[…]
O
problema é, o que eu faria com ela depois de conquistá-la? – é
como ganhar um anjo no inferno e você tem é autorizado a descer com
ela para onde é pior ou para onde talvez haja luz, alguma, lá
embaixo, talvez eu esteja maluco –
“Ela
está pirando”, diz Bull, “essas bolas fazem isso com todo mundo,
com você, qualquer pessoa.”
Na
verdade, duas noites mais tarde o próprio Bull tomou demais e
comprovou isso –
O
problema dos viciados, abençoados os viciados em narcóticos, é
conseguir a parada – Veem recusas por todos os lados, estão
permanentemente infelizes – “Se o governo me desse morfina o
suficiente todos os dias, eu seria totalmente feliz e teria a maior
disposição de trabalhar como enfermeiro em um hospital Cheguei a
mandar minhas ideias sobre o assunto para o governo, em uma carta em
1938 enviada de Lexington, na qual dizia que era possível resolver o
problema dos narcóticos botando os viciados para trabalhar, com suas
doses diárias, na limpeza do metrô, qualquer coisa, como qualquer
outra pessoa doente – Como os alcoólatras, eles precisam de
remédio –”
Não
me lembro de tudo o que aconteceu exceto pela noite passada tão
profética, tão horrível, tão triste e louca – Melhor fazer isso
assim, por que ficar valorizando?
Tudo
começou quando Bull ficou sem morfina. Estava mal e tomou umas bolas
demais (secanol) para compensar a falta de morfina, por isso fica
agindo como um bebê, desleixado, como se estivesse senil, não tão
ruim quanto na noite em que dormiu em minha cama no telhado porque
Tristessa tinha pirado e estava quebrando tudo no quarto dele e
batendo nele e caindo de cabeça no chão. Ela tinha comprado as
bolas em uma farmácia, Bull não dava mais para ela – As senhorias
ansiosas estão gritando na porta, achando que nós a estamos
espancando, mas é ela quem está nos dando uma surra –
As
coisas que ela me disse, o que ela realmente pensava de mim, agora
vieram à tona, um ano mais tarde, um ano tarde demais, e tudo o que
eu devia ter feito era contar a ela que eu a amava – Ela me acusou
de ser um maconheiro sujo, me expulsou do quarto de Bull, tentou me
bater com uma garrafa, tentou pegar minha bolsa de tabaco e ficar com
ela, precisei lutar com ela – Bull e eu escondemos a faca de pão
embaixo do tapete – Ela fica ali sentada no chão como um bebê
idiota, dizendo palavras sem sentido para os objetos – Ela me acusa
de tentar fumar maconha tirada da minha bolsa de tabaco mas é apenas
fumo Bull Durham para enrolar cigarros porque os cigarros comerciais
têm um produto químico neles para mantê-los firmes que prejudicou
minhas veias e artérias flebíticas sensíveis –
Então
Bull está com medo que ela o mate à noite, não conseguimos tirá-la
de lá, antes (há uma semana) ele tinha chamado a polícia e as
ambulâncias e nem eles conseguiram tirá-la de lá, México –
Então ele vai dormir na cama de meu quarto novo, com lençóis
limpos, se esquece que já tomou duas bolas e manda mais duas e aí
fica cego, não consegue achar os cigarros, tateia e derruba tudo,
mija na cama, derruba o café que levo para ele, eu tenho que dormir
no chão de pedra entre percevejos e baratas, eu, mal-humorado, o
insulto a noite inteira: “Olhe só o que você fez com minha cama
limpinha”.
“Não
posso evitar – preciso achar outra cápsula – Isto é uma
cápsula?” Ele segura um palito de fósforos e acha que é uma
cápsula de morfina. “Me dá sua colher” – Ele vai fervê-loe
se picar – meu Deus – Ao amanhecer, na hora cinzenta, ele
finalmente vai embora para seu quarto aos tropeções. Leva todas as
suas coisas, incluindo uma Newsweek que ele nunca poderia ter lido –
Derramo as latas de mijo na privada. Está totalmente azul, como o
azul de Sir Joshua Reynolds. Penso: “MEU DEUS, ele deve estar
morrendo!” mas depois descobri que eram latas de anil – Enquanto
isso, Tristessa tinha dormido e estava se sentindo melhor e de alguma
forma eles saíram e descolaram suas doses e no dia seguinte ela
voltou batendo na janela de Bull, pálida e linda, já não era mais
uma feiticeira asteca, pedindo desculpas com ternura –
“Ela
vai voltar a tomar bola de novo em uma semana”, diz Bull – “Mas
eu não vou mais dar para ela” – ele engole uma –
“Por
que você toma?!” grito.
