgem Madona –
Surgem mais companheiros e eles me convidam para um grande salão onde há uma mesa branca grande coberta com xícaras de pulque e no chão jarros cheios – Impressionantes os rostos ali – Penso “Vou me divertir e enquanto isso estou em frente à porta de El Indio e vou pegá-la para Bull quando ele chegar em casa – E Tristessa vai chegar também – Borracho, secamos xícaras grandes de suco de cactus e há um cantor idoso com violão e seu jovem menino discípulo com lábios sensíveis grossos e a anfitriã grande e gorda que parecia saída da Idade Média de Rabelais e Rembrandt que canta – O líder dessa grande gangue de quinze parece ser Pancho Villa na cabeceira da mesa, o rosto vermelho de barro, perfeitamente redondo e alegre, mas com uma expressão de coruja mexicana, com olhos loucos (acho) e uma camisa vermelha quadriculada muito legal e como sempre em uma felicidade extática – Mas ao lado dele há outros mais sinistros, espécie de tenentes, olho para eles do outro lado da mesa direto nos olhos levanto um brinde e chego a perguntar “Que és la vida? O que é a vida?” – (para mostrar como sou esperto e filosófico) – Enquanto isso um homem de terno e chapéu azuis parece o mais amistoso, ele me conduz até o banheiro para um papo legal enquanto mijamos Ele tranca a porta – Seus olhos estão muito afundados em órbitas gorduchas e marcadas estilo W.C. Fields – órbitas é uma palavra tão limpa – mas um par perverso de olhos engraçados, também um hipnotizador, eu fico olhando fixamente para ele, continuo a gostar dele – Gosto tanto dele que quando ele pega minha carteira e conta meu dinheiro eu rio, finjo que tento pegá-la de volta, ele para de contar – Outros estão tentando entrar no banheiro – “Isso é o México!” diz ele. “Se a gente quiser, a gente fica aqui” – Quando ele me devolve a carteira vejo que meu dinheiro ainda está lá dentro mas juro pela Bíblia, por Deus, por Buda por qualquer coisa supostamente sagrada, que na vida real não havia mais dinheiro naquele carteira (carteira, scharteira, apenas um pedaço dobrado de couro para guardar cheques de viagem) – Ele me deixa alguma grana porque mais tarde dou vinte pesos a um sujeito grande e gordo e peço a ele para descolar um pouco de maconha para o grupo todo – Ele também insiste em me levar ao banheiro para confabulações sinceras, de alguma maneira meus óculos escuros desaparecem –
No fim Chapéu Azul na frente de todo mundo simplesmente arranca meu caderno de dentro de meu casaco (de Bull), como se fosse uma piada, com o lápis e tudo, e o guarda em seu próprio paletó e olha para mim, pervertido e divertido – Na verdade não consigo evitar rir, mas então digo “Vamos lá, vamos, me devolva meus poemas” e tento meter a mão em seu paletó e ele se esquiva, e tento outra vez e ele não deixa Viro-me para o homem de aparência mais distinta ali, na verdade, o único, que está sentado ao meu lado, “Você assume a responsabilidade de conseguir meus poemas de volta?”
Ele diz que sim, sem compreender o que estou dizendo, mas eu, bêbado, suponho que ele concorda – Enquanto isso em um deslumbramento cego de êxtase jogo cinquenta pesos no chão para provar algo mais tarde jogo dois pesos no chão dizendo “É pela música” – Eles acabam dando aquilo para os dois músicos mas estou orgulhoso demais em busca de reconsideração para começar a procurar meus cinquenta pesos também, mas você vai ver que este é apenas um caso de querer ser roubado, uma espécie de exultação estranha e de poder de bêbado, “Não ligo para dinheiro, sou o rei do mundo”, eu mesmo vou liderar suas revoluçõezinhas” – Comecei a executar isso fazendo amizade com Pancho Villa, e meu irmão ouve muito bater de copos e vira-vira e abraços, e música – E a essa hora estou idiota demais para conferir minha carteira, mas não sobrou um centavo Enquanto isso fico muito orgulhoso em demonstrar o quanto aprecio a música, chego a batucar na mesa – No fim saio com o rapaz gordo para conversar no banheiro e quando estamos a caminho surge nos degraus uma mulher estranha, pálida e fantasmagórica, lenta, majestosa, nem jovem nem velha, não consigo evitar olhar para ela e mesmo quando percebo que é Tristessa continuo a olhar admirado para essa mulher estranha e parece que ela chegou para me salvar mas ela só chegou para arranjar uma dose com El Indio (que, por falar nisso, agora, segundo o próprio, tinha ido encontrar Bull a três quilômetros de distância) deixo o bando alegre de ladrões e sigo meu amor.
Ela está usando um vestido comprido sujo e um xale e seu rosto está pálido, com olheiras, aquele nariz fino patrício levemente adunco, os lábios luxuriantes, aqueles olhos tristes – e a música de sua voz, o lamento de sua canção, quando ela fala com os outros em espanhol…
[…]

Jack Kerouac, in Tristessa

Nenhum comentário:

Postar um comentário