[…]
― Apraz
ao senhor, compadre Ricardão? ― Joca Ramiro solicitou, passando a
vez.
Aquele
retardou tanto para começar a dizer, que pensei fosse ficar para
sempre calado. Ele era o famoso Ricardão, o homem das beiras do
Verde Pequeno. Amigo acorçoado de importantes políticos, e dono de
muitas posses. Composto homem volumoso, de meças. Se gordo próprio
não era, isso só por no sertão não se ver nenhum homem gordo. Mas
um não podia deixar de se admirar do peso de tanta corpulência, a
coisa de zebu guzerate. As carnes socadas em si ― parecia que ele
comesse muito mais do que todo o mundo ― mais feijão, fubá de
milho, mais arroz e farofa ―, tudo imprensado, calcado, sacas e
sacas. Afinal, ele falou! fosse o Almirante Balão!
― Compadre
Joca Ramiro, o senhor é o chefe. O que a gente viu, o senhor vê, o
que a gente sabe o senhor sabe. Nem carecia que cada um desse
opinião, mas o senhor quer ceder alar de prezar a palavra de todos,
e a gente recebe essa boa prova... Ao que agradecemos, como devido.
Agora, eu sirvo a razão de meu compadre Hermógenes! que este homem
Zé Bebelo veio caçar a gente, no Norte sertão, como mandadeiro de
políticos e do Governo, se diz até que a soldo... A que perdeu,
perdeu, mas deu muita lida, prejuízos. Sérios perigos, em que
estivemos; o senhor sabe bem, compadre Chefe. Dou a conta dos
companheiros nossos que ele matou, que eles mataram. Isso se pode
repor? E os que ficaram inutilizados feridos, tantos e tantos...
Sangue e os sofrimentos desses clamam. Agora, que vencemos, chegou a
hora dessa vingança de desforra. A ver, fosse ele que vencesse, e
nós não, onde era que uma hora destas a gente estava? Tristes
mortos, todos, ou presos, mandados em ferros para o quartel da
Diamantina, para muitas cadeias, para a capital do Estado. Nós
todos, até o senhor mesmo, sei lá. Encareço, chefe. A gente não
tem cadeia, tem outro despacho não, que dar a este; só um: é a
misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e
acertada. Assim que veio, não sabia que o fim mais fácil é esse?
Com os outros, não se fez? Lei de jagunço é o momento, o menos
luxos. Relembro também que a responsabilidade nossa está valendo:
respeitante ao seo Sul de Oliveira, doutor Mirabó de Melo, o velho
Nico Estácio, compadre Nhó Lajes e coronel Caetano Cordeiro...
Esses estão aguentando acossamento do Governo, tiveram de sair de
suas terras e fazendas, no que produziram uma grande quebra, vai tudo
na mesma desordem... A pois, em nome deles, mesmo, eu sou deste
parecer. A condena seja: sem tardança! Zé Bebelo, mesmo zureta, sem
responsabilidade nenhuma, verte pemba, perigoso. A condena que vale,
legal, é um tiro de arma. Aqui, chefe ― eu voto!…
A
babas do que ele vinha falando, o povaréu jagunço movia que
louvava, confirmava. Aí, nhães, pelos que davam mais demonstração,
medi quantidade dos que eram do Ricardão próprio. Zé Bebelo estava
definito ― eu pensei ― qualquer rumorzinho de salvação para ele
se mermando, se no mel, no p ra passar. Mire e veja o senhor: e o
pior de tudo era que eu mesmo tinha de achar correto o razoado do
Ricardão, reconhecer a verdade daquelas palavras relatadas. Isso
achei, meio me entristeci.
Por
que? O justo que era, aquilo estava certo. Mas, de outros modos ―
que bem não sei ― não estava. Assim, por curta ideia que eu
queira dividir! certo, no que Zé Bebelo tinha feito; mas errado no
que Zé Bebelo era e não era. Quem sabe direito o que uma pessoa é?
Antes sendo! julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente
julga é o passado. Eh, bê. Mas, para o escriturado da vida, o
julgar não se dispensa; carece? Só que uns peixes tem, que nadam
rio-arriba, da barra às cabeceiras. Lei é lei? Lôas! Quem julga,
já morreu. Viver é muito perigoso, mesmo.
Nisso,
Joca Ramiro já tinha transferido a mão de fala a Titão Passos ―
esse era como um filho de Joca Ramiro, estava com ele nos segredos
simples da amizade. Abri ouvidos. Ideia me veio que ia valer vivo o
que ele falasse. Aí foi!