“Porque
eu sei como, eu sou viciado há quarenta anos.”
Então
chegou a noite fatal –
Eu
já tinha arranjado um táxi e uma vez na rua disse a Tristessa que a
amo – “Yo te amo” – Sem resposta – Ela mente para Bull e
conta a ele que eu fiz a proposta para ela dizendo “Você já
dormiu com muitos homens, por que não dormir comigo?” – Eu
jamais disse tal coisa, apenas “Yo te amo” – Porque eu a amo –
Mas o que fazer com ela – Ela não costumava mentir antes das bolas
– Na verdade costumava rezar e ir à igreja –
Desisti
de Tristessa e esta tarde, com Bull passando mal, tomamos um táxi
para ir até os cortiços encontrar El Indio (O Bastardo Negro como
era conhecido em seu ramo), que sempre tem alguma coisa – Sempre
foi meu pressentimento secreto que El Indio também ama Tristessa –
Ele tem belas filhas crescidas, deita-se em um leito por trás de
cortinas finas com a porta escancarada para o mundo, doidão de M,
sua mulher mais velha está sentada ansiosa em uma cadeira, os ícones
queimam, ocorrem discussões, gemidos, tudo sob os infinitos céus
mexicanos – Chegamos até sua casa e a sua velha mulher nos diz que
é sua esposa (não sabíamos) e que ele não está então sentamos
nos degraus de pedra que davam para aquele terreno maluco cheio de
crianças berrando e bêbados e mulheres com roupa para lavar e
cascas de bananas, e você devia pensar e esperar aqui – Bull está
passando tão mal que precisa ir para casa – Alto, encurvado, o
mago quase cadáver ele segue, me deixando bêbado sentado na pedra
desenhando as crianças em meu caderninho –
Então
surge uma espécie de anfitrião, um homem amistoso e imponente, com
um copo cheio de pulque, dois copos, ele insiste que a gente beba de
vira-vira, eu topo, bam, para dentro, o suco de cactus escorrendo de
nossos lábios, ele me ganha – Mulheres riem Há uma cozinha grande
– Ele me traz mais – bebo e desenho as crianças – Ofereço
dinheiro pelo pulque, mas ele não aceita – Começa a escurecer no
quintal.
Já
bebi quase um litro de vinho no caminho até ali, é um de meus dias
de beber, tenho andado entediado e triste e perdido – também, por
três dias tenho pintado e desenhado a lápis, giz de cera e
aquarelas (minha primeira tentativa formal) e estou exausto Fiz um
esboço de um artista mexicano pequeno e barbado no teto de sua
cabana e ele arrancou o desenho do caderno grande para guardar com
ele – bebemos tequila de manhã e fizemos desenhos um do outro –
Ele fez uma espécie de esboço de turista de mim, que mostrava como
eu era um americano bonito e jovem, não entendo (ele quer que eu
compre?) – Eu fiz um terrível rosto negro apocalíptico dele,
também seu corpo miúdo retorcido na beira do sofá. Os céus e a
posteridade irão julgar toda essa arte, seja lá o que for – Então
estou desenhando um menininho em especial que não para quieto e
então começo a desenhar a Virgem Madona –
Surgem
mais companheiros e eles me convidam para um grande salão onde há
uma mesa branca grande coberta com xícaras de pulque e no chão
jarros cheios – Impressionantes os rostos ali – Penso “Vou me
divertir e enquanto isso estou em frente à porta de El Indio e vou
pegá-la para Bull quando ele chegar em casa – E Tristessa vai
chegar também – Borracho, secamos xícaras grandes de suco de
cactus e há um cantor idoso com violão e seu jovem menino discípulo
com lábios sensíveis grossos e a anfitriã grande e gorda que
parecia saída da Idade Média de Rabelais e Rembrandt que canta –
O líder dessa grande gangue de quinze parece ser Pancho Villa na
cabeceira da mesa, o rosto vermelho de barro, perfeitamente redondo e
alegre, mas com uma expressão de coruja mexicana, com olhos loucos
(acho) e uma camisa vermelha quadriculada muito legal e como sempre
em uma felicidade extática – Mas ao lado dele há outros mais
sinistros, espécie de tenentes, olho para eles do outro lado da mesa
direto nos olhos levanto um brinde e chego a perguntar “Que és la
vida? O que é a vida?” – (para mostrar como sou esperto e
filosófico) – Enquanto isso um homem de terno e chapéu azuis
parece o mais amistoso, ele me conduz até o banheiro para um papo
legal enquanto mijamos Ele tranca a porta – Seus olhos estão muito
afundados em órbitas gorduchas e marcadas estilo W.C. Fields –
órbitas é uma palavra tão limpa – mas um par perverso de olhos
engraçados, também um hipnotizador, eu fico olhando fixamente para
ele, continuo a gostar dele – Gosto tanto dele que quando ele pega
minha carteira e conta meu dinheiro eu rio, finjo que tento pegá-la
de volta, ele para de contar – Outros estão tentando entrar no
banheiro – “Isso é o México!” diz ele. “Se a gente quiser,
a gente fica aqui” – Quando ele me devolve a carteira vejo que
meu dinheiro ainda está lá dentro mas juro pela Bíblia, por Deus,
por Buda por qualquer coisa supostamente sagrada, que na vida real
não havia mais dinheiro naquele carteira (carteira, scharteira,
apenas um pedaço dobrado de couro para guardar cheques de viagem) –
Ele me deixa alguma grana porque mais tarde dou vinte pesos a um
sujeito grande e gordo e peço a ele para descolar um pouco de
maconha para o grupo todo – Ele também insiste em me levar ao
banheiro para confabulações sinceras, de alguma maneira meus óculos
escuros desaparecem –
No
fim Chapéu Azul na frente de todo mundo simplesmente arranca meu
caderno de dentro de meu casaco (de Bull), como se fosse uma piada,
com o lápis e tudo, e o guarda em seu próprio paletó e olha para
mim, pervertido e divertido – Na verdade não consigo evitar rir,
mas então digo “Vamos lá, vamos, me devolva meus poemas” e
tento meter a mão em seu paletó e ele se esquiva, e tento outra vez
e ele não deixa Viro-me para o homem de aparência mais distinta
ali, na verdade, o único, que está sentado ao meu lado, “Você
assume a responsabilidade de conseguir meus poemas de volta?”
Ele
diz que sim, sem compreender o que estou dizendo, mas eu, bêbado,
suponho que ele concorda – Enquanto isso em um deslumbramento cego
de êxtase jogo cinquenta pesos no chão para provar algo mais tarde
jogo dois pesos no chão dizendo “É pela música” – Eles
acabam dando aquilo para os dois músicos mas estou orgulhoso demais
em busca de reconsideração para começar a procurar meus cinquenta
pesos também, mas você vai ver que este é apenas um caso de querer
ser roubado, uma espécie de exultação estranha e de poder de
bêbado, “Não ligo para dinheiro, sou o rei do mundo”, eu mesmo
vou liderar suas revoluçõezinhas” – Comecei a executar isso
fazendo amizade com Pancho Villa, e meu irmão ouve muito bater de
copos e vira-vira e abraços, e música – E a essa hora estou
idiota demais para conferir minha carteira, mas não sobrou um
centavo Enquanto isso fico muito orgulhoso em demonstrar o quanto
aprecio a música, chego a batucar na mesa – No fim saio com o
rapaz gordo para conversar no banheiro e quando estamos a caminho
surge nos degraus uma mulher estranha, pálida e fantasmagórica,
lenta, majestosa, nem jovem nem velha, não consigo evitar olhar para
ela e mesmo quando percebo que é Tristessa continuo a olhar admirado
para essa mulher estranha e parece que ela chegou para me salvar mas
ela só chegou para arranjar uma dose com El Indio (que, por falar
nisso, agora, segundo o próprio, tinha ido encontrar Bull a três
quilômetros de distância) deixo o bando alegre de ladrões e sigo
meu amor.
Ela
está usando um vestido comprido sujo e um xale e seu rosto está
pálido, com olheiras, aquele nariz fino patrício levemente adunco,
os lábios luxuriantes, aqueles olhos tristes – e a música de sua
voz, o lamento de sua canção, quando ela fala com os outros em
espanhol…
[…]
Jack Kerouac, in Tristessa
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