― Ao
que aprecio também, Chefe, a distinção minha desta ocasião, de
dar meu voto. Não estou contra a razão de companheiro nenhum, nem
por contestar. Mas eu cá sei de toda consciência que tenho, a
responsabilidade. Sei que estou como debaixo de juramento! sei porque
de jurado já servi, uma vez, no juri da Januária... Sem querer
ofender ninguém ― vou afiançando. O que eu acho é que é o
seguinte! que este homem não tem crime constável. Pode ter crime
para o Governo, para delegado e juiz-de-direito, para tenente de
soldados. Mas a gente é sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis
vir guerrear, veio ― achou guerreiros! Nós não somos gente de
guerra? Agora, ele escopou e perdeu, está aqui, debaixo de
julgamento. A bem, se, na hora, a quente a gente tivesse falado fogo
nele, e matado, aí estava certo, estava feito. Mas o refrêgo de
tudo já se passou. Então, isto aqui é matadouro ou talho?... Ah,
eu, não. Matar, não. Suas licenças...
Coração
meu recomprei, com as palavras de Titão Passos. Homem em regra,
capaz de mim. Cacei jeito de sorrir para ele, aprovei com a cabeça;
não sei se ele me viu. E mais não houve rebuliço. Só que notei
estopim ― os homens ficando diferentes. Agora tomavam mais ânsia
de saber o que era que iam decidir os manantas. O pessoal próprio de
Titão Passos era que formavam o bando menor de todos. Mas gente
muito valente.Valentes como aquele bom chefe. De que bando eu sou? ―
comigo pensei. Vi que de nenhum. Mas, dali por diante, eu queria
encostar direto com as ordens de Titão Passos. ― Ele é meu
amigo... ― Diadorim no meu ouvido falou ― ...Ele é bisneto
de Pedro Cardoso, trasneto de Maria da Cruz! Mas eu nem tive surto de
perguntar a Diadorim o resumo do que ele pensasse. Joca Ramiro agora
queria o voto de João Goanhá ― o derradeiro falante, que rente
dificultava.
João
Goanhá fez que ia levantar, mas permaneceu agachado mesmo. Resto que
retardou um pouco no dizer, e o que disse, que digo:
― Eu
cá, ché, eu estou plo qu o ché pro fim expedir...
― Mas
não é bem o caso, compadre João. Vocês dão o voto, cada um.
Carece de dar... ― foi o que Joca Ramiro explicou mais.
A
tanto João Goanhá se levantou, espanou com os dedos no nariz. Daí,
pegou e repuxou seu canhão de cada manga. Arrumou a cintura, com as
armas, num propósito de decisão. Que ouvi um tlim: moveu meus
olhos.
― Antão
pois antão... ― ele referiu forte: ― meu voto é com o compadre
Só Candelário, e com meu amigo Titão Passos, cada com cada... Tem
crime não. Matar não. Eh, diá!...
Rezo
que ele falou aquilo, aquele capiau peludo, renasceu minha alegria.
Rezo que falou, grosso, como se fosse por um destaque de guerra. De
ripipe, espiei o Hermógenes! esse preteou de raiva. O Ricardão não
acabava de cochilar, cara grande de sapo. O Ricardão, no exatamente,
era quem mandava no Hermógenes. Cochilava fingido, eu sabia. E
agora? Que é que tinha mais de ter? Não estava tudo por bem em bem
terminado?
Ah,
não, o senhor mire e veja. Assim Joca Ramiro era homem de nenhuma
pressa. Se abanava com o chapéu. Ao em uma soberania sem manha de
arrocho, perpasseou os olhos na roda do povo. Antante disse, alto!
― Que
tenha algum dos meus filhos com necessidade de palavra para defesa ou
acusação, que pode depor!
Tinha?
Não tinha. Todo o mundo se olhava, num desconcerto, como quem diz
lá! cada um com a cara atrás da sela. Para falar, ali não estavam.
Por isso nem ninguém tinha esperado. Com tanto, uns fatos
extraordinários.
Haja
veja, que Joca Ramiro repetiu o perguntar!
― Que
por aí, no meio de meus cabras valentes, se terá algum que queira
falar por acusação ou para defesa de Zé Bebelo, dar alguma palavra
em favor dele? Que pode abrir a boca sem vexame nenhum...
[…]
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